Ao insultar a também deputada Maria do Rosário, Bolsonaro não só comprova estatística que aponta para o quão o Brasil é machista, como também revela que o feminismo ainda tem muito a conquistar

Onze anos depois, deputado Jair Bolsonaro volta a insultar Maria do Rosário e vai além com a explicação:  “Não merece porque ela é muito feia.  Não faz meu gênero. Jamais a estupraria” | Foto: Gabriela Korossy/ Câmara dos Deputados
Onze anos depois, deputado Jair Bolsonaro volta a insultar Maria do Rosário e vai além com a explicação:
“Não merece porque ela é muito feia.
Não faz meu gênero. Jamais a estupraria” | Foto: Gabriela Korossy/ Câmara dos Deputados

Yago Rodrigues Alvim 

“Mas o que é isso? Mas o que é isso?”, repetia. Era reação, surpresa, ao que os ouvidos escutavam. Sem nomes nem cargos, era apenas uma mulher que escutava, de um homem, “jamais eu ia estuprar você, porque você não merece”. E, depois de apontar-lhe o dedo, exclamava: “Vagabunda”. Sem câmera, a cena seria apenas mais uma pergunta abafada em algum lugar do Brasil. “Mas o que é isso?” vale em inglês, francês, espanhol, vale em qualquer língua. Por que isso? Por que não “jamais eu ia estuprar você, porque nenhum ser humano merece”?

Com nomes e cargos, era Maria do Rosário, deputada federal pelo Partido dos Trabalhadores do Rio Grande do Sul, ante Jair Bolsonaro, também deputado, pelo Partido Progressista do Rio de Janeiro. “Não foi o suficiente”, pode ser o que Bolsonaro tenha pensado ao relembrar o episódio, em que ele diz que não a estupraria, no Salão Verde da Câmara, em 2003.

Pois, na terça-feira, 9, foi esta a reação que ele teve, após Maria chamar a ditadura militar no Brasil (1964-1985) de vergonha absoluta. “Fica aí, Maria do Rosário. Fica. Há poucos dias, tu me chamou (sic) de estuprador, e eu falei que não ia estuprar você, porque você não merece. Fica aqui pra ouvir”, relembrava ao ver a deputada sair do salão.

Na cena de 2003, Maria chamou Bolsonaro de “estuprador” em meio às discussões de redução da maioridade penal. Depois de mais de 10 anos, em entrevista ao portal de notícias Zero Hora, a explicação do candidato mais bem votado no Rio de Janeiro ultrapassou, mais uma vez, qualquer discussão ou insulto: “Ela não merece porque ela é muito ruim, porque ela é muito feia. Não faz meu gênero. Jamais a estupraria”.

Direitos desiguais

As notícias se amontoam e morrem com o nascer do dia seguinte, de tão velhas. Mas não envelhece a matéria, a essência. Se envelhecesse, talvez a cantora Pitty não teria dito que “quase não é lá” no programa Altas Horas, da Rede Globo, exibido no sábado, 6. A frase veio em discordância à fala da também cantora Anitta, que comentava sobre o comportamento feminino. “As mulheres lutaram tanto para ter os mesmos direitos que os homens que, quando chegou o momento em que elas tiveram: ‘ah, o salário é igual, a mulher também vota, a mulher tem emprego’; chegou uma hora em que ela quis tomar conta da situação”, disse Anitta.

Entre outras frases de Anitta, surgiam: “Eu não acho bonito sair e ‘pegar’ cinquenta, nem o homem e nem a mulher”; “A mulher acabou querendo tomar o lugar do homem em todas as situações”; “É instinto masculino ele querer proteger, cuidar, ser cavalheiro”; “O homem fica desestimulado”. Foi depois desses argumentos da cantora pop que Pitty relembrou: “Nós [mulheres] não temos os mesmos direitos”. A resposta de Anitta foi: “Mas estamos quase lá”. Foi, então, que Pitty falou que “quase” não é “lá”. “Ainda temos muito que conquistar”, completou.

Estimativas

“Muito” é pouco para o que mostra a pesquisa realizada pelo Instituto Avon, em parceria com Data Popular: 96% de dois mil jovens, entre 16 e 24 anos, entrevistados reconhecem o machismo no Brasil. Nesse sentido, as mulheres têm “muitíssimo” a conquistar – se é que a palavra é o bastante diante do dado. E a pesquisa ainda mostra índices assustadores.

Intitulada “Violência Doméstica: você está ligado?”, a pesquisa foi divulgada no início do mês, dia 3 de dezembro. Por meio de um questionário online de autopreenchimento, 1.029 mulheres e 1.017 homens, das cinco regiões do país, revelam uma realidade contraditória –– hipócrita até. Pois, ao mesmo tempo em que consideram o machismo, 68% dos entrevistados dizem achar errado a mulher ir para a cama no primeiro encontro. E, não só, 76% criticam as mulheres que têm vários “ficantes”.

Outro exemplo, é que 96% dos jovens aprovam a Lei Maria da Penha. Entretanto, o índice de “homens que admitiram ter xingado, empurrado, ameaçado, ter dado tapa, impedido de sair de casa, proibido de sair à noite, impedido o uso de determinada roupa, humilhado em público, obrigado a ter relações sexuais, entre outras agressões” é de 55%.

A pesquisa mostra que 66% das mulheres entrevistadas já sofreram algum tipo de agressão, entre as apresentadas. As cantadas ofensivas fazem parte da pesquisa e a estatística não é baixa: 68% das mulheres declararam já ter recebido a tal cantada. Em festas, 44% das entrevistadas já foram tocadas ou assediadas por homens. Quanto ao sexo e liberdade sobre o próprio corpo, o Instituto mostra que 37% das mulheres, por insistência do parceiro, tiveram relação sexual sem camisinha.

Nas ruas, o índice retrata que 31% das mulheres já foram molestadas no transporte público. A pergunta sempre vem: será que os homens que fazem isso não tem mãe, não tem irmã, filha até? O caso é que mesmo os jovens que reconhecem o machismo e agressões já sofreram violência dentro da própria casa, pois 43% afirmaram ter visto a mãe ser agredida pelo parceiro.

“A mulher é morta por ser mulher”

Cantora Pitty acredita que os direitos das mulheres não são iguais aos dos homens. Juíza Adriana Mello defende inclusão do crime de femicídio no Código Penal. | Fotos: reprodução/Facebook | Marcos Tristão/O Globo
Cantora Pitty acredita que os direitos das mulheres não são iguais aos dos homens. Juíza Adriana Mello defende inclusão do crime de femicídio no Código Penal. | Fotos: reprodução/Facebook | Marcos Tristão/O Globo

Ainda no hall noticioso, a matéria, agora, era quanto às mortes em ambientes domésticos e familiares. Se não fossem os intertítulos, a entrevista divulgada no portal do jornal “O Globo” traria uma posição unilateral: a de uma juíza que defende a inclusão do crime de femicídio no Código Penal. E se não fosse a assinatura do texto, poderia esperar que a notícia, em si mesma, desprestigiasse a proposta.

Quando se lê “Por Fernanda da Escóssia”, entende-se que foi um texto escrito por alguém que vive a realidade atual de tantos índices e que não a esquece. No artigo, Escóssia primeiro apresenta a juíza de 44 anos Adriana Mello, que estudou, em seu doutorado pela Universidade Autônoma de Barcelona, 38 casos de homicídios de mulheres no Rio de Janeiro em um período de dez anos. O início do texto já diz que são casos de mulheres mortas no momento em que quiseram romper a relação.

Escóssia não se esqueceu do ranking de homicídio de mulheres, em que o Brasil ocupa a sétima posição. Adriana explica que femicídio é o assassinato em que a mulher morre por ser mulher. Em que ela morre por querer terminar um relacionamento. A doutora não cita, em sua explicação, se quem comete o assassinato é um homem. Ou seja, o homicídio pode ter sido cometido por uma mulher. O que, entretanto, não desconfiguraria uma morte devido a uma relação de poder e de subjugação.

A reportagem indaga o motivo da tipificação já que o crime de homicídio já está no Código Penal. A defesa da juíza é que o femicídio ou feminicídio, forma também válida, melhora os inquéritos, auxilia na criação de políticas públicas. Em um ponto mais delicado, ela responde que “a pior coisa que se pode dizer de um homicídio de uma mulher é que ele foi passional. Porque você desqualifica, diz que foi na ira, na raiva, e não é”.

Na página da rede social Facebook, onde “O Globo” divulgou o texto (intitulado “Juíza defende inclusão de femicídio no Código Penal: ‘Mulher é morta por ser mulher’”), mais de 300 comentários traziam opiniões diversas que, em soma, acrescem e ponderam a defesa de Adriana. Um dos usuários, em sucinto comentário, escreveu “a questão não seria necessária se homicídio fosse punido adequadamente”. Outros acresciam nos termos de segregação e discriminação. Ainda que irônicos, como os que diziam que haveria, posteriormente, a criação de tipos “gayzídio”, “negricídio”, “catolicídio” ou “crencídio”, os comentários traziam questões sobre igualdade e diferença.

“Feminazi”

Ainda nos comentários, muitas menções a diferentes facetas que envolvem a proposta de Adriana eram trazidas à superfície. Em algumas, aparecia o termo “feminazi”. A palavra, muito utilizada na internet, é uma reação que, em um primeiro olhar, pode parecer ignorante. É uma reação dos que julgam, as pessoas que a utilizam, como extremista o empoderamento do que é feminino ou, simplificadamente, feminista.

Depois de outros olhares e reflexão quanto ao termo, o tom pejorativo pode dobrar de peso. Não que quem a use é totalmente esvaziado de alguma lógica ou perspectiva. Ainda assim, o termo pesa por, por exemplo, recordar os xingamentos a alguém do sexo masculino que se afeiçoa, sexualmente e além, por outro alguém também do sexo masculino. O xingamento a alguém homossexual ou gay, no exemplo.

As duas últimas sílabas de “feminazi” trazem a memória de “nazi”, o nazismo, a memória do que é hitleriano. Evocar Hitler propõe que as mulheres, que defendem o femicídio, vitimem os homens, no caso, por uma lógica exacerbada e cega de raça pura. E antes até, evocar o “nazi”, o nazismo enquanto ideologia, é propor uma discussão que envolve melindres políticos, econômico e social (em uma escala diferente).

Esvaziado, como parecem os comentários, é tanto quanto, em paralelo ao exemplo, “viadinho, bichinha, boiola, mariquinha, baitola” e até “mulherzinha” –– por que chamar um homem de “mulherzinha” é pejorativo, é esvaziado? Se fosse “mulher” não configuraria um xingamento? Aí, a própria ignorância mostra sua contradição. Mulher, assim como gay, envolve memórias históricas. Envolvem, ambas, questões culturais, sociais e políticas de minoria.

Relações de poder

Quanto à subjugação das minorias, o linguista holandês e autor do livro “Discurso e Poder”, Van Dijk, tem apontamentos sobre o discurso racista que servem, também, para as várias formas de relações entre o explorador e o explorado; entre o que se coloca em um patamar superior ao do outro. De acordo com o autor, os discursos discriminatórios são enraizados e repercutidos, reditos, pelos sujeitos que se mantém na elite (inclusive, aqui está inserido, segundo Van Dijk, a elite jornalística) –– da sociedade –– ou seja, o homem, o branco, o rico. Quem comenta sobre o holandês é a estudante de jornalismo e feminista, Sarah Teófilo.

