Há pouco mais de três anos no Brasil, Yara Alchahaf e sua filha, Maya Ghandour, agradecem ao povo brasileiro por terem sido bem-recebidas

Yara e Maya: em 2012, mãe e filha estiveram cara a cara com combatentes do autoproclamado Estado Islâmico | Foto: Fernando Leite/Jornal Opção

“Duas vezes caíram bombas bem pertinho do carro onde es­tava com meu pai. Outra vez foi em frente à minha escola”, relata Maya Ghandour, uma refugiada síria de 10 anos. Falando português fluentemente, a criança conta que tem pe­sa­delos até hoje ao lembrar do barulho das bombas e chora quando es­cu­ta fogos de artifício.

Em 2014, Maya chegou a terras brasileiras com sua mãe, Yara Al­chahaf, de 40 anos, cujos marido e sogra também estiveram a bordo da viagem para fugir da guerra no país natal. A primeira parada foi no Lí­­bano, de onde seguiram para a Tur­quia de avião. Neste tempo, a família cristã ortodoxa, que já tivera a casa em Damasco atingida por ba­­las, conseguiu o visto para o Brasil e, enfim, desembarcou em São Paulo.

Na capital paulista, Yara trabalhou como professora de inglês — por dominar o idioma, trabalhava na Síria como secretária de uma em­presa canadense de petróleo. O ma­rido ficou desempregado du­ran­te todo o ano que permaneceram em São Paulo.

A Língua Portuguesa era o principal obstáculo para adaptação no no­­vo país e, em Goiânia — onde es­tão há dois anos —, tiveram a opor­tunidade de estudá-la por meio de um convênio estabelecido en­tre a Pontifícia Universidade Ca­tó­lica de Goiás (PUC-GO) e a Igre­ja Católica Apostólica Ortodo­xa de Antioquia, principal centro de amparo a refugiados, independentemente da religião, que chegam à capital goiana. Aqui, Yara ainda não conseguiu encontrar emprego, enquanto seu marido, sim.

Conscientização
Maya, que está cursando o ensino fundamental, busca conscientizar os colegas de escola sobre a gue­r­ra da Síria — segundo ela, mui­ta gente resolveu aprender ára­be depois de tê-la conhecido. É im­pressionante o conhecimento que tem para uma garota de 10 anos. “A guerra aconteceu por cau­sa do interesse de outros países em construir um gasoduto na Síria”, explica.

Além do português e do árabe, a menina fala inglês e espanhol e es­tá aprendendo italiano, francês e ale­mão. “Poderia ser política, mas meu sonho é ser médica para po­der salvar vidas em todo o mundo e, por isso, tenho que aprender tantas línguas”, afirma Maya. “No futuro, quero ter contato com o governo da Síria para poder ajudar a área da saúde.”

É justamente o futuro de Ma­ya que a família tem como prioridade. Perguntada se voltaria para a Sí­ria após a guerra, Yara é enfática ao dizer que o Brasil oferece me­lho­res condições. “Voltar para a Sí­ria só se for como visitante. Depois da guer­ra vão ser necessários muitos anos para o país se recuperar e ga­ran­tir um bom futuro para a Maya é o nosso principal objetivo.”

Yara segue em busca de um trabalho para conseguir juntar mais dinheiro e trazer seu pai ao Brasil. Na Síria, a família ainda tem parentes e amigos que sofrem com o dia a dia do conflito, que dura sete anos. Alguns já foram sequestrados e até mortos, entre eles um pri­mo que morreu em um bombardeio enquanto tentava salvar a vida de uma outra pessoa.

Em 2012, Yara, Maya e outros três familiares ficaram cara a cara com combatentes do grupo terrorista Estado Islâmico. Estavam to­dos a caminho de uma vila cristã cha­mada Sednayah, localizada a 40 mi­nutos de Damas­co, quando dois integrantes do autoproclamado califado pararam o carro. “Ficamos muito nervosos. Eles tinham barba grande e falavam coisas ruins. Acabaram nos dei­xando passar, mas disseram pa­ra nunca mais voltarmos por aquela estrada”, relembra Yara.

Essas são histórias pelas quais a fa­mília espera nunca mais ter que pas­sar. No Brasil, sentem-se seguros e acolhidos. Yara faz ques­tão de agradecer o padre Ra­fa­el Magul, da Igre­ja Católica Apostólica Ortodo­xa de Antioquia, o governo do Brasil e todos os brasileiros que os auxiliaram. “Na Europa, amigos falam que o povo não gosta dos árabes. Aqui, nunca passamos por nada negativo”, ressalta.

Ataque químico
Os Estados Unidos preferiram não esperar a investigação da Or­ga­nização de Proibição de Armas Químicas (Opaq) e, no dia 13 deste mês, realizaram, em conjunto com a França e a Inglaterra, bombardeios a instalações do governo sírio em resposta ao ataque químico supostamente cometido pelas forças de Bashar al-Assad em Douma, no su­búrbio de Damasco.

De acordo com Yara, é improvável que sequer tenha ocorrido es­te tipo de ataque. “Douma é mui­to perto de onde mora meu pai, outros parentes e amigos. Se ti­vesse um ataque químico, eles te­ri­am sofrido as consequências.” Para ela, acontece na Síria o mes­mo que aconteceu no Iraque. “Dis­seram que [Saddam Hussein] tinha armas químicas e ainda não acharam nada.”

Michel Magul: trabalho em prol dos refugiados na igreja e no governo

Filho do padre Rafael — o celibato na igreja não é obrigatório —, Michel Magul, que tem família na Síria, argumenta que o ataque dos EUA foi ilegal do ponto de vista do direito internacional, pois não pas­sou pelo Conselho de Seguran­ça da Organização das Nações Uni­das (ONU).

Segundo ele, a ação pode ser en­carada como uma resposta para aba­far a opinião pública no tocante a questões domésticas, como a even­tual ligação do presidente dos Es­tados Unidos, Donald Trump, com os russos, o crescente descontentamento dos franceses com o presidente Emmanuel Macron e a negociação do processo de retirada do Reino Unido da União Eu­ropeia, popularmente conhecida como Brexit.

Michel externa sua preocupação com terroristas estrangeiros que estavam lutando ao lado de gru­pos jihadistas na Síria e agora es­tão voltando treinados para seus paí­ses de origem e critica a hipocrisia de par­te do mundo ocidental, que, na sua visão, compra uma única narrativa e não condena atrocidades co­metidas por aliados. “Não quero di­zer que há um lado certo e outro er­rado em uma guerra como a da Sí­ria, mas raramente se fala em ditadura na Arábia Saudita, que compra armas do Ocidente e apoia grupos extremistas.”

Políticas públicas
À parte do trabalho feito pela igreja no acolhimento, assessoramento e inserção dos refugiados na comunidade árabe de Goiânia e, posteriormente, na sociedade brasileira como um todo, Michel, que nasceu em Buenos Aires, na Argentina, atua também no setor público.

Gerente Especial de Atração de In­vestimentos, Acordos e Coope­ra­ção Bilateral e Assuntos Consulares e Di­plomáticos do Gabinete de As­sun­tos Internacionais do Estado de Goiás, Michel informa que a pasta realiza traduções para obtenção de vistos e está em processo de elaboração de políticas públicas para refugiados, em parceria com as igrejas Católica Ro­mana, Metodista e Presbiteriana.