Uma grande surpresa. É assim que o paciente Adailton Martins Neto, de 47 anos, relata, com lágrimas nos olhos, a forma que recebeu a notícia que seria, enfim, transplantado. Foram só dois meses de fila, mas o paciente já estava há dois anos na hemodiálise. Segundo o médico especialista em transplantes, Marcus Vinícius Chalar, em média, pacientes “painel zero” – que significa que tem menor risco de rejeição de um órgão após análise de uma série de fatores de risco -, ficam de três a seis meses à espera de um transplante. E Goiás, inclusive, tem uma das filas mais rápidas do país.

Era um domingo quando Adailton recebeu a ligação do hospital. “Eu achei que era uma chamada de rotina. Perguntaram se eu estava bem e eu disse que sim”, recordou. Quando a voz do outro lado da linha o comunicou que seu rim novo estava à sua espera, não conteve a emoção. A esposa, incrédula, ficou em choque. Era como se não acreditasse que o sonho do transplante se tornaria realidade. Três horas e meia depois de ser avisado, o paciente já tinha chegado em Goiânia vindo de Catalão, onde mora, e estava dando entrada no Hospital Estadual Alberto Rassi, mais conhecido como HGG.

Adailton Martins Neto, de 47 anos, recebeu um novo rim há cerca de duas semanas e se recupera bem| Foto: Leo Iran

No dia em que foi transplantado, 8 de maio, uma segunda-feira, outras três pessoas também realizaram transplantes no centro cirúrgico do HGG, onde ficam as três equipes especializadas do Estado. “Foram quatro transplantes de rins na sequência. Quase que simultâneos, o que é um desafio em qualquer hospital do mundo”, relatou o médico cirurgião.

Números positivos

E os números mostram o porquê do “congestionamento” de cirurgias. Goiás registrou um aumento de 89% no número de transplante de órgãos e tecidos de janeiro a abril de 2023, em comparação com o mesmo período do ano passado. O total de transplantes de órgãos e tecidos subiu de 137 para 259, do primeiro quadrimestre de 2022 para o mesmo período deste ano. O motivo? O médico explica: “Na pandemia, era muito difícil realizar um transplante. Agora estamos voltando à normalidade”.

Comparado com o mesmo período no ano passado, foram realizados 193 transplantes de córneas (um aumento de 107%). “Esse é o mais comum porque é de mais fácil captação. Pode ser captado até no IML (Instituto Médico Legal)”, argumentou o doutor. Mas além das córneas, 50 de rins foram transplantados (avanço de 78,5%) e 12 pacientes receberam transplante de medula (incremento de 140%). Ainda teve dois transplantes de fígado, a mesma quantidade registrada no mesmo período de 2022, e dois de músculo esquelético (queda de 77,7%).

No dia 13 de maio, o Hospital de Urgências de Goiás (Hugo) fez uma captação. O fígado foi enviado para o Distrito Federal, os rins para o Rio Grande do Sul e as córneas ficaram em Goiás. No dia seguinte, 14 de maio, outra captação também foi realizada no Hugo e os rins foram doados para um paciente em Minas Gerais. Na segunda-feira, 15, mais uma captação de rins e córneas foi realizada no Hospital Estadual de Urgências Governador Otávio Lage de Siqueira (Hugol) e destinadas para pacientes do próprio Estado.

Avião do Estado dá apoio na logística do transporte de órgãos | Foto: SES-GO

O médio explica que, se um rim é captado em Goiás, esse rim fica aqui. Se por acaso não tiver ninguém compatível no Estado, o órgão não é descartado. O sistema nacional de transplantes é acionado e vai encontrar no país um receptor compatível e determinar para onde o órgão vai ser enviado. “A gente recebe rim do Amapá, Roraima, Mato Grosso. Rins daqui vão pra Minas Gerais. É uma logística que é fantástica. Todo Estado tem sua própria central e o sistema nacional, que é ligado ao Ministério da Saúde, coordena tudo isso para que essa logística aconteça”, detalhou o cirurgião.

O transplante de rim é o mais comum no mundo entre os órgãos sólidos. “É o que gira realmente todos os sistemas por não ser o mais crítico. A gente tem um tratamento eficiente que é a hemodiálise. Se o transplante não der certo, você tem a opção. No caso de fígado e coração, não. Se o transplante não der certo, acabou”, alertou o cirurgião.

Apesar dos números positivos, em Goiás, 1.808 pessoas ainda aguardam por um transplante. Desse total, 1.455 precisam de córneas, 300 de rins e 3 de fígado. “Sempre teve uma discrepância: muita gente precisando de um transplante e muito poucos órgãos disponíveis”, disse o cirurgião que faz transplante de rim e de pâncreas no HGG. E o maior desafio ainda é a família do doador: 67,6% recusam em doar os órgãos dos parentes.