“Ser mulher é uma luta diária. É estar atenta constantemente. É sair de casa e ter como o menor de seus medos o assalto”, diz. Sarah explica que, até 2009, o Código Penal só tratava como estupro a agressão com penetração vaginal comprovada. “Fomos conseguindo, aos poucos, mais direitos, como um ser que se reafirma como humano; como uma pessoa com direitos sobre o próprio corpo”, declara.

“O estupro é para mim o pior dos crimes; é uma forma clara de perceber a visão do homem, ainda hoje, sobre a mulher”, conta. Durante a escravidão e em diversos casos de guerra, a forma de punir um homem, de tirar-lhe a honra, era violentando-o. O escravo fugido se tornava um “coitado”. E a mulher vem sendo uma “coitada” há séculos, conta a estudante. “O estupro é mais do que tratar a mulher como ‘um pedaço de carne’, como dito por Carol Adams [escritora feminista americana]. É uma punição; é a retirada da honra do sexo oposto”, pontua.

Ela rememora a afirmação do deputado Bolsonaro, sobre a diferença salarial entre homens e mulheres –– “se a Dona Maria não quiser ganhar isso, que procure outro emprego”. Quanto a isso, Sarah é concreta e firme: “Nós não arranjaremos outro emprego. Lutaremos para estar no mesmo patamar que o homem tem reservado para si na sociedade”.

As diferenças entre ‘ser mulher’, ‘ser feminina’ e ‘ser feminista’ 

“Nascemos todos de um corpo de mulher”, lembra a atriz Cynthia Borges. Ela, quando pequena, via uma boca pintada e se via, de supetão, nesse mundo – que ela chama “Mulher”. Diz que queria crescer logo, para poder se pintar. Hoje, nem usa maquiagem, conta e se corrige: “Quase nunca uso”. Ela também se recorda do salto alto e das saias. Ainda que um dia tenham sido pensados para o guarda-roupa masculino, refletem bem o feminino. Embora, ressalva, com uma finalidade diferente da que valoriza um gênero. Para e, depois de um tempo, reflete: “Ao escrever isso, me dou conta de que neguei a identidade feminina, e negando eu a afirmo em mim”.

Cynthia propõe respostas ao que é esse universo “Mulher”. E, dele, extrai o que ajuda para uma melhor compreensão: “Cada vez que uma mulher se expressa, acontece um ato feminista, ainda que inconsciente e, por isso nem sempre como um desejo direto. Mas é que todas as relações nasceram de uma lógica patriarcal que limitava a voz feminina ao espaço da cozinha e do quarto. A voz masculina ecoava na sala, ecoava no mundo. Era social. Tentar expressar qualquer liberdade é feminista”.

Nisso, a compreensão de ser mulher enquanto constituição física, “nascer nesse corpo”, como diz a estudante de jornalismo Marina Romagnoli, vai além. Vai até o que diz, a também estudante, Amanda Damasceno: ser mulher é se reconhecer como tal. “Mais do que só nascer como mulher, aprender a se portar como uma e se reconhecer dentro daquilo que chamam ser mulher”. Por isso, mulher, feminina, feminino e feminista se entrelaçam: o reconhecimento enquanto mulher se liga ao universo do feminino que enfrenta coibições diárias. Por isso, como reforçam ambas as estudantes, a necessidade de luta pela igualdade sexual. Pela superação de uma realidade machista e, até para além, de um mundo sexista.

De batom e natural

Em reflexão, a fotógrafa Silvinha Biu escreve: “Me sinto feminista, uma feminista ao meu modo, em meu ritmo. Queimei meus sutiãs, mas ainda tenho vergonha de mostrar aos outros os pelos das minhas axilas –– apesar de preservá-los para mim, quando me sinto bem com eles. Isso não deveria me fazer me sentir mais ou menos mulher. Pra mim, ser mulher tem sido um momento de descoberta, intensa dosagem entre o que quero e o que não quero. Entre patricinhas e feminazis, procuro meu ponto de equilíbrio”.

Hoje batom, amanhã toda natural. Hoje se depila, amanhã também. Semana que vem sente uma gostosa harmonia ao ver os pelos grandes. Em confissão, diz: “Hoje, de verdade, coloquei cílios postiços! Fiquei linda! Mas posso me achar linda sem eles também. E com eles também. Isso pra mim sim é ‘meu corpo, minhas regras’”.

“Feminx”

A cientista política Ludmila Melo partilha do infalível: que ser feminina é se apropriar da identificação do flanco feminino, das particularidades pragmáticas que a constroem mulher, é ter, em si, certeza de que é feliz. Seu feminismo configura uma reposta ao que é feminino independente de ser mulher ou feminina.

“A/o feminista é todx aquelx [forma de escrita que exclui o artigo indicador de gênero, propondo liberdade sexual] que se manifesta em favor da equidade de gênero, que encampa árdua luta por ter a discriminação ligada ao sexo ceifada”, escreve e continua: “O feminismo (‘ismos’ sacais) é, creio, uma conduta metodológica expansionista, que prioriza a legitimação de minorias – muitas vezes, nem tanto uma minoria numérica, mas representativa, que agrega para fortalecer. Como é o caso das feministas que saltam para além das causas da mulher, colocando sob a ribalta questões de sexualidade de toda sorte (gays, trans…)”.

A estudante de arquitetura e urbanismo, Tayane Perné, volta ao espaço da cozinha, do quarto, citado por Cynthia. Volta para dizer que é dele em que o feminino pretende sair: “Ser feminista é um conceito que se aproxima da luta social, filosófica e política do feminismo, que visa os direitos equânimes e o rompimento de padrões patriarcais na sociedade, dando ao ser a oportunidade de ser feminina. Ou seja, de compreender sua existência livre dos princípios patriarcais que ainda fundamentam a sociedade atual”. O lugar que se pretende chegar é um lugar em que ser feminina é ser, seja de genitália masculina ou feminina.

Shayene Karla é a única mulher da sua turma de engenharia de controle e automação. Namora um rapaz e conta, sem receio algum, de seus beijos com outras garotas. Quanto às perguntas, ela responde que não precisa de salto, batom ou ter filhos para ser mulher. Ser mulher, diz, antes de tudo é um estado de espírito. Nas palavras, declara: “A gente não é mulher só para entrar na estatística populacional”. Ser mulher é só uma questão de ser.

“Não se nasce mulher, torna-se mulher”

Em francês, a professora que vive em Goiânia, Laurence Lalloué citou a célebre frase de Simone de Beauvoir, presente no livro “O Segundo Sexo”, de 1949: “On ne naît pas femme, on le devient”. Segundo Laurence, essa é a primeira coisa que vem em sua cabeça quando se fala de feminismo e feminilidade e que é a base para refletir quanto ao tema.

Laurence propõe que não há “um” feminismo, e sim “muitos” feminismos –– em livre tradução de “je pense qu’il n’ y a pas ‘un’ féminisme mais ‘des’ féminismes”. Existem muitos jeitos de ser feminista, no século 21, explica. Não dá para engessar o que se é. São muitas as faces que envolvem a idade, a cultura, o curso pessoal de cada um, seja homem ou mulher. E, assim, relembra o recente discurso da atriz Emma Watson à Organização das Nações Unidas (ONU) e reflete: Podemos dizer que o discurso de Emma é mais aceitável que as ações do Femen [grupo feminista ucraniano]?

