Família de refugiados sírios em Goiânia conta histórias da guerra
22 abril 2018 às 00h00

COMPARTILHAR
Há pouco mais de três anos no Brasil, Yara Alchahaf e sua filha, Maya Ghandour, agradecem ao povo brasileiro por terem sido bem-recebidas

“Duas vezes caíram bombas bem pertinho do carro onde estava com meu pai. Outra vez foi em frente à minha escola”, relata Maya Ghandour, uma refugiada síria de 10 anos. Falando português fluentemente, a criança conta que tem pesadelos até hoje ao lembrar do barulho das bombas e chora quando escuta fogos de artifício.
Em 2014, Maya chegou a terras brasileiras com sua mãe, Yara Alchahaf, de 40 anos, cujos marido e sogra também estiveram a bordo da viagem para fugir da guerra no país natal. A primeira parada foi no Líbano, de onde seguiram para a Turquia de avião. Neste tempo, a família cristã ortodoxa, que já tivera a casa em Damasco atingida por balas, conseguiu o visto para o Brasil e, enfim, desembarcou em São Paulo.
Na capital paulista, Yara trabalhou como professora de inglês — por dominar o idioma, trabalhava na Síria como secretária de uma empresa canadense de petróleo. O marido ficou desempregado durante todo o ano que permaneceram em São Paulo.
A Língua Portuguesa era o principal obstáculo para adaptação no novo país e, em Goiânia — onde estão há dois anos —, tiveram a oportunidade de estudá-la por meio de um convênio estabelecido entre a Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO) e a Igreja Católica Apostólica Ortodoxa de Antioquia, principal centro de amparo a refugiados, independentemente da religião, que chegam à capital goiana. Aqui, Yara ainda não conseguiu encontrar emprego, enquanto seu marido, sim.
Conscientização
Maya, que está cursando o ensino fundamental, busca conscientizar os colegas de escola sobre a guerra da Síria — segundo ela, muita gente resolveu aprender árabe depois de tê-la conhecido. É impressionante o conhecimento que tem para uma garota de 10 anos. “A guerra aconteceu por causa do interesse de outros países em construir um gasoduto na Síria”, explica.
Além do português e do árabe, a menina fala inglês e espanhol e está aprendendo italiano, francês e alemão. “Poderia ser política, mas meu sonho é ser médica para poder salvar vidas em todo o mundo e, por isso, tenho que aprender tantas línguas”, afirma Maya. “No futuro, quero ter contato com o governo da Síria para poder ajudar a área da saúde.”
É justamente o futuro de Maya que a família tem como prioridade. Perguntada se voltaria para a Síria após a guerra, Yara é enfática ao dizer que o Brasil oferece melhores condições. “Voltar para a Síria só se for como visitante. Depois da guerra vão ser necessários muitos anos para o país se recuperar e garantir um bom futuro para a Maya é o nosso principal objetivo.”
Yara segue em busca de um trabalho para conseguir juntar mais dinheiro e trazer seu pai ao Brasil. Na Síria, a família ainda tem parentes e amigos que sofrem com o dia a dia do conflito, que dura sete anos. Alguns já foram sequestrados e até mortos, entre eles um primo que morreu em um bombardeio enquanto tentava salvar a vida de uma outra pessoa.
Em 2012, Yara, Maya e outros três familiares ficaram cara a cara com combatentes do grupo terrorista Estado Islâmico. Estavam todos a caminho de uma vila cristã chamada Sednayah, localizada a 40 minutos de Damasco, quando dois integrantes do autoproclamado califado pararam o carro. “Ficamos muito nervosos. Eles tinham barba grande e falavam coisas ruins. Acabaram nos deixando passar, mas disseram para nunca mais voltarmos por aquela estrada”, relembra Yara.
Essas são histórias pelas quais a família espera nunca mais ter que passar. No Brasil, sentem-se seguros e acolhidos. Yara faz questão de agradecer o padre Rafael Magul, da Igreja Católica Apostólica Ortodoxa de Antioquia, o governo do Brasil e todos os brasileiros que os auxiliaram. “Na Europa, amigos falam que o povo não gosta dos árabes. Aqui, nunca passamos por nada negativo”, ressalta.
Ataque químico
Os Estados Unidos preferiram não esperar a investigação da Organização de Proibição de Armas Químicas (Opaq) e, no dia 13 deste mês, realizaram, em conjunto com a França e a Inglaterra, bombardeios a instalações do governo sírio em resposta ao ataque químico supostamente cometido pelas forças de Bashar al-Assad em Douma, no subúrbio de Damasco.
De acordo com Yara, é improvável que sequer tenha ocorrido este tipo de ataque. “Douma é muito perto de onde mora meu pai, outros parentes e amigos. Se tivesse um ataque químico, eles teriam sofrido as consequências.” Para ela, acontece na Síria o mesmo que aconteceu no Iraque. “Disseram que [Saddam Hussein] tinha armas químicas e ainda não acharam nada.”

Filho do padre Rafael — o celibato na igreja não é obrigatório —, Michel Magul, que tem família na Síria, argumenta que o ataque dos EUA foi ilegal do ponto de vista do direito internacional, pois não passou pelo Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU).
Segundo ele, a ação pode ser encarada como uma resposta para abafar a opinião pública no tocante a questões domésticas, como a eventual ligação do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, com os russos, o crescente descontentamento dos franceses com o presidente Emmanuel Macron e a negociação do processo de retirada do Reino Unido da União Europeia, popularmente conhecida como Brexit.
Michel externa sua preocupação com terroristas estrangeiros que estavam lutando ao lado de grupos jihadistas na Síria e agora estão voltando treinados para seus países de origem e critica a hipocrisia de parte do mundo ocidental, que, na sua visão, compra uma única narrativa e não condena atrocidades cometidas por aliados. “Não quero dizer que há um lado certo e outro errado em uma guerra como a da Síria, mas raramente se fala em ditadura na Arábia Saudita, que compra armas do Ocidente e apoia grupos extremistas.”
Políticas públicas
À parte do trabalho feito pela igreja no acolhimento, assessoramento e inserção dos refugiados na comunidade árabe de Goiânia e, posteriormente, na sociedade brasileira como um todo, Michel, que nasceu em Buenos Aires, na Argentina, atua também no setor público.
Gerente Especial de Atração de Investimentos, Acordos e Cooperação Bilateral e Assuntos Consulares e Diplomáticos do Gabinete de Assuntos Internacionais do Estado de Goiás, Michel informa que a pasta realiza traduções para obtenção de vistos e está em processo de elaboração de políticas públicas para refugiados, em parceria com as igrejas Católica Romana, Metodista e Presbiteriana.