Feminismo em Goiânia: um movimento de muitas faces
28 abril 2019 às 00h00

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Muitas vezes incompreendidos, grupos feministas atuantes na capital demonstram que o debate passa longe dos clichês em torno dele
Ana Luíza Andrade

Eduardo Carli de Moraes/Divulgação
Ser-Mulher
“On ne naît pas femme, on devient femme”, declarou Simone de Beauvoir, logo no início do segundo volume de “O Segundo Sexo”, em 1949. A frase, que completa agora 70 anos, ainda ecoa fresca pelos corredores do tempo, provocando sentimentos dissonantes que variam entre a união, a discórdia e o tumulto por onde toca. É impossível evitar a provocação de Beauvoir. Sete décadas depois, e ainda estamos aqui, analisando sua intenção ao escrever: “Não se nasce mulher, torna-se mulher”. Mas como? Para isto, é preciso mergulhar fundo no universo feminino.
Os leitores mais literais e conservadores podem trazer à tona o óbvio ululante. Ora, uma mulher é uma mulher porque nasceu mulher e ponto final. E assim matamos a metáfora sem piedade. No entanto, há também os leitores mais determinados, os apreciadores dos enigmas, que não irão clicar em outro link antes de entender o poder e a profundidade desta discussão. Afinal: o que é ser uma mulher? E mais: O que é necessário para tornar-se uma?
O principal ingrediente para entender o “ser” da questão é a empatia. É necessário colocar-se no lugar da mulher, vivenciar sua posição, observar suas dificuldades particulares. Se um indivíduo do sexo feminino não entende sua condição de existência, como poderá, então, superar e reclamar seu papel na sociedade? O verbo reflexivo “tornar-se” encena o movimento desta transformação, quando o indivíduo entende e garante seu lugar no mundo. Dotada de identidade, consciência e referência, agora o “ser-mulher” existe, é capaz de alterar seu universo, se assim o desejar.
Para tornar-se uma mulher, é preciso entender o que é ser uma mulher. E ser uma delas, no atual arranjo da sociedade, implica em depreciação, subjulgamento e vulnerabilidade. No campo social e cultural, a mulher é reprimida, limitada a adjetivos reducionistas como frágeis, delicadas, emotivas, histéricas. Por tabela, invariavelmente tornam-se dependentes da força, racionalidade e eficiência masculina. Além disso, se por um lado elas são cultuadas secularmente pelo milagre da criação humana, por outro, são constantemente reduzidas à própria condição reprodutiva, devendo arcar com a maior parte das responsabilidades sobre os filhos e o lar.
Ademais: se são sensuais e suas curvas são, naturalmente, um altar para o culto do belo, sob outra perspectiva são taxadas de lascivas, cínicas, vulgares. A começar por Eva, aquele demônio em forma de mulher, a grande culpada por Adão, O Ingênuo, ter aceitado a mordida do fruto proibido. Esse é outro jeito de falar “a culpa é dela”.
Um exemplo visual dessa estrutura doente: coloquemos num grande saco os nomes que comandam as nações, os parlamentos, a economia, a justiça do planeta. Agora façamos as contas: quantos homens? Contemplemos, então, o montículo irrisório destinado às mulheres. Quantas exceções?

No âmbito político e econômico, as evidências são ainda mais discrepantes. Elas recebem salários menores ocupando posições semelhantes, disputam espaços, precisam falar mais alto para não terem seus discursos silenciados, e, quando reclamam, são diagnosticadas pela emotividade em excesso.
Em janeiro de 2019, foi divulgado um relatório recente do Fórum Econômico Mundial (WEF, na sigla em inglês), responsável por traçar um panorama entre igualdade de gêneros em 149 países. Os dados mostram que menos mulheres têm entrado no mercado de trabalho e suas participações na política e em cargos privados sêniores são inferiores à masculina, assim como a presença irrisória delas em setores emergentes de tecnologia e Inteligência Artificial.
O Brasil, segundo o WEF, caiu cinco posições, ocupando o 95º lugar, uma vez que “o abismo entre gêneros está em seu maior nível desde 2011”. O Estudo de Estatísticas de Gênero, do IBGE, expõe que as mulheres trabalham em média três horas por semana a mais do que os homens (somando-se trabalho remunerado, atividades domésticas e cuidados com pessoas), embora recebam apenas dois terços (76%) do rendimento masculino.
Em ocupações que exigem nível superior completo ou mais, a diferença salarial também é gritante: as mulheres receberam 63,4% do rendimento dos homens em 2016, segundo dados mais recentes. O suplemento “Outras Formas de Trabalho da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua”, divulgado na sexta-feira, 26, pelo IBGE, corroboram com a disparidade entre os gêneros, revelando que as brasileiras dedicaram, em média, 21,3 horas por semana com afazeres domésticos e cuidados de pessoas, em 2018. Os números representam quase o dobro do que os homens gastaram com as mesmas tarefas, 10,9 horas.

Dados da segurança pública vão além da mera injustiça econômica e profissional, custando a saúde e a vida de milhares de brasileiras. O estudo “Visível e Invisível — a Vitimização de mulheres no Brasil — 2ª Edição”, realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública com o Instituto Datafolha, revelou que, no ano passado, 536 mulheres foram vítimas de agressão física, por hora, no País.
Dezesseis milhões de mulheres sofreram algum tipo de violência e 59% da população afirmam ter presenciado algum tipo de agressão física ou verbal em 2018. De acordo com o levantamento do Fórum de Segurança Pública, a cada minuto, três mulheres sofreram espancamento ou tentativa de estrangulamento e 76,4% delas afirmaram que o agressor era alguém conhecido.
Dolly Soares, diretora financeira do Cevam (Centro de Valorização da Mulher), em Goiânia, enfatiza as altas taxas de violência em Goiás e na capital goiana. O “Atlas da Violência 2018”, organizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), registra que, nos últimos dez anos, a morte violenta de mulheres cresceu 66,4%. No acumulado da década, a média de variação é de 6,4% no País. Enquanto que, em Goiás, a ordem alcança o índice estarrecedor de 45,4%.
Dolly lembra que a organização, que acolhe mulheres e crianças em situações de violência e abuso em Goiânia, depende de recursos permanentes para o desenvolvimento dos projetos. Além disso, a diretora critica a falta de atuação do Estado, que falha ao não dar o devido reconhecimento à iniciativa.
“O estado deixa a desejar na proteção às mulheres, principalmente em relação à Lei Maria da Penha”, afirma. “Nós realizamos um trabalho de enfrentamento e essas mulheres precisam de trabalho, respeito. Elas chegam aqui para refazer suas vidas, estão tentando garantir sua sobrevivência”, defende.

Contra dados, não há argumentos. Ser mulher é perigoso e levanta uma série de implicações injustas e desumanas. A mulher que não reconhece o próprio aviltamento, não atua como mulher, mas como um personagem de um cenário limitador e excludente, ajudando a girar a máquina contra si mesma. É preciso torna-se mulher, e sê-la — de cabeça erguida e armada de seus direitos — adentra outro universo particular da luta feminina, provocando assim como a frase de Beauvoir, união, discórdia e tumulto por onde passa.
Dispersas & Unidas
Vivemos em um mundo competitivo. O ganho para um implica invariavelmente na perda do outro. Assim também é na natureza e no nosso processo evolutivo. Os vencedores são aqueles que conquistam para si os recursos necessários para a própria sobrevivência. Sobreviver, no entanto, há muito já não é suficiente para o ser humano, bombardeado pelo consumo desenfreado e a proposta da acumulação de riquezas. Vivemos para ter mais, ser mais e chegar ao topo. E, para isto, devemos correr contra o tempo, eliminando pelo caminho nossos adversários do sucesso.
Os homens vivenciam e são cobrados diretamente dentro da perspectiva da competição. As mulheres, por sua vez, que vêm na esteira de um processo depreciativo, disputam esses espaços não apenas com os homens, mas entre si mesmas, levando-as a uma série de artifícios desgastantes para se destacarem em um meio hostil e agressivo.
Em 2013, um experimento social com mulheres realizado pela psicóloga canadense Tracy Vaillancourt, pesquisadora da Universidade McMaster, revelou táticas de autopromoção e derrogação feminina (agressão indireta para reduzir o valor da rival), como as principais estratégias utilizadas pela competitividade entre as mulheres. Novelas e películas cinematográficas também perpetuam a narrativa dessa concorrência, o que facilita e muito a corrida masculina em busca do “prêmio”.
Muitas mulheres já perceberam a tática mercadológica dessa dispersão feminina, e, unidas, descobriram-se mais fortes. Adentramos finalmente um território delicado deste panorama. Estamos falando das feministas: mulheres — e pessoas que se identificam como mulheres — que abraçam um conjunto de movimentos políticos, sociais, culturais, ideológicos e filosóficos em prol de direitos iguais entre os gêneros.
Para tanto, o discurso declara o machismo, a misoginia, o racismo e o sexismo como seus principais inimigos. A luta é pela libertação das amarras patriarcais, com o objetivo de elevá-las ao emponderamento e conscientização de seu valor como indivíduo no meio.

Pinturas corporais do Sarau das Minas | Foto: Divulgação
Mitos
Para entender e refletir sobre o feminismo de maneira séria e contundente é necessário, no entanto, derrubar antes alguns mitos envolvendo o movimento, que é motivo muitas vezes de deboche e recriminações. Em primeiro lugar, é necessário reforçar que o feminismo defende a igualdade entre os gêneros e não a supremacia feminina sobre a masculina. A bandeira, em si, apenas aponta privilégios masculinos que devem ser estendidos às mulheres.
Outra fábula bastante difundida é que as feministas são homossexuais. A orientação sexual de cada mulher não é definida pelo movimento, mas ao contrário, é a orientação sexual das mulheres que irá pautar os grupos e suas discussões particulares, ficando a sexualidade reservada a uma condição inerente ao ser humano.
Apesar de o feminismo ser uma corrente política, não há critérios pré-definidos de correntes político-econômicas que devem ser difundidas entre os grupos. Há vertentes feministas que se baseiam no feminismo liberal, o que finda a lenda de que o debate é apenas “esquerdista”.
Outros casos, como a falta de feminilidade e depilação, também não encontram ressonância justificável. O próprio movimento defende a livre decisão da mulher sobre seu corpo e comportamento. Ademais, a feminilidade está implicada a uma condição do ser humano, não estando limitado apenas às mulheres. Ainda sobre os direitos da mulher sobre seu próprio corpo, é preciso destacar que as feministas não são necessariamente a favor do aborto.
As que o defendem, na verdade primam pela liberdade de escolha da mulher, sob o viés de um Estado laico. No entanto, há também feministas religiosas que não concordam com a pauta, mas não deixam de entender a necessidade de igualdade de gênero na sociedade.
Quatro ondas
A história das feministas não começou ontem. A primeira onda feminista data o fim do século XIX até meados no século XX, caracterizada principalmente por reinvindicações básicas como o direito ao voto e a participação política na vida pública. O movimento iniciado por mulheres inglesas, que ficaram conhecidas como as “sufragistas”, reverberou no mundo todo, influenciando o ativismo na luta contra a escravidão nos Estados Unidos.

A própria origem do 8 de Março, conhecido como o Dia Internacional da Mulher, carrega o sangue e o suor das primeiras feministas. A data comemorativa foi determinada em 1910, durante a II Conferência Internacional de Mulheres Socialistas, que reuniu na Dinamarca representantes de mais de 17 países, com o objetivo de canalizar, internacionalmente, os esforços da luta pelo direito ao voto. O dia foi reforçado em 1911, após o sentimento de revolta gerado pelo histórico incêndio de uma fábrica de camisas em Nova York, quando mais de 130 operárias morreram carbonizadas, vítimas da falta de condições de segurança no trabalho.
A segunda onda feminista inicia-se em meados dos anos 1950, cobrindo todo o período até os anos 1990. Aqui começa uma série de estudos sobre a distinção de sexo e gênero, sendo o primeiro uma característica biológica e o segundo um conjunto de características e papéis designados a um indivíduo de acordo com seu sexo.
Sheila Rowbotham e Angela Davis estão entre as autoras célebres desta época, que alcançaram a notoriedade pela investigação da temática, principalmente Davis, por expandir o debate para os conceitos de raça e classe.