“Quando, aos 14 anos, eu comecei a ser sexualizada pela mídia; quando, aos 15, minhas amigas começaram a deixar os esportes que tanto amavam porque não queriam ficar musculosas demais; quando, aos 18 anos, meus amigos homens eram incapazes de expressar seus sentimentos, eu decidi me tornar uma feminista”, afirmou Emma, em setembro deste ano. A atriz propôs aos homens que se juntem a causa, uma vez que a igualdade dos direitos civis cabe, também, àqueles do sexo masculino. Por outro lado, o grupo Femen propõe protestos, extremismo e até ateísmo. No site oficial, o grupo escreve “Our God is a Woman!”, em livre tradução “Nosso Deus é uma Mulher!”.

O que Laurence propõe, diferentemente, é que ambas as expressões feministas contribuam enquanto debate ao que é o feminismo, o feminino; ao que é esse se tornar mulher, que Beauvoir escreve. Isso, para não enrijecer o que é ser, para chegar, de certa forma, ao que tanto Watson, quanto Femen presam: liberdade.

“Nós, mulheres, morremos porque somos vítimas de uma sociedade que é sexista e misógina”

Jornalista Luana Borges: “Precisamos superar o feminino  e o masculino essencializado e entender que gênero é cultural  e sexo é biológico, perpassado pela cultura” | Foto: Fernando Leite/Jornal Opção
Jornalista Luana Borges: “Precisamos superar o feminino
e o masculino essencializado e entender que gênero é cultural
e sexo é biológico, perpassado pela cultura” | Foto: Fernando Leite/Jornal Opção

Nasceu em Mineiros, município goiano, onde morou até os dez anos de idade. Há 16 anos, Luana Silva Borges vive em Goiânia, onde se fez jornalista. Enveredou-se pela teoria da narrativa literária, pois a escrita jornalística já não a satisfazia. Com dissertação intitulada “Corpos ex-cêntricos: o feminino e a linguagem em ‘A cidade sitiada’ e ‘A hora da estrela’, de Clarice Lispector”, ganhou o título de Mestre pela Universidade Federal de Goiás. Seu foco de pesquisa é a literatura e os estudos culturais. No jornalismo literário e em Clarice, encontrou o silêncio e a caracterização feminina. E, pelo que via ao redor e por uma coisa mais próxima, dentro de si, Luana fala quanto a esse silêncio, que permeou o universo feminino.

O que é ser feminista e feminismo?

Ser feminista, hoje, é lutar por uma igualdade de direitos. Ao contrário do que muitas pessoas falam, enquanto “machismo às avessas” ou “o que é o machismo pela superioridade do homem, é o feminismo pela superioridade da mulher”, entre os tantos discursos desqualificantes das lutas do movimento de mulheres e do movimento feminista, o feminismo não presa por superioridade da mulher com relação ao homem e nenhum tipo de sexismo.

O feminismo presa pela igualdade de direito e pela superação desse sexismo, em uma sociedade que é muito marcada pelo discurso de gênero. O feminismo busca uma sociedade mais livre, mais justa; uma sociedade com igualdade de direito e reconhecimento da diferença. Busca, sobretudo, uma sociedade em que mulheres e homens sejam mais livres. O feminismo não liberta apenas as mulheres. Ele liberta homens e mulheres em seus processos cotidianos de relacionamentos com o próprio corpo e de relacionamento com o outro, em todas as esferas, que são políticas. O feminismo, hoje, é uma igualdade de direitos.

O que é ser feminina?

Ser feminina faz parte de uma desconstrução dessas definições, desses perfis de gênero muito arraigados. Existe o masculino entendido como virilidade, o homem que não chora, o que enfrenta tudo, que projeta o sucesso, força, independência. É o homem-herói. E o feminino é o oposto a isso. É a mulher recatada, que fala e come pouquinho, que ri sem estardalhaço e que, ao contrário da projeção, fica embutida, delicada. Ela é feita para agradar, para cuidar, é maternal. Esses gêneros são muito bem definidos pela sociedade e eles nos aprisionam.

Se um homem chorar, ele vai ser alvo de todas as chacotas desde criancinha, na escola; e se a mulher rir alto, espalhafatosa, ela vai ser alvo de julgamento quanto a sua figura e atitude. Nesse sentido, o feminino essencializado é uma das superações que o feminismo tem que buscar. Bem como superar o masculino citado. Se o feminismo for tomado enquanto delicadeza, recato, estaremos presas, aprisionadas pelo apartheid da delicadeza. Um apartheid doméstico, que faz com que não nos projetemos. O feminismo tenta desconstruir esses estereótipos de gênero, muito segmentados.

Ser feminina, hoje, para não essencializar o feminino, é quando a mulher gosta de si, quando ela se dá bem com esse corpo feminino que tem e o exerce muito bem em suas liberdades; com as roupas que quiser usar, com o jeito que quiser rir, que quiser tratar sua maternidade ou não. O feminino tem que ser tomado pelas mulheres como um processo de liberdade do próprio corpo. Ser feminina é poder ser. E poder ser significa sair na rua do jeito que eu quero. É passar ou não a maquiagem do jeito que eu quero. É eu cuidar de mim do jeito que eu quero e, mais do que merecer, é ser respeitada por conta disso, pois são escolhas individuais minhas e carregam cargas políticas que devem ser respeitadas.

O que é ser mulher?

A escritora Simone de Beauvoir, com a frase “não se nasce mulher, torna-se mulher”, fez justamente uma crítica a esse modelo de gênero, que tem em nossa sociedade, de separação entre um gênero essencializado feminino e um gênero essencializado masculino. Se eu me torno mulher, eu estou presa a esse gênero essencializado feminino, estou impossibilitada de fazer várias coisas. Então, já quase na década de 1950, quando Simone de Beauvoir escreve, em seu livro “O Segundo Sexo”, que não se nasce mulher, torna-se mulher, ela falava que a sociedade que vai traçando uma história cultural para o sujeito.

Portanto, é uma elaboração cultural; não existe a ideia de natureza, dos estereótipos femininos que nos aprisionam. Você se torna mulher a partir dessas condições culturais. Ser mulher, hoje, também é perpassado por esses aprisionamentos culturais. Aí, temos que romper com a ideia de natureza que pré-determina: não há a propensão natural à gravidez, à maternidade, ao zelo, ao cuidar, à complacência. Isso não é natural, é construído. E a mulher, hoje, passa por essas construções que nos aprisionam sim. Pois, enquanto isso for tomado pelos nossos pares como “natural”, “elementos da natureza”, “biológico”, não haverá discurso possível: “ah, nasceu assim, vai morrer assim. É natural”. E ser mulher, ainda, é perpassado por esse discurso. Simone de Beauvoir tentou lutar contra isso.

Nós temos que mostrar por meio da luta social, por meio dos nossos textos, de nossas profissões, dos nossos avanços na área política que não são elementos naturais, e sim culturais. Temos que desbravar este terreno e dizer que é possível lidar com a liberdade do nosso corpo, que não temos que seguir os ditames que se esperam e, nessa medida, ser mulher hoje, é empenhar essa luta, ainda que inconscientemente nós não nos digamos feministas. Pois, toda mulher que sai de casa para lidar com essa sociedade que é muito sexista e que consegue lidar com ela, com esse lugar de empoderamento, elas tem sim atitudes políticas. São atitudes que tentam não desvalorizá-las, como o discurso corrente desvaloriza. É impressionante quantas pessoas ainda dizem que não é necessário o feminismo, sendo que a sociedade é tão sexista.

A declaração do Bolsonaro à ex-ministra é de um sexismo absurdo. O próprio relacionamento que as pessoas têm com a questão do estupro, de culpabilização da vítima; tudo isso vem de argumentos misóginos de que nós somos merecedoras da violência, que somos merecedoras do estupro, do escárnio, da dor e por que nós somos merecedoras da dor? Por uma misoginia absurda. Essas mesmas pessoas que pensam assim, consciente ou inconscientemente –– pois muita das vezes essa violência está tão arraigada –– se perguntam “com que roupa ela estava?”. No automático.

Essas pessoas que pensam assim são as mesmas que perguntam o porquê do feminismo. E o feminismo está aí para responder isso; para mostrar que ser mulher hoje é lutar pela igualdade de direitos, pelo fim do sexismo. E que ser mulher hoje, sendo feministas ou não, tendo comportamentos femininos ou não, é lutar para que sejamos reconhecidas como mulheres e como mulheres livres. Sem sermos condenadas pelo que fazemos e pelo que deixamos de fazer com nosso corpo e com nossa identidade de gênero.

Quem nasce com genitália masculina pode ser mulher?

Pode. Nós vemos, hoje, mulheres transexuais. Existem também homens transexuais. Conheço algumas e trabalho com elas. O feminino é cultural. Depende da forma que você se porta no mundo e é vista no mundo. Então, se você usa as performances de gênero feminina, que incluem desde modo de vestir, de sentar, de falar ao modo de se colocar no mundo a partir da orientação feminina, você está fazendo uma performance; está se teatralizando no mundo enquanto mulher, enquanto feminina.

As mulheres transexuais, apesar de terem nascido homem, com a genitália masculina, elas se sentem, se portam e tem uma dieta hormonal –– chamam de dieta ––, para adquirir fenótipos femininos (seios, poucos pelos, cintura mais fina, voz, etc.). Elas se portam, se teatralizando na arena pública como mulheres. Se elas se sentem mulheres, se teatralizam mulheres e se portam dessa forma, por que os seus pares sociais não garantem a elas este direito que elas estão reivindicando de serem mulheres? Se o sentir social dessas pessoas está ligado à feminilidade, por que negar-lhes os direitos e apontar: “você nasceu com pênis”? Qual a diferença que isso faz?

O gênero é cultural e o sexo é biológico, perpassado pela cultura. O exemplo, muito freudiano, de projeção masculina e recato feminino tem uma linguagem sexualizada. É a mulher como passiva e o homem como ativo. Então, o gênero é cultural e o sexo –– nasceu homem com um pênis, nasceu mulher com uma vagina –– é biológico. E não há biologia livre da cultura.

Como a sra. avalia as declarações do deputado Jair Bolsonaro?

Nós temos que entender que os discursos que desqualificam o feminismo são os mesmos discursos que, no automático muitas vezes, culpabilizam as mulheres por uma série de processos de violência, pelos quais ela passa. E é fundamental dar nome as coisas, pois, o inominável é o que não existe. Nós somos sujeitos que tem a própria existência pela linguagem. O impossível de se falar pela linguagem, na arena social e na arena política, é impossível de se discutir e, sendo impossível de discutir, ele é até impossível de ter existência, porque não há nenhuma tomada de resolução.

Devido a isso, é necessário pautar e pontuar que o sujeito como o Bolsonaro é um sujeito misógino; é um sujeito sexista. Devemos pautar e pontuar que os crimes que aconteceram em Goiânia [quanto ao assassinato de mulheres; o suposto serial killer], que ele [Tiago Gomes da Rocha] não estava matando um homem heterossexual branco em um carrão. Ele estava matando mulheres em ponto de ônibus.

As pessoas tendem, também, a diminuir os casos passionais. Outras vezes, culpabilizam as mulheres. “Ah, mas dormiu fora de casa”, “ah, mas tinha uma roupa curta, era vulgar”, “estava com ciúmes o cara”. Isso é um absurdo porque a pessoa pode ter feito o que quiser que ela não merece ser morta. E é uma forma de diminuir o crime. “O crime é passional, então, está tudo bem”. Não. Morremos porque somos vitimas de uma sociedade sexista. Não morremos porque somos vítimas mulheres. Morremos porque somos vítimas de uma sociedade que é sexista, misógina e que tem discursos de ódio contra o nosso próprio corpo. Nós adoramos ser mulher.

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