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Esqueça o mar de rosas do fim de governo do petista. Eventualmente vencendo as eleições, nada mais será tranquilo – nem pacífico – para ele

Obama cumprimenta Lula durante a cúpula do G-20, em 2009: foto talvez seja o flagrante do melhor instante do Brasil em nível mundial | Foto: Reprodução

É bem verdade que neste abril de 2022, ao contrário da maioria dos brasileiros, que padecem com o retorno da carestia, com a falta de emprego ou mesmo com a fome em estado bruto, para Luiz Inácio Lula da Silva as coisas estão menos pesadas do que há cinco anos. Exatamente porque estavam muito pesadas.

Em abril de 2017, tratorado pela Lava Jato, massacrado pela maioria dos formadores de opinião e condenado em segunda instância em um processo que depois se demonstraria cheio de vícios, o ex-presidente começava a pagar cadeia em Curitiba, na sede da Polícia Federal no Paraná.

Tempos difíceis, principalmente se comparados ao idílico abril de 2009, quando comparecia à cúpula do G-20, aquela reunião chique com os mandatários das duas dezenas de economias mais poderosas do globo. Foi o encontro memorável no qual, ao cumprimentar o colega brasileiro, o então presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, ainda em seu primeiro ano de gestão por lá, falou para todo mundo ouvir: “Esse é o cara!”, em meio a um clima de muita descontração entre chefes de Estado.

Tempos muito tranquilos, em que o petista navegava em alta popularidade, colhendo os dividendos do crescimento da economia brasileira que a faria chegar ao posto de 8ª maior do mundo ao fim daquele penúltimo ano de seu segundo governo.

Se não pelo próprio Lula, para quem – a despeito de todos os grandes problemas internos daquele recorte – observa em retrospectiva o viés de ascensão por que o Brasil passava, aquele quadro “popstar” com Obama poderia ser o instantâneo mais bem acabado do que foram aqueles tempos dourados. Coisa de emoldurar e, vendo o que restou hoje, de se contemplar chorando.

E isso não é algo que seria dito apenas por algum militante empolgado ou um brasileiro mais ufanista. Meses depois do encontro do G-20, o Financial Times fez quatro páginas sobre a trajetória geopolítica e geoeconômica do País. Um dos trechos:

“As ambições globais do Brasil frequentemente foram atrapalhadas no passado (…) Mas a estabilidade de seu sistema bancário e de seus mercados de capitais diante da crise mundial fizeram órgãos reguladores em outros países se interessarem por suas opiniões”.

Muitos janeiros e “abris” se passariam para Lula desde então. Vieram a eleição de Dilma, o tripé macroeconômico, os protestos de 2013, o “não vai ter Copa”, crise, desemprego, o advento do lavajatismo, os coxinhas, a reeleição de Dilma, um Aécio Neves mau perdedor, um Eduardo Cunha chantagista, a traição de Temer, o Fora Dilma, Sergio Moro e seus vazamentos não autorizados, o impeachment sem crime de responsabilidade, as prisões da Lava Jato, as gravações de Joesley Batista, os acordões para evitar o impeachment do presidente acusado de corrupção, as condenações pessoais em primeira e segunda instância… e veio então abril de 2018.

Ser preso parece ser o fundo do poço para qualquer ser humano. Tendo sido uma pessoa poderosa, então, é algo entre estranho, intrigante e mórbido. E o que dizer de estar numa cela após ter sido o presidente mais popular do País e saudado como “o cara” pelo líder da maior potência mundial?

Lula é carregado nos braços por militantes em discurso após deixar a prisão | Foto: Reprodução

Lula ficou preso por 580 dias, de 7 de abril de 2018 a 8 de novembro de 2019. Mais de um ano e meio. E, desde que saiu da cadeia, por mais que o País piorasse – com um governo reacionário para o qual adjetivo mais leve seria “errático”, uma pandemia de 650 mil mortes, inflação, desemprego, miséria e fome –, a situação pessoal do petista só melhorou.

Melhorou tanto que passou de ex-presidiário a ex-condenado, em uma condição inusitada que só desmandos jurídicos seguidos de revisões superiores para lá de tardias poderiam provocar.

Veio novo abril, o de 2021. O pleno do Supremo Tribunal Federal (STF) confirmava a decisão monocrática de Edson Fachin, no mês anterior, de anular as condenações do ex-presidente, por enfim entender, entre outras questões, que a 13ª Vara de Curitiba não tinha competência para ter Lula como réu.

A partir de então, o petista disparou nas intenções de voto nas pesquisas eleitorais. Mantém, há praticamente um ano, um mínimo de 40% como índice em quase todos os levantamentos. Se tudo correr sem nenhum fator novo, muito provavelmente ele será eleito pela terceira vez presidente do Brasil em outubro, quando também fará 77 anos. Vinte a mais do que tinha quando subiu pela primeira vez a rampa do Palácio do Planalto, em 2002.

Mas a diferença não estará apenas nas duas décadas de vida. A vitória terá sido, certamente, em meio a muita tensão, ameaças, mentiras e perturbação do quadro eleitoral. É esse o modus operandi, contestando tudo a partir da desconfiança sobre urnas eletrônicas e um sistema de contagem de votos que nunca trouxeram problemas, que se conduzirá Jair Bolsonaro. Essa sua narrativa para continuar no poder, hoje tentando buscar uma reeleição complicadíssima, pelo alto índice de rejeição e por todo um histórico de escândalos que vão da corrupção à tentativa de golpe, do negacionismo da pandemia à prevaricação na compra de vacinas.

Mesmo vencendo nos votos, a coisa continuará difícil para Lula. Justamente por conta de uma palavra que voltou a estar presente no noticiário político com o mesmo sentido de 60 anos atrás: golpe. Somente em um conto do realismo fantástico faria sentido imaginar Bolsonaro dando uma declaração serena após o encerramento da apuração, em primeiro ou segundo turno, e reconhecendo a eventual derrota. Alguém consegue imaginar? Alguém já chegou a imaginar antes de ser questionado se consegue imaginar?

Lula eleito, Bolsonaro, ato contínuo, esqueceria de vez a gestão que nunca estimou para montar praça nas redes sociais e em todas as manifestações possíveis para incitar apoiadores a reagir contra a Justiça Eleitoral. Seria praticamente um Capitólio contínuo, dia após dia. Como reagiriam as polícias estaduais?

Transição entre governos? Como? No meio de tal clima, de que jeito ter acesso a dados de um governo que nunca facilitou sua transparência nem em tempos normais?

E os militares, nesse momento, qual será a deles? As Forças Armadas se pronunciariam para mostrar que ficariam do lado da Constituição e do resultado saído das urnas, pelo Estado democrático de direito, como ocorreu nos Estados Unidos em 2020, antes e depois das eleições, por meio do general Mark Milley? Ou fariam seu papel de modo legalista, ainda que com 8 mil de seus homens com cargos comissionados na administração atual?

Roberto Amaral: Lula pensou em Alckmin por saber das dificuldades e por 'governança'
Lula posa com Geraldo Alckmin, no dia da homologação do PSB para ele ser vice na chapa do petista à Presidência | Foto: Ricardo Stuckert

Com tudo isso em vista, ainda é preciso imaginar como seria uma eventual posse – “eventual” agora por duas eventualidades necessárias: vencer as eleições e sobreviver ao período de transição.

Em 1º de janeiro de 2003, havia uma massa em festa tomando conta da Praça dos Três Poderes, cheia de esperança, por terem vencido o medo (“de ser feliz”, como dizia o velho jingle Lula-lá, de 1989; em 2023, haverá uma multidão preocupada, policiada, tensa, ansiosa, cheia de medo. E estando ali… por terem vencido o medo de estar ali!

Com a posse e o ministério formado, os desafios continuarão imensos. A crise será o prato do dia todo dia; a mídia vai cobrar resultados sem qualquer paciência; o Centrão vai tentar manter a presidência da Câmara dos Deputados para seguir, com eles, as benesses que mantêm hoje, o que inclui dominar o Orçamento da União; bolsonaristas inconformados se juntarão aos antipetistas e farão oposição diuturna, com protestos pouco pacíficos desde o primeiro dia de governo. Jair Bolsonaro continuará como uma sombra, à semelhança de Donald Trump sobre o governo dos democratas nos Estados Unidos.

São conjecturas? Mais do que isso, são cenários. Cenários nada impossíveis nem tão improváveis.

Todos concordam que, ainda que o resultado venha semelhante, 2022 não será 2002. O que talvez poucos tenham parado para pensar é que 2023 não será 2003, 2024 não será 2004, e assim por diante. O bolsonarismo e a corrosão do processo democrático são apenas algumas das dificuldades. Mas, no momento e pelos próximos anos, serão as principais.

Com a impossibilidade prática de um terceiro nome tomar a vaga de Bolsonaro em um eventual segundo turno, calhou de ser Lula, o controverso, aquele que tem nas mãos a tarefa de tirar o Brasil desse rumo tenebroso. Sinais de que quer montar essa coalizão o velho petista tem demonstrado. Prova maior não há do que ter abençoado o ex-tucano Geraldo Alckmin como seu vice, a despeito de todas as lágrimas de seus próprios militantes.

Não há outra opção, para a democracia, que não a de enfrentar os antagonistas. Churchill não gostava de Stálin, mas ambos sabiam que não havia outra opção, além da aliança mútua, para evitar o triunfo da barbárie.

A Lula e Alckmin precisa se juntar mais gente. Já em 2018 era um segundo turno em que se colocaram em flancos opostos o representante da democracia versus o da ditadura. À época acharam que essa dicotomia seria um exagero, uma frase de efeito.

Os anos se passaram e muita gente sofreu, e até morreu, para que todos pudessem ver que não era nenhuma alucinação esquerdista. Não é agora a ocasião para filigranas entre democratas. O jogo será pesado e tão incerto como um desembarque na Normandia.