Internet mira Bolsonaro em “Não Olhe Para Cima”, mas o filme vai muito além

30 dezembro 2021 às 22h15

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Vale a pena assistir, mas a melhor forma é se libertando da prisão no cenário político para entender a reação humana diante de uma iminente hecatombe

Como costuma ressaltar uma velha frase de efeito, “não se falou de outra coisa” nas redes sociais, no início da semana. Uma dupla de astrônomos descobre o risco iminente de uma catástrofe – o choque de um cometa com a Terra – e toma a única providência possível: avisar as autoridades sobre o perigo real. Por conta das conveniências políticas e midiáticas, acabam desacreditados.
Esse é o enredo de Não Olhe Para Cima (Don’t Look Up), filme dirigido por Adam McKay e lançado pela Neflix no dia 24 de dezembro, tendo no elenco estrelas como Leonardo DiCaprio, Jennifer Lawrence e Meryl Streep. Uma tragicomédia que fala, satiricamente, sobre a dura realidade – e mais duras consequências ainda – do negacionismo científico.
Com o avanço da internet, ao mesmo tempo em que o globo se envolveu de forma cada vez mais íntima e contínua com a informação a partir de conexões em tempo real, mais essas conexões em busca de informação se tornaram informais. As redes sociais e os aplicativos de conversação trouxeram a figura icônica da “tia do zap”, aquela pessoa que acha que só é verdade aquilo que recebe no grupo da família ou no perfil de um político que admira.
No início da semana, logo depois de sua estreia, o longa-metragem foi um dos maiores tópicos de repercussão no Twitter, no Facebook e em outras redes. Em meio à intensa polarização ideológica no Brasil, em que usar máscara e apoiar vacina viraram atitudes de “esquerdistas”, nada mais comum do que ver no filme também a projeção das próprias ideias sobre o cenário político-eleitoral conjuntural. E assim se projetou, em vários memes, a associação entre pessoas que entraram para a história da pandemia no País e os personagens do enredo da película.
É bem verdade que, dados os tipos protagonistas do filme, não dá para deixar de fazer uma comparação à vida real: a presidente dos EUA, Janie Orlean, interpretada por Meryl Streep, “parece” mais Donald Trump do que Jair Bolsonaro, mas o comportamento de seu filho Jason Orlean (Jonah Hill) – inspirado, na verdade, no genro do ex-presidente estadunidense, Jared Kushner, seu conselheiro e assistente – lembra bastante o vereador Carlos Bolsonaro, o filho “02” do mandatário brasileiro. Em um caso em que a arte imita a vida, no papel da doutoranda Kate Dibiasky, Jennifer Lawrence parece incorporar a pesquisadora brasileira Natália Pasternak: em uma cena de um programa de TV, Dibiasky surta ao vivo com as firulas dos apresentadores diante da notícia alarmante e urgente e grita que “todos vão morrer!”. Natália havia feito algo parecido ao se irritar profundamente com uma reportagem que refletia sobre o estresse com quem não quer usar máscara no meio da pandemia.
O filme, divertido apesar do enredo pesado, não é uma obra-prima da sétima arte, mas cumpre seu papel: traz ao debate não apenas uma crítica a quem se nega a reconhecer os fatos objetivos tais como narrados pela ciência ou vê por trás dela interesses ocultos e maléficos.
Mas, claro, é muito mais do que um filme sobre Trump ou Bolsonaro, ou mesmo sobre o momento pandêmico. Tanto não se restringe a isso que foi idealizado em 2019, antes do novo coronavírus surgir. Na verdade, o filme em tese apelaria muito mais para a metáfora do aquecimento global como o cometa que inexoravelmente atingirá em pouquíssimo tempo o planeta se nada for feito. Diante do aviso da ciência, as pessoas reagem de uma forma usual quando são incomodadas por algo verdadeiramente fatalista: negam o fato. Isso vale para as autoridades, para a imprensa e até mesmo para parte da classe científica, que, por holofotes, por interesses ou por crença, passam a praticar uma espécie de anticientificismo, dando autoridade de fala a quem não a tinha.
Se vale a pena assistir Não Olhe Para Cima? Vale muito a pena, pela forma didática com que expõe a reação humana diante de uma hecatombe iminente. Por isso, a melhor forma de assisti-lo é se libertar da prisão em um cenário apenas – no caso, as alusões ao governo Bolsonaro.
Dessa maneira, é possível entender de forma mais ampla como a protelação de medidas diante de algo grave – inclusive na dimensão pessoal, é preciso ressaltar – não vão extinguir a gravidade do fato. Esperar não é saber, diria o trovador dos anos 60. Muito menos diante de tantos sinais.