Mesmo assim, houve incremento dos órgãos captados, com 64 rins (aumento de 56%), 13 fígados (30%) e 285 córneas (53,2%). O número de doadores também apresentou avanço nos primeiros quatro meses de 2023, com um total de 29, o que representa aumento de 52,6% em relação aos 19 doadores do período anterior. O destaque foi para o número de pessoas que doaram tecido ocular (137 no total), com aumento de 65% na comparação com os 83 do quadrimestre anterior.

Enquanto o médico relata uma fila de espera de seis a três meses aqui em Goiás, em São Paulo, segundo ele, a espera por um órgão pode durar dez anos. E ele explica o porquê: “nossa equipe é especializada em transplantes. A gente tem como transplantar um paciente muito idoso, criança, rins que têm alguma má formação ou tiveram algum acidente na captação, a gente ‘conserta’ esse rim, arruma isso e transporta. Aqui nós aproveitamos o máximo possível dos rins que são ofertados. A qualquer dia e qualquer hora”.

“A gente tem pacientes que vêm de fora e inscrevem aqui. Tem gente de São Paulo, por exemplo, que está fazendo o caminho contrário do que se imagina. Tem paciente também do Espírito Santo, Maranhão e diversos outros Estados. E isso pelos bons resultados que estamos tendo aqui”, relatou o especialista.

Do diagnóstico ao transplante, há um longo caminho a percorrer

Adailton herdou o problema de rins da mãe, que sempre relutou em fazer o tratamento. “Por falta de conhecimento”, justificou o paciente. A família sempre respeitou a vontade da matriarca e, por isso, não buscou informação. “Nosso erro. Ninguém buscou entender nada no assunto”, reconheceu o filho, que relata ainda que quando não teve mais jeito e a mãe precisou fazer hemodiálise, já era tarde. Ela enfartou e acabou morrendo.

Por conta desse histórico familiar, receber o mesmo diagnóstico da mãe não foi nada fácil. “Meu mundo acabou. Eu sabia o resultado final dela e eu pensava: Será que vai acontecer a mesma história?”, lembrou com lágrimas nos olhos. Como cresceu vendo sua mãe relutando, ele também não queria fazer o tratamento.

Foi quando teve que fazer uma angioplastia que Adailton não teve escolha: precisou fazer hemodiálise. “Eu dei trabalho demais. Tirava os catéteres. Não queria fazer. Até que tive que aceitar”, assumiu. E toda essa relutância, ele voltou a frisar, foi “por falta de conhecimento”. Já durante o tratamento, via os pacientes que já estavam há mais de dez anos precisando ir pelo menos três vezes por semana ficar sentando em uma sala, preso a uma máquina que filtra o sangue.

E foi durante uma sessão de hemodiálise, inclusive, que uma assistente social sugeriu que Adailton entrasse na fila de transplante. “Ela me explicou direitinho, eu comecei a fazer os exames e me passaram aqui pro HGG”, recordou. Por cerca de um ano, ele fez o acompanhamento com a equipe. Foram muitos exames e consultas até entrar na fila.

Nesse período, conciliou o trabalho com o tratamento boa parte do tempo. Adailton é vendedor e vivia viajando. Saía de casa na segunda e voltava na quinta. “Com o diagnóstico e o tratamento, isso acabou. Pensei: acabou minha vida. Como vou cuidar da minha família? Uma loucura”, disse. Mas ele pontua que os clientes entenderam a situação e que não o abandonaram até que seu afastamento pelo INSS saísse. Foi quando ficou um pouco mais calmo.

“Não sinto nada. É como se nem tivesse feito a cirurgia”, diz o paciente feliz da vida | Foto: Leo Iran

“Tranquila” é o adjetivo que Adailton escolheu para definir sua reocupação. “Não sinto nada. É como se nem tivesse feito a cirurgia”, disse feliz. No leito do hospital, só reclama de saudade da família. A esposa precisou ficar em Catalão para cuidar da filha do casal, que tem apenas onze anos. Com irmão, ele se comunica o tempo todo pelo celular. “Mas não é a mesma coisa que estar junto, presencialmente”, lamentou.

Agora, quando pensa em futuro, viajar é a palavra que vem à mente de Adailton. “Quero pegar minha família e fazer um passeio bem legal com eles. E aproveitar essa vida nova agora. Enquanto Deus me der vida, eu vou aproveitar ela ao máximo”, garantiu. Até porque, nos últimos dois anos, o paciente esteve privado disso. “A hemodiálise restringe muito a locomoção de quem precisa fazer o tratamento. E o transplante devolve uma liberdade, uma qualidade de vida que pra qualquer paciente é muito bom”, explicou o médico.

Avanço da medicina e investimentos possibilitam mais transplantes

O médico lembra que há 20, quando estava começando a fazer transplantes, para que fosse possível realizar uma cirurgia desse tipo em Goiás, era necessário que a equipe envolvida se dedicasse muito. “Dependia de um esforço pessoal das pessoas envolvidas que gostavam muito do que faziam”, revelou. Nessa época, três lugares faziam transplante no Estado: além do HGG, o Hospital Santa Casa de Misericórdia de Goiânia e o Hospital Santa Genoveva também realizam as cirurgias.

Médico comemora aumento do número de transplantes: “nossa situação hoje é muito boa mesmo, parecida com a de qualquer outro centro do mundo” | Foto: Leo Iran

De lá pra cá, a Central de Transplantes vive outra realidade. “Os serviços cresceram muito nesses últimos anos e nossa situação hoje é muito boa mesmo, parecida com a de qualquer outro centro do mundo”, destacou o cirurgião, elogiando a estrutura que foi montada com o apoio do governo no HGG. “Quando o Estado entra querendo ajudar, muita coisa fica mais fácil”, completou.

O médico destaca ainda que qualquer pessoa pode se tornar um doador de órgãos. São vetados de fazer a doação apenas os indivíduos que possuem doenças com risco de transmissão para o receptor, como câncer ou HIV, por exemplo. ”Antes a gente recusaria o órgão de um paciente muito idoso. Hoje não. Isso porque a gente foi criando várias estratégias para tentar maximizar a doação de órgãos”, explicou.

E a lógica por trás disso é simples: um rim de um paciente muito idoso que funciona, por mais que não tenha uma vida útil extensa, é melhor do que um rim que não funciona. “Colocar esse rim em alguém muito jovem, de 20 anos, não vai resolver o problema dele pra sempre. Então a gente conversa com o paciente no consultório e fala sobre todos os prós e contras. E por mais que não seja a melhor alternativa, pode criar uma ponte, permitindo que ele se recupere e chegue com uma saúde melhor no próximo transplante”, detalhou o médico.

O cirurgião explica que é comum que transplantados tenham que fazer mais de um transplante no decorrer da vida. “Aqui a gente tem paciente no terceiro, quarto transplante de rim”, contou. E isso porque, muitas vezes, transplantaram ainda na infância, depois, quando jovens, e novamente na fase adulta. “Mas passaram a vida fora da hemodiálise. O que é muito melhor para eles”, relatou.

“Às vezes a gente não pensa, mas a diálise também tem mortalidade. O paciente vai lá, senta na cadeira dia sim dia não, é um ambiente muito monótono e essa causa da morte pode passar desapercebida”, comentou.

Desinformação ainda atrapalha doação de órgãos

Além disso, o médico lamenta que, historicamente, muitas lendas foram criadas em torno do transplante de órgãos. “É aquela história clássica que alguém acorda à noite numa banheira de gelo com uma cicatriz e se dá conta de que roubaram seu rim. Mas, olha: eu preciso de um hospital desse tamanho pra fazer um transplante. Como é alguém conseguiria operar numa banheira de gelo? Não pode ser feito dessa forma. Isso não existe”, desmentiu.

O médico ainda destaca que as pessoas acreditam que quando alguém é doador vão querer matá-lo no hospital para poder pegar os órgãos, o que, para ele, é uma grande falácia. No Brasil, já se tentou fazer com que todos fossem doadores universais, nos moldes do que se tem na Europa. “A ideia foi boa, mas quando saiu essa notícia, sem discussão com a sociedade, as pessoas se assustaram. Sentiram que o Estado estava dizendo que era dono dos órgãos delas. E isso acabou prestando um desserviço muito grande. Por receio, as pessoas não queriam mais ser doadoras”, lembrou o doutor.

“Agora, aos porquinhos, da forma correta, com as campanhas de conscientização, a situação tem melhorado. Tem famosos transplantados que vão na televisão contar sua história e todos vêem que são pessoas normais, iguais a todo mundo”, comemorou Marcus. Só para se ter uma ideia, a estrela pop internacional Selena Gomes já passou por transplante de rim. No Brasil, o ator Norton Nascimento fez um transplante de coração e o ator Duda Ribeiro foi submetido a um transplante de fígado. Outro ponto positivo é que o cirurgião garante que todas as grandes religiões do mundo hoje apoiam o transplante: “Não tem nenhuma que se opõe a isso”.

E nos mais de 20 anos trabalhando com transplantes, um caso marcou o doutor: era um farmacêutico. “Foi no Hospital Santa Genoveva e depois do transplante o paciente teve uma infecção fúngica muito grave e ficou na UTI por um ano. Várias infecções, ficou em respirador mecânico por meses. Mas, no fim, a infecção cedeu, as coisas foram dando certo e ele se recuperou”, falou com orgulho.

Nesse caso específico, por alguma razão que o próprio médico desconhece e não entende – pelo menos não ainda -, o paciente em questão desenvolveu uma tolerância ao rim transplantado que o desobriga a usar remédios para evitar a rejeição do órgão. “Ele está ótimo. A aposentadoria dele foi revertida e ele voltou a trabalhar”, contou o especialista em transplantes. E tudo isso graças ao transplante.