Grupos como o The Redstockings e o New York Radical Feminists entraram para história por protestaram contra concursos de beleza, como o Miss Estados Unidos (1968-1969), sob a perspectiva de que as mulheres eram tratadas como objetos. Questões relativas à maternidade e exploração da mão de obra feminina — sob a ótica de cargas horárias maiores e salários menores em relação aos homens — também conquistaram espaço entre as pautas.
É importante destacar que, nessa etapa, também surgiram os movimentos de mulheres lésbicas e negras, que desenvolveram grupos específicos para a discussão de suas necessidades e reivindicações particulares.
O neoliberalismo, o hiperconsumismo e a difusão da internet marcam o início dos anos 1990, quando a terceira onda surge, abrindo espaço para novos protestos. Aqui se destacaram movimentos punks femininos, que negavam o corporativismo e defendiam a ideia do “do it yourself” (faça você mesma). As “riot grrrl” (garota rebelde), como ficaram conhecidas, colocaram sobre o palco discussões graves como estupro, patriarcado, sexualidade e o empoderamento feminino.
Finalmente alcançamos a quarta onda feminista, iniciado por volta de 2012 e indissociavelmente atrelado ao uso maciço das redes sociais, o que tornou a discussão ainda mais acessível e democrática. Segundo a pesquisadora Prudence Chamberlain, em seu livro “The Feminist Fourth Wave – Affective Temporality” (2017), a quarta onda segue surfando em busca da justiça igualitária e opondo-se à violência contra a mulher.
O assédio em vias públicas, no ambiente de trabalho, a violência sexual nos campus universitários, a representação da mulher na mídia e a própria “cultura do estupro” estão entre os principais debates dessa quarta fase.
A pesquisadora Heloisa Buarque de Hollanda, em seu livro “Explosão Feminista” (2018) observa que, no Brasil, muitas mulheres não se diziam feministas até 2013. As manifestações históricas nesse ano, que se iniciaram pelo aumento de 20 centavos na tarifa de ônibus, insuflaram novamente este espírito feminista, levando mulheres a despertar para um novo enfrentamento.
Seis anos depois, a quarta onda ainda segue em evidência, através da dominação do ambiente virtual, responsável por difundir importantes denúncias, a exemplo de campanhas como o #nãoénão e “primeiroassédio”. É justamente nessa marola onde encontramos grupos, coletivos e movimentos feministas, espalhados pelo País inteiro. Goiânia não fica atrás e se destaca por uma série de iniciativas, que prometem aguçar e transformar o ser-mulher.

Ações
No meio acadêmico, essa reforma do pensamento encontra apoio no Coletivo Rosa Parks, registrado em 2016 na Universidade Federal de Goiás (UFG), como um grupo de estudo, pesquisa e extensão e também de acolhimento. O coletivo, que conta com 10 professoras e 43 estudantes, é desenvolvido e formado dominantemente por mulheres negras, embora exista a presença de mulheres brancas e de dois ou três homens.
O grupo se reúne quinzenalmente dentro da universidade para realizar estudos e desenvolvimento de pesquisas e atividades. São abordados temas como feminicídio de mulheres negras, violência doméstica, situações de cárcere, histórico de regresso do sistema prisional pela vertente de raça e gênero, direito das empregadas domésticas, mapeamento de mulheres negras em Goiás e no Brasil, tangenciando o feminismo negro pelas mais variadas áreas do conhecimento.
A professora Luciana de Oliveira Dias, antropóloga e pós-doutora em Direitos Humanos e Interculturalidades pela Universidade de Brasília (UNB), é também a fundadora do grupo. Ela relata que estudantes da gradução e pós-gradução se aproximaram dela em busca de orientações sobre o feminismo, o que culminou na criação do coletivo.
“Desenvolvemos trabalhos de iniciação científica, dissertações de mestrado e doutorado e monografias dos mais variados cursos, uma vez que o coletivo é interdisciplinar e trabalha aéreas da educação, da enfermagem, da medicina, do direito, da engenharia, da história, da dança e outros, sendo este o produto apresentado como resultado dessas pesquisas. O tema principal dessas investigações é o feminismo, mais especificamente do feminismo negro.”
O coletivo tem parceria com a Anistia internacional e desenvolve junto às escolas de Goiânia e Aparecida de Goiânia ações que “lidam, tratam e discutem a violência contra a juventude negra” no Estado. Um material chamado QuilomBOX, que trata de um conjunto de documentos, manuais, cartografias e dados estatísticos, foi distribuído pela Anistia Internacional para o desenvolvimento desta temática. “Pegamos esse material e transformamos em ação, através de palestras, oficinas e rodas de conversas nas escolas”, ressalta.

Todas as sextas-feiras, o grupo também se encontra no período vespertino, para o desenvolvimento de estudos. Como grupo de acolhimento, a cada 15 dias ocorrem reuniões para abrigar meninas que estão na universidade e sofrem com falta de autoestima e déficits educacionais.
“Mesmo não sendo pesquisadoras, essas meninas estão integradas dentro do coletivo e procuram se fortalecer, falar sobre si mesmas: as alegria e dificuldades que enfrentam no meio acadêmico por serem mulheres e negras”, explica.
Na visão da antropóloga, a segmentação da pauta feminista para a especificidade negra não é somente necessária, como também é urgente. Como exemplo, Dias argumenta que uma mulher lésbica, por exemplo, apresenta necessidades em relação a sua saúde sexual diferentes de uma mulher heterossexual. Da mesma forma, uma mulher idosa depende de coisas que uma criança não precisa. Assim, mulheres negras, lésbicas e transexuais dependem de grupos específicos para abordar temas e reclamações que o universalismo feminista não contempla.
“O ideal cristão de igualdade dever ser questionado. Não somos todas iguais. A probalidade de uma mulher negra e lésbica estar na base da pirâmide social é muito maior do que a de um homem branco, heterossexual e jovem”
Luciana Dias, antropóloga
“Eu acho que a maior mentira que contaram para nós é que ‘somos todos iguais’. Esse é um ideal cristão que deve ser questionado. Não somos todas iguais. As diferenças é o que nos torna ricos, melhores, mais humanizados. As mulheres demandam coisas diferentes e precisam falar a partir dessas diferenças. Uma sociedade tão diferente e desigual não consegue alcançar o desigual do desigual, as políticas universalistas não alcançam aqueles que estão na base da pirâmide, porque o bem público é pouco e acaba antes de chegar na base. Nesse sentido, a probabilidade de uma mulher negra e lésbica estar na base dessa pirâmide, por exemplo, é muito maior do que a de um homem branco, heterossexual e jovem”, debate.
A inspiração do nome do Coletivo Rosa Parks rememora a imagem de um dos maiores ícones da resistência negra norte-americana, que desempenhou papel fundamental no levantamento do combate segregacionista. A cena aconteceu em Montgomery, capital do Alabama, em 1955. Após um longo dia de trabalho, Rosa Parks pegou um coletivo e sentou-se em um dos bancos situados ao meio do ônibus. As primeiras filas eram, por lei, reservadas para passageiros brancos e atrás vinham os assentos onde os negros podiam sentar-se. O motorista, que era branco, exigiu que Parks e outros três negros se levantassem para dar lugar a outros brancos que haviam acabado de entrar no veículo. Parks, em uma atitude revolucionária, se negou a cumprir a ordem e, por isso, foi levada à prisão.

O protesto silencioso de Rosa propagou-se em um boicote de ônibus urbanos por negros e indivíduos que também abraçaram o protesto contra a discriminação racial no país. O alcance da iniciativa tomou, então, proporções inimagináveis, que pesaram no bolso dos donos das empresas de ônibus da época. Em 1956, a Suprema Corte dos EUA decretou o fim da segregação no transporte público. Rosa Parks ficou conhecida desde então como a “mãe dos movimentos pelos direitos civis” nos EUA.
“O coletivo chama coletivo por causa do ônibus, que a gente ocupa aqui na universidade”, a professora se diverte explicando. “Já o nome faz uma homenagem a essa mulher que não se levantou. O que nós queremos dizer com isso é que somos intelectuais negras que ocuparam lugares na universidade e que não iremos desocupar esses espaços até satisfazer nossas necessidades e termos todos os nossos direitos atendidos”, avisa.
Redes de apoio
Em outros casos, as organizações se mostram verdadeiras redes de apoio, capazes de ajudar mulheres a enfrentar situações abusivas e violentas. O Coletivo Feminista Pagu brinca que seus encontros “são como sessões de terapia”, onde as mulheres encontram um local seguro para realizar denúncias e montar estratégias de enfrentamento.
O coletivo é responsável por ter ajudado a uma aluna da faculdade de Direito da UFG a abrir um processo administrativo por assédio sexual contra um professor. “Foi um processo muito difícil, mas ele foi afastado e agora ela se sente mais segura. Este ano também apoiamos o movimento “Meu professor assediador”, que publicou relatos de assédio causados por professores do ensino médio de colégios de Goiânia”, conta Juliana Peleja, uma das representantes mais ativas.
Entre outros percalços, o coletivo também teve de lidar com um inquérito policial que as responsabilizou, sem provas, por um cartaz que dizia “tire seus rosários de nossos ovários”. Uma professora da faculdade impetrou um habeas corpus preventivo em defesa das integrantes e o inquérito foi arquivado. Além disso, Peleja também relata que o grupo teve que combater a criação de um coletivo machista, que perseguia o grupo e suas integrantes com ofensas. “Contudo, esses obstáculos só ressaltam a necessidade da existência e ação do Pagu, não só na Faculdade de Direito, mas fora dos muros da universidade”, ressalta.

O grupo, que surgiu no final de 2013, durante um congresso de antropologia jurídica, foi gerado dentro da própria Faculdade de Direito da UFG. Desde o princípio, o coletivo enfrentou dificuldades burocráticas institucionais, em função de atritos com professores e o próprio diretor da Faculdade de Direito à época, que se opuseram ao requerimento do grupo para se transformar em um Grupo de Extensão da faculdade, rejeitado mais de duas vezes pelo conselho diretor.
Atualmente, o coletivo é independente e não está vinculado a nenhuma instituição. É formado por 18 administradores, com idades entre 20 e 30 anos, e 93 participantes de faixas etárias similares, independente de raça e gênero. O grupo, que também difunde seu projeto nas redes sociais, alcança a ordem de mais de 2,5 mil pessoas.
As iniciativas goianienses também se preocupam com a saúde e o bem estar físico e mental das mulheres. Dentro desta perspectiva, se destaca o Sagrada Feminista, composto por 50 integrantes. O grupo, que nasceu em abril do ano passado, iniciou seu movimento com o estudo de Florais. À medida do seu crescimento, a proposta foi ampliada para uma “roda de mulheres”, com o objetivo de promover a cura, o autoconhecimento e o empoderamento feminino.
Faraina Franco, idealizadora do grupo, afirma que a roda é uma das poucas no Brasil que abarcam a perspectiva feminista dentro de seus estudos.
“Neste aspecto, somos vanguardistas. Eu tenho o prazer de romper com este paradigma. Para mim, não existe o ‘Sagrado Feminino’ sem o engajamento político, sem a inclusão de todas as mulheres, sem distinção de raça, credo, gênero e com sororidade inclusiva. Sofri isso na pele. Ter mais de 50 anos nesta sociedade exige da gente muito fôlego. No meu caso, já sofri muitas exclusões. Por isso, esta é a nossa bandeira. Essa é a luta por um Sagrado Feminino deselitizado”, defende.
As reuniões da roda acontecem uma vez por mês, geralmente aos domingos, pela manhã, durante as fases da Lua Nova ou Crescente. Acredita-se que a Terapia Floral auxilia as mulheres em seus processos de autoconhecimento, trabalhando questões do feminino e auxiliando-as a se reconectarem com essa essência.

No âmbito cultural, encontramos o Sarau das Minas GO, onde mulheres podem divulgar seus trabalhos literários em um palco aberto, reservado unicamente para elas, sem a necessidade de inscrição prévia. A estrutura do palco é minimalista, no máximo um palete (estrado de madeira) ou uma cadeira, e a iluminação é baixa, para estimular mulheres que não estão acostumadas com a experiência artística.
A iniciativa, que virou objeto de uma dissertação de mestrado da psicóloga Fernanda Cruz sobre performances culturais, teve sua primeira edição em 3 de dezembro de 2016 no Hostel 7, durante a Feira Excêntrica e o lançamento do livro “Faz RS”, da escritora Larissa Mundim.
Desde então, Carol Schmidt, atriz e fundadora do grupo, conta que “o sarau tem a cara do lugar onde ele está”, tendo se deslocado para além das fronteiras da capital, alcançando Pirenópolis, Cidade de Goiás e o Jardim Tiradentes, em Aparecida de Goiânia. De lá para cá, somam-se 22 edições do projeto. Mais de 200 mulheres já passaram pelos palcos itinerantes do sarau, a mais nova com 4 anos e a mais velha com 93 anos de idade.
“Eu iniciei o projeto porque queria abrir um lugar de fala para as mulheres, um lugar seguro onde não existissem julgamentos, e, onde elas pudessem se abrir sem medo. O projeto, espontaneamente, cresceu muito rápido e sem leis de incentivo. As próprias mulheres que participam do encontro auxiliam na infraestrutura com caixas de som e registros fotográficos, por exemplo. É incrível como as mulheres se unem e se ajudam. O sarau me permitiu entrar em contato com pessoas incríveis, que nunca teria conhecido se tivesse continuado na minha bolha”, relata.

Carol Schmidt, escritora, atriz e fundadora do Sarau das Minas GO, em uma edição no Evoé Café com Livros Foto: Elisa Marques
Antes do sarau, Schmidt explica que os saraus eram majoritariamente dominados por homens, e que as meninas questionavam a presença feminina. Hoje, com a criação do espaço, a realidade se mostra diferente. Há encontros que reúnem mais de 70 mulheres, dispostas a divulgarem seus trabalhos e compartilhar arte e cultura em Goiânia.
“Já passaram pelo palco cantoras, bailarinas… Muitas vezes as mulheres pegam o microfone e confessam que não são escritoras, mas que querem compartilhar suas histórias: é quando acontece uma identificação. Já tivemos muitos abraços coletivos, performances coletivas. A gente já promoveu também bate-papos temáticos, como, por exemplo, o Outubro Rosa e o Setembro Amarelo, e, em julho, eu quero lançar uma roda de conversa sobre autoestima, um tema que é sempre recorrente no Sarau. O essencial é essa troca”, enfatiza.
Na mesma linha, surge em 2016, o projeto Leia Mulheres GO, inspirado em uma ação nacional que abarca mais de 100 cidades brasileiras desde 2015. Fundado pela escritora Pilar Bu (Ultraviolenta, 2017) e Ana Luiza Rolim, com o objetivo de divulgar, debater, criticar e promover a leitura de escritoras.
A mediadora do grupo, Maria Clara Dunck, assinala que o ambiente foi aberto para homens e mulheres, mas que principalmente as mulheres se sentem mais seguras com o espaço, uma vez que não são assuntos escritos ou tratados por homens, como o universo da maternidade, relacionamentos abusivos e outras pautas feministas importantes.

Entre os desafios está a dificuldade na distribuição de livros escritos por mulheres, tanto no mercado brasileiro, como no goiano. Vários livros não chegam até as prateleiras das grandes livrarias, o que dificulta e encarece o acesso aos produtos. O clube, por sua vez, incentiva a compra dos livros, uma vez que escritoras dependem desse viés monetizador para a perpetuação de seus trabalhos. O entrave mostra um gargalo que precisa ser contornado.
Além disso, Dunck acredita que os incentivos e espaços estão mais problemáticos este ano, em função da mudança no cenário político. “Nosso grupo era visto por muito com indiferença e agora ele é visto como uma ameaça. Acusam-nos de doutrinação, de promoção de desigualdades ao invés de diversidade. Dentro do ambiente acadêmico noto que há menos incentivo e investimentos em eventos que tratam de literatura feito por mulheres. No entanto, acredito que existe cada vez mais uma intenção das mulheres de resistirem e ocuparem mais espaços”.
Aos trancos e barrancos, a mediadora enfatiza que a proposta funciona. Ela afirma que, depois do clube, não só em Goiânia como em outras cidades do país, os leitores estão lendo e se preocupando mais com a literatura feita por mulheres. “As mulheres escrevem tanto e tão bem quanto os homens, sobre os mais variados assuntos, não apenas sobre o ambiente doméstico. Não se trata de livros de capa rosa ou temas de autoajuda”, argumenta.
A proposta da diversidade é uma das grandes preocupações do clube. A ideia é englobar o máximo possível de todos os grupos, assim como suas reivindicações particulares. Para tanto, as reuniões abordam livros de mulheres negras, indígenas e também estrangeiras. Leituras que não são abraçadas no País, assim como de escritoras goianas, que não têm a mesma visibilidade dos escritores do Estado.

“Existem mulheres muito boas escrevendo. Se elas não são lidas é porque existe uma questão de gênero. A leitura também é um ato político. Os livros que escolhemos ler, os livros que são distribuídos também formam uma cultura, vão orientar o pensamento e o comportamento desses indivíduos. Quando falamos em políticas públicas o tema parece muito distante, mas pelo viés cultural somos nós que fazemos nossas escolhas. Pensando nessa questão do comportamento, precisamos debater fora de ambientes acadêmicos. Assim, ampliamos a discussão e descontruímos os padrões impostos pela mídia e o Governo. No campo cultural isso se torna mais acessível”, argumenta.
Mapeamento
Ao contrário do senso comum, que enxerga os movimentos feministas apenas por uma perspectiva de tumulto e “gritaria”, os grupos demonstram que estão cada vez mais organizados, através da busca do registro formal e da transformação de iniciativas locais em ações continuadas de longo alcance, especialmente com o auxílio do meio digital.
A fundação “Womanity Foundation” e a ONU Mulheres, em parceria com o Instituto C&A, lançaram em junho do ano passado o 1º mapa da Plataforma UNA. A ferramenta on-line cataloga informações estratégicas sobre organizações que compõem o ecossistema brasileiro de igualdade de gênero, com o objetivo de fomentar interconexões entre os grupos.
Com a participação de um grupo executor formado por IBEAC (Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário Queiróz Filho), ponteAponte Empreendedorismo Social, Blossom e Women Who Code/UFRPE (Universidade Federal Rural de Pernambuco) e diversos outros parceiros, a UNA reúne de maneira inteligente, uma série de organizações e iniciativas disseminadas pelo Brasil. Para tanto, os grupos devem se registrar na plataforma, que conta hoje, com 388 movimentos devidamente cadastrados.



