Era o começo da tarde de 20 de junho de 2013. No Campus Samambaia da Universidade Federal de Goiás (UFG), em plena quinta-feira, tudo começava a se esvaziar. Não por conta de uma paralisação grevista ou o início de um feriado prolongado, mas de uma mobilização inédita. Estudantes, professores e servidores técnico-administrativos se preparavam, sem que houvesse nenhuma liderança central – um sindicato, centros acadêmicos ou qualquer comitê – a dar o comando, para uma passeata de protesto no Centro de Goiânia. Então, um colega diz ao outro, se lembrando de algo essencial por aqueles dias: “Cara, temos de escrever um cartaz com uma reivindicação”. Os dois conversam, se acertam, arrumam uma cartolina mais um pincel atômico azul e escrevem sua pauta: “SEM REFORMA POLÍTICA NÃO DÁ!”

Assim como ocorria na UFG, também em outras instituições acadêmicas, repartições, colégios e mesmo estabelecimentos particulares havia a mesma movimentação. Não era a primeira manifestação em Goiânia naquele mês, mas era algo que daquela vez seria maior, muito maior. Era uma tendência em todo o País, que abraçava o tom de indignação surgido a partir de um grupo de estudantes do Movimento Passe Livre (MPL), que há anos já tinha a bandeira de luta por transporte público gratuito.

Para protestar contra o reajuste de 20 centavos das tarifas em São Paulo, o MPL reuniu, na primeira contestação, algumas dezenas de pessoas na estrada do M’boi Mirim, zona sul da capital paulista, na madrugada da segunda-feira, 3 de junho. Depois, vieram muitas outras. Num crescendo de participação, os atos na cidade tiveram seu ápice de dramaticidade em 13 de junho, quando a Polícia Militar reprimiu os manifestantes com violência. Foi ali o estopim para que a coisa se multiplicasse.

Naquele momento, em Goiânia e no resto do Brasil, o que chamava mesmo a atenção era exatamente o excesso de pautas: de uma indignação mais do que justa com o sistema de transporte público, a situação escalou para a revolta contra outros serviços públicos e daí para o enfrentamento de todo o sistema. Isso sem que aparentemente houvesse qualquer liderança a comandar. O Brasil estava tomando por uma fúria espontânea.

Os principais veículos de comunicação, no começo, ignoraram o movimento. Quando a coisa tomou corpo e ocorreram confrontos e distúrbios, a grande imprensa em geral optou por destacar o vandalismo que ocorria – em meio a fechamento de vias e corre-corres, havia também coquetéis Molotov atirados, rojões disparados e vidraças de bancos quebradas, embora isso fosse uma pequeníssima parte de tudo.

Os integrantes dessa minoria belicosa em meio à maioria pacífica, embora sem comando vertical – o que, de fato, dificultava o trabalho de escolta e de eventuais negociações entre forças de segurança e manifestantes –, foi chamada de “black blocs”. Na verdade, o termo em inglês refere-se, na origem, a uma tática na qual um conjunto de indivíduos de origem anarquista e vestidos de preto forma um bloco de proteção a manifestantes em vias de confronto com a polícia. No entanto, a partir de junho de 2013, no Brasil o termo tomou a parte pelo todo e, por metonímia, passou a designar cada pessoa que enfrentava a polícia ou participava de alguma ação mais radical em meio à multidão. Virou sinônimo para vândalo ou marginal, no sentido pejorativo do termo.

Uma boa medida do grau de insatisfação popular que fervilhava naquele momento foi o vexame que o apresentador de TV José Luiz Datena passou ao vivo ao fazer uma enquete em seu programa Brasil Urgente, exatamente no dia 13 de junho. Ele relatava as manifestações do MPL contra o aumento da passagem, comentando: “Baderna? Me inclua fora dessa, me inclua fora dessa nesse negócio de baderna, entendeu? Eu acho que protesto tem de ser pacífico, não pode ter depredação, não pode impedir via pública. E [esse tipo de protesto] joga esses caras [do MPL] contra a população, porque tem muita gente já revoltada com esse tipo de protesto violento!”.

Certo de estar afinado com o clamor público, Datena então manda sua produção iniciar uma enquete por ligações telefônicas, em que a audiência responderia se seria a favor daquele tipo de protesto. E os espectadores, em sua maioria – de um público geralmente conservador, ressalte-se, que constitui a audiência desse tipo de programa –, votam “sim”, indicando que estavam do lado dos “baderneiros”. Entre perplexo e sem graça com o resultado, além de desconfiado de que não tinham entendido a pergunta, o âncora ordena o reinício da votação com a questão reformulada: “Você é a favor de protesto com baderna?”. Enquanto o apresentador vai tentando persuadir quem o assiste a votar como ele gostaria, de forma bastante incisiva, a nova pesquisa vai ao ar e o “sim” ganha novamente do “não”, dessa segunda vez ainda com mais folga. “Já deu pra sentir, o povo tá tão ‘p’ da vida com aumento de passagem que apoia qualquer tipo de protesto!”, resigna-se Datena, entregando os pontos.

Embora o MPL se constituísse em um movimento horizontalizado, sem protagonistas, o historiador Lucas Monteiro, hoje com 39 anos, foi um dos que se colocaram à frente, como uma espécie de porta-voz dos manifestantes – ficou conhecido com o apelido de Legume. Dez anos depois, ele é autor de um artigo na coletânea Junho de 2013: A Rebelião Fantasma (Boitempo, 2023, 128 p.) organizada por Breno Altman e Maria Carlotto. Ele descarta que as manifestações que promoveram aquele ano foram embrionárias das mobilizações que a extrema direita faria a partir do ano seguinte. “As pessoas se esquecem de que manifestações contra a qualidade do serviço de transporte público já vinham acontecendo há muitos anos anteriores”, diz relembrando casos de Vitória, Goiânia, Salvador, entre outras cidades.

Lucas Monteiro, porta-voz do MPL em 2013: “Manifestações pelo transporte público não eram novidade” | Foto: Arquivo pessoal

Urbanista e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com doutorado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo (USP), Roberto Andrés disseca mais o que diz Lucas. Autor de A Razão dos Centavos, também sobre aquele junho de 2013, ele lembra que manifestações ocorrem desde o Brasil Império. “Essa tradição de protestos por causa do transporte remete a 1880, com a Revolta do Vintém, no Rio de Janeiro, pelo aumento do valor da passagem do bonde em 1 vintém. Esse tipo de revolta se repete durante todo o século 20 por uma questão que nunca foi bem resolvida no Brasil: a condição de vida nas cidades, que é muito desigual”, disse, em entrevista à TV da Assembleia Legislativa mineira.

Andrés considera que, “diferentemente de outros países, o transporte não é ofertado como serviço público, para propiciar uma opção de deslocamento, mas um nicho de mercado”.

Cartazes
Dez anos depois, o mais próximo de um nome próprio a que se chegou para aquele conjunto febril de manifestações foi “Jornadas de Junho”. O que é algo um tanto inexato, já que os protestos se seguiram pelos meses seguintes e chegaram a ter um repique de força em outubro. Talvez o mais apropriado fosse algo chamar de Revolta dos Cartazes ou as Marchas das Mil Pautas.

É que o “gigante adormecido” estava inquieto. “Havia um Brasil em ebulição que buscava se expressar em mensagens”, sintetiza Roberto Andrés. Em 2018, ele aproveitou o mote e fez uma pesquisa acadêmica colaborativa, reunindo fotografias de cartazes, faixas, bandeiras, pichações e outras grafias dos protestos de junho de 2013. A partir daí, criou o site Grafias de Junho, onde compila a produção da época em mais de dez cidades brasileiras. “Pesquisadores de diversas áreas podem utilizar essas informações para investigar o período, comparar a presença dos temas em diferentes cidades e a evolução das pautas ao longo dos protestos”, diz.

Quem tinha mais vivência de manifestações e saiu naquele 20 de junho para as ruas, atendendo a um chamado coletivo, não teve como não achar estranha a multiplicidade de pautas e de origem das pessoas. Era o que se chamaria uma “muvuca” de indignações. Um grupo em particular estava com as cores pátrias, em uma espécie de precursores do que seriam os “coxinhas” das eleições do ano seguinte e dos “patriotas” bolsonaristas.

Um verso de uma música do Barão Vermelho diz que “da semente mais rica, nasceram flores do mal”. Positiva ou negativamente, seria um juízo de valor temerário dizer que a Revolta dos Cartazes – ou qualquer nome que se dê – serviu de matriz para os movimentos golpistas que terminariam nas cadeias de Brasília após a insurreição extremista pós-urnas de 2022. Mais fácil creditar o que houve a seguir às redes sociais e suas fake news – na metade de 2013, o WhatsApp e o Instagram eram praticamente desconhecidos da população e não havia “lives” no YouTube.

Talvez, ao contrário, os manifestantes de junho de 2013 possam ser colocados como os últimos a se moverem por um empuxo espontâneo, embora a internet já tivesse sua importância.