Em março de 1964 tudo — até o presidente, culposamente — contribuía para o clima de conspiração no Brasil e no mundo. O que havia de pretextos para que o povo saísse às ruas naquele mês faltou 50 anos depois, transformando manifestação em patacoada

19 de março de 1964: 300 mil lotam a Praça da Sé, em São Paulo pedindo a queda de Jango e o fim da “ameaça comunista”
19 de março de 1964: 300 mil lotam a Praça da Sé, em São Paulo pedindo a queda de Jango e o fim da “ameaça comunista”

Elder Dias

“A disposição de São Paulo e dos brasileiros de todos os recantos da pátria para defender a Constituição e os princípios democráticos, dentro do mesmo espírito que ditou a Revolução de 32, originou ontem o maior movimento cívico já observado em nosso Estado: a ‘Marcha da Família com Deus, pela Liberdade’. Com bandas de música, bandeiras de todos os Estados, centenas de faixas e cartazes, numa cidade com ar festivo de feriado, a ‘Marcha’ começou na praça da República e terminou na praça da Sé, que viveu um dos seus maiores dias. Meio milhão [outras publicações falam em 300 mil] de homens, mulheres e jovens — sem preconceitos de cor, credo religioso ou posição social — foram mobilizados pelo acontecimento. Com ‘vivas’ à democracia e à Constituição, mas vaiando os que consideram ‘traidores da pátria’, concentraram-se defronte da catedral e nas ruas próximas. Ali, oraram pelos destinos do país. E, através de diversas mensagens, dirigiram palavras de fé no Deus de todas as religiões e de confiança nos homens de boa-vontade. Mas, também de disposição para lutar, em todas as frentes, pelos princípios que já exigiram o sangue dos paulistas para se firmarem.”

O trecho acima tem 50 anos e foi extraído da “Folha de S. Paulo”. O texto está na primeira página da edição de 22 de março de 1964 e é o que se segue à manchete daquele dia: “São Paulo parou ontem para defender o regime”. À parte as controvérsias de que o jornal teria deliberadamente apoiado o golpe militar — o que já seria inferido com uma leitura apenas básica das reportagens daquele jornal (e da maioria dos grandes diários do País na época) meio século atrás —, é interessante fazer algumas observações sobre o que estava em jogo para chegar à formulação final daquela chamada de capa.

O Brasil se encontrava então em um momento de grande turbulência econômica. Vivia-se, simultaneamente, o auge da Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética e estava na cadeira de presidente um homem que não era exatamente um “amigo” da direita: João “Jango” Goulart, que seis dias antes daquele 19 de março havia feito um discurso em que falava em justiça social, reformas de base e desapropriação de terras, depois conhecido como “Comício da Central”. Em frente à Central do Brasil, no Rio de Janeiro, diante de 150 mil cidadãos, Jango decretou a nacionalização das refinarias privadas e a desapropriação de propriedades públicas às margens de ferrovias e rodovias. O caldeirão político ferveu de vez.

Era a brecha para uma intervenção militar, que precisava, porém, de certa justificativa, até porque seria um disparate considerar que Jango, filho de uma rica família de estancieiros de São Borja (RS), fosse comunista. Mas era um tempo maniqueísta no mundo e particularmente no Brasil, onde, entre o “sim” e o “não”, não sobrava espaço para a sensata “virtude do meio”. Para os mais radicais, vestir uma camisa vermelha já era passo e meio no caminho a ser andado para receber o carimbo de subversivo. E isso só pioraria nos anos seguintes.

Ainda que usando um olhar complacente, é impossível deixar de enxergar o texto da “Folha” como uma clara atividade de campanha. Já de início, o próprio título — “São Paulo parou ontem para defender o regime” — pega a contramão da legalidade. A não ser que entre os termos “defender” e “regime” se colocasse a palavra “futuro”. Se alguns dizem não saber até hoje quais eram os interesses defendidos pelo governo de Jango, também é uma incógnita se havia, do lado de quem o atacava, um medo maior do comunismo ou da perda de uma fatia do bolo econômico.

Analisando como a “Folha de S. Paulo” cobriu a marcha de 19 de março de 1964, um parágrafo ainda é necessário: mesmo que o movimento tenha sido exaltado também pela mídia de outros Estados, o texto da primeira página da “Folha” se desenvolve encarnado de uma espécie de paulistocentrismo redentor, com alusão e analogia à Revolução Constitucionalista de 32 (“disposição para lutar, em todas as frentes, pelos princípios que já exigiram o sangue dos paulistas”) — este um movimento de motivações totalmente diversas e que foi, na verdade reativo ao golpe que depôs Washington Luís, impediu a posse do presidente eleito Júlio Prestes e levou Getúlio Vargas (então derrotado candidato à Presidência) ao poder. Era o da já decadente política rural “café-com-leite” e o fim da tabelinha hegemônica entre paulistas e mineiros gerou rusgas e a maior ameaça de guerra civil dentre a Revolução Farroupilha.

Jogo de War

Não se pode negar que a marcha tivesse tido apoio popular e um sentido claro: lutar contra a “ameaça comunista”. Era um momento histórico em que se detonava uma intensa disputa geopolítica pelo globo. No cabo-de-guerra, EUA e URSS dividiam o mapa-múndi como jogadores de War. Os americanos acreditavam naquela época (naquela época?) que a América Latina era seu quintal e não tinham engolido muito bem a tomada de Cuba por Fidel Castro e seus camaradas. A situação do Brasil, sob o comando de alguém não atrelado à Casa Branca — embora Jango fosse muito menos envolvido com Moscou do que pensavam —, preocupava e a situação era monitorada. Nesse sentido, a marcha passou o recibo necessário para uma intervenção militar que, como pano de fundo, significava a vitória ianque naquela mexida no tabuleiro. É isto: o Brasil era nada mais do que uma carta valiosa naquele jogo de superpotências.

Em 1964, tendo em vista os interesses envolvidos, a massa urbana que acreditava no comunismo iminente foi usada como inocente útil pela elite econômica — grandes proprietários rurais, banqueiros, industriais e suas entidades apoiaram as marchas —, pelos entes ideológicos — imprensa e Igreja à frente. No dia 19, a multidão que caminhou da Praça da República à Praça da Sé deu o aval para que os militares concluíssem, no dia 31, o trabalho que já vinha sendo desejado e arquitetado, na verdade, desde a posse conturbada de João Goulart.

Houve dezenas de marchas depois de março de 64. Passaram a ser chamadas “marchas da vitória” e viraram a recepção de boas-vindas ao golpe. Espalharam-se pelo País, nas grandes capitais e também em cidades pequenas, como Ipauçu (SP) e Bandeirantes (PR). Mas foi o sucesso daquela primeira marcha que deu a sustentação necessária para que todas as demais se realizassem — a maioria não mais para pedir a saída da “ameaça” Jango do poder, mas para avalizar a “Revolução de 31 de Março”. Menos de 20 anos depois da volta à democracia, o Brasil voltava a conviver com censura, aparelhos de repressão, toque de recolher, dissolução do Parlamento, não necessariamente nessa ordem cronológica.

 

E a marcha que aconteceu ainda que não houvesse sentido algum…

22 de março de 2014: a mesma praça  e o mesmo brado anticomunista não encheram os degraus da catedral
22 de março de 2014: a mesma praça e o mesmo brado anticomunista não encheram os degraus da catedral

Melhor para todos que não tivesse ocorrido. Ou uma demonstração de total falta de timing. Essas duas frases poderiam ser sínteses de qualquer texto analítico sério sobre a Marcha da Família com Deus pela Liberdade de 2014. Cinquenta anos depois, um grupo — e não uma multidão — saiu às ruas de São Paulo e trilho o mesmo caminho que fora fundamental para deflagrar a tomada do poder pelos militares na década de 60.

A cobertura da “Folha de S. Paulo” para o evento que relembraria a grande marcha de 64 o acompanhou em tempo real e saiu na versão digital ainda durante seu transcorrer. O site do jornal noticiava, ainda na tarde do dia 22 de março: “Cerca de 700 pessoas [outras publicações registraram de 300 a 500 pessoas] se reuniram na Marcha da Família com Deus 2 neste sábado (22), no centro de São Paulo, segundo estimativa da PM. Eles deixaram a praça da República, onde se concentraram, em direção à praça da Sé. Quatro pessoas foram detidas pela polícia. Em um trio elétrico com os dizeres ‘FFAA [Forças Armadas] Já’, ‘Voto facultativo = liberdade’, e ‘Comunismo é morte’, organizadores fazem discursos de cunho nacionalista, exaltando os militares e criticando o atual governo petista, que associam com (sic) o comunismo. Os participantes, em sua maioria, vestem roupas brancas, verdes e amarelas e levam a bandeira do país. Há faixas que pedem ‘desmilitarização da PM não’ e imagens religiosas. A reportagem não identificou bandeiras de partidos políticos. Uma estátua de Nossa Senhora Aparecida foi erguida no trio elétrico.”

Ao contrário de 1964, não havia políticos influentes na organização. Grandes empresários ou industriais passaram longe da mobilização. Ruralistas, igualmente. A Igreja pessoa jurídica — a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) — estaria mais perto de reprovar o uso da imagem (e não estátua, como escreveu a “Folha”) da Virgem Maria e de puxar a orelha dos seminaristas que se fizeram presentes. O comunismo pereceu com a União Soviética, mas aquele grupo acredita que ainda sobreviva na moribunda Cuba — encarada como a nova superpotência aos olhos distorcidos das pessoas presentes — e que o Brasil já esteja sob a zona de influência da ilha de Fidel. É hora, então, de chamar os americanos. Mas Barack Obama, que sabe de tudo, parece ter ciência também de que isso não merece mais do que um tanto bom de perplexidade.

Sem muita retaguarda político-institucional, sobraram liderança difusa e gritos de ordem que iam de “Dilma e Lula, vão para a Cuba que os pariu!” a “Viva a PM!”. Para dar certo corpo à manifestação, um séquito de manifestantes confusos, que incluía de militares reformados a estudantes, passando por donas de casa e professores de História. A cena mais patética reúne ignorância, prepotência e alienação: a turba em passeata viu um grupo vestindo preto e tomou-os como “black blocs”. Chamaram os rapazes e garotas de “lixo”. Eram fãs do grupo de heavy metal Metallica, que seguiam para o show da banda.

Sérgio da Motta Albuquerque, em artigo no “Observatório da Imprensa”, foi lírico e mordaz ao manchetar: “A marcha murcha”. Talvez a esperança dos organizadores era de que boa parte dos que tinham bandeiras diversas nas chamadas Jornadas de Junho do ano passado fosse canalizada para o espírito de indignação ultradireitista que evocavam.

Não deu certo. Foi pior em outras cidades: houve “marchas” com público que caberia em uma Honda Biz. Do alto de seu anacronismo, não perceberam que 50 anos se passaram e que só eles não mudaram. Uma tirinha mostra uma turma de manifestantes abordando uma dupla de alta patente do Exército nas ruas e confessando: “Que bom ver vocês! Olha aqui minha bandeira do Brasil, estamos lutando para vocês voltarem ao poder!” E seguiram, empolgados. Os militares se entreolharam, abismados: “Nossa, que medo!”. E o outro: “Tem gente pra tudo nesse mundo.”