O retrato das organizações e iniciativas cadastradas entre dezembro de 2016 a abril de 2017 mostra que, dos 388 movimentos, 74% se identificam como organizações e 26% como iniciativas, sendo que 68% delas estão registradas com CNPJ.
O segundo gráfico evidencia que 21% dos grupos iniciaram suas atividades entre 2000 e 2010 e 59% entre 2010 e 2017. O mapa brasileiro, por sua vez, aponta a região Sudeste no primeiro lugar do ranking, com 56% dos registros, seguida do Nordeste, com 20%, e sul, com 11%. A região Centro-Oeste aparece em quarto lugar, com 8%, e o Norte com 5%, na última posição.
Entre os cinco principais temas de atuação, destacam-se a educação e formação, com 50%: empreendedorismo feminino e autonomia econômica, com 48%; enfrentamento a violência, com 43%; equidade e condições de trabalho, com 33%; e saúde e bem estar com 31%.
Do total, 54% declararam que não receberam recursos financeiros, sendo que 82% dessas doações foram provenientes de pessoas físicas. No último gráfico, constatamos que 39% dos grupos já influenciaram políticas públicas.

Imagem extraída da plataforma UNA. Crédito: Plataforma Una.
Nessa mesma frente, também encontramos o MAMU, mapa de coletivos de mulheres, que pretende reunir e identificar organizações, movimentos, grupos e projetos brasileiros feministas, abarcando grupos com sede, endereço fixo e até articulações apenas virtuais.
O objetivo do MAMU, segundo o próprio projeto, “é dar visibilidade aos espaços, facilitar o acesso do público que os procura” […] “fomentar redes, discussões, propor parcerias e permitir que se reconheçam nesse contexto”.
O site, que conta com uma cartografia lúdica, está em permanente processo de formação, a medida que os grupos se identificam e realizam o registros na plataforma. Em Goiânia, cinco movimentos foram identificados, como o “Mulheres na Tecnologia”, que visa aumentar a participação feminina na área de Tecnologia da informação. O Grupo de Mulheres – CPT Goiânia, que estudam a ótima feminista pela perspectiva bíblica e religiosa. O Projeto Amarras Femininas, que busca por meio de uma ação artística fazer denuncia de situações de violência e opressões contra a mulher e sua individualidade. O Coletivo Fluidez, composto por estudantes da UFG (Universidade Federal de Goiás), militantes da interseccionalidade entre sexualidade, gênero, raça e classe. E o Coletivo Feminista Carol Barbosa/UJS-GO, que reúne jovens secundaristas, universitárias e pós-graduandas de todo o estado goiano dentro da União da Juventude Socialista de Goiás.
A reportagem utilizou o grupo fechado para mulheres “Indique Uma Mana Goiás (Oficial)”, que reúne 4.349 goianas através do Facebook, como ferramenta de levantamento dos movimentos goianienses. Além das entrevistadas, foram citados o “Coletivo Mães feministas de Goiânia”, “Coletivo Feminista Olha Benário”, “Caliandras”, “Centro Popular da Mulher”, “Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro GO”, o grupo “Transas do corpo” e o “Histeria Coletiva”. Uma pesquisa mais ampla também encontrou o “Partida Goiânia” e o “Círculo Psicoterapêutico de Mulheres GO”. O “Minaescriba”, o “Sarau Negritude Viva” e o “Quintal das Artes Femininas”, este último em Aparecida de Goiânia, foram mencionados durante as entrevistas. No total, a reportagem mapeou 21 grupos feministas atuantes na Grande Goiânia.