Quase metade das crianças beneficiadas pelo Programa Bolsa Família em 2005 – 45%, para ser mais exato – conseguiu um emprego formal até 2019. Isso é o que revela um estudo Instituto de Mobilidade e Desenvolvimento Social (Imds), que também descobriu que a maioria também conseguiu se formar no Ensino Médio nesse período.

A ideia do estudo era entender como é o acesso ao trabalho formal pelos beneficiários do Bolsa Família após anos recebendo o benefício. Para isso, foi preciso verificar a Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) ano a ano, entre 2015 e 2019 para identificar quantas vezes as crianças pobres em 2005 (que nesse ano estavam na folga de pagamento do Bolsa Família) acessaram o mercado de trabalho formal captado pela RAIS. Assim, o estudo compara essas crianças com as que não eram pobres em 2005, partindo do princípio de que não receberam o Bolsa Família nesse ano.

No Centro-Oeste, 53,1% das crianças acompanhadas no estudo foram encontradas em algum momento na RAIS. O número fica à frente da região Nordeste (36,6%) e Norte (30,1%) e atrás das regiões Sul (59,4%) e Sudeste (53,1%). Também está acima da média brasileira que é de 44,7%.

O universo analisado foi composto pelos mais de 5,19 milhões de beneficiários do Bolsa Família dependentes de 7 a 16 anos em 2005 e pelos mais de 13,17 milhões de pessoas não beneficiárias encontradas na RAIS entre 2015 e 2019 que compõem o universo de comparação. E o estudo reconhece que, ao fazer esse recorte, subestima o número de crianças em situação de pobreza, uma vez que, em 2005, o Bolsa Família tinha fila de espera para o recebimento.

Com base nisso, uma das descobertas foi que o perfil do emprego dessas pessoas mudou de 2005 para 2019, analisando pessoas da mesma faixa etária nesse período. Além disso, os pesquisadores também analisaram renda, qualidade do posto de trabalho – medida pelo tipo de atividade da empresa e de ocupação do indivíduo, além de remuneração e nível de escolaridade -, tempo de empego e porte da empresa.

As maiores diferenças encontradas são no perfil raça ou cor e escolaridade. A maioria dos não beneficiários na RAIS é composta por pessoas brancas, enquanto a maior parte dos beneficiários de 2005 é negra (preta ou parda). Já em relação à escolaridade, nos dois grupos a maioria completou o Ensino Médio. No entanto, a diferença se dá com relação às minorias tanto entre os beneficiários quanto entre os não beneficiários.

Enquanto, no caso dos primeiros, a escolaridade é mais concentrada em níveis de educação mais baixos, para os não beneficiários, a segunda maior concentração é no nível superior completo. Com isso, a pesquisa conclui que a dificuldade de acesso das crianças pobres à universidade pode ser determinante para que consiga uma melhor inserção do mercado de trabalho.

O “efeito bumerangue” do Bolsa Família

“Desde 1988 estamos vivendo uma curva de universalização do ensino”, pondera o professor da Instituto de Estudos Socioambientais (IESA) da Universidade Federal de Goiás, Tadeu Arrais. No entanto, ele reconhece que o Bolsa Família contribuiu de alguma forma para que crianças e adolescentes pudessem concluir o Ensino Médio, o que, em certa medida, propicia melhores condições para a entrada no mercado de trabalho.

O professor Tadeu, que é doutor em Geografia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), explica que o Programa Bolsa Família é uma política pública de transferência de renda direta condicionada. “O público geral às vezes não entende e é difícil de entender porque existem vários formatos diferentes de programas de transferência de renda”, comentou ele que se diz “fã desse programa”.

Professor Tadeu Arrais acredita que o Bolsa Família integra o tripé do estado social brasileiro | Foto: arquivo

E essa admiração do professor pela transferência de renda direta com condicionalidades propiciada pelo Bolsa Família no Brasil tem um motivo. É que o programa provoca o que Tadeu chama de “efeito bumerangue”. “O governo paga para que as pessoas cobrem serviços do próprio governo, como os serviços de educação e saúde, por exemplo”, pontuou. Isso, para ele, é elucidativo das democracias ocidentais, inclusive.

Um dos pontos positivos do Bolsa Família citados pelo professor é que o repasse vem do governo federal. “Isso rompe localismos e a possibilidade de influência política, os chamados apadrinhamentos, é bem menor”, explicou. Além disso, o programa, na visão de Tadeu, quebra o ciclo da pobreza geracional e estimula os consumos. “Essa é a beleza do Bolsa Família, que só pode existir quando se tem um Estado forte que atua para cumprir a Constituição”, declarou.

Governos de direita também apostam em programas de transferência de renda

O professor Tadeu Arrais faz questão de dizer que não se trata de um programa exclusivo de governos esquerdistas. E para provar, cita o economista estadunidense ganhador do prêmio Nobel, Milton Friedman, que não é de esquerda e criou o conceito de imposto de renda negativo, que nada mais é do que a taxação progressiva sobre a renda, por meio da qual pessoas de baixa renda receberiam dinheiro do governo ao invés de pagar impostos.

Com o imposto de renda negativo, os governos poderiam, então, pagar uma renda básica ou complementar, por exemplo, garantindo, assim, uma renda básica para a população mais carente. Seria uma forma de distribuição da riqueza, uma vez que, em um sistema de imposto de renda negativo, quem ganha mais dinheiro, em teoria, paga mais imposto, e quem ganha menos, não só não paga imposto como também recebe dinheiro do governo.

No entanto, na visão de Friedman, quanto maior é o valor pago por meio de programas de transferência de renda, menor é o incentivo para que os beneficiários procurem um emprego. Na época, o autor chegou a dizer que preferia que não existisse nenhum tipo de imposto de renda, mas reconhecia que isso seria politicamente inviável. A proposta, então, era no sentido de ser um paliativo para esse mal necessário.

Mães de Goiás é um exemplo de um programa de transferência de renda criado por um governo de direita | Foto: Seds

E outro exemplo prático de que programas de transferência de renda não são uma “assinatura” de governos de esquerda está em Goiás. Em 2001, o governo de Ronaldo Caiado (UB) criou o programa Mães de Goiás, que oferece auxílio de R$ 250 por mês a mulheres em situação de extrema vulnerabilidade social, registradas no Cadastro Único de Programas Sociais (CadÚnico) do governo federal, com filhos de zero a seis anos de idade.

Bolsa família e o combate à fome

Tadeu lembra ainda que o Bolsa Família surge em um período em que o Brasil estava no mapa da fome. O ano era 2003 e o governo Lula dava seus primeiros passos e queria já mostrar a que veio. “Era uma fome urbana. O grosso dessa pobreza estava nas cidades e dados indicam isso. E, nesse contexto, o Bolsa família não surge sozinho. Ele surge com o conjunto de outros programas e benefícios”, completou o professor.

Para criar o programa, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não partiu do zero: os programas de transferência de renda que já existiam na gestão do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) chegaram foram reorganizados pela nova gestão, por exemplo. Nessa época, existiam Brasil a fora programas que distribuíam cestas básicas e vale gás, por exemplo, que foram substituídos.

É inegável que o Bolsa Família inovou e avançou quando se pensa em desenho, cobertura, capilaridade e estratégias. No entanto, ele aproveitou uma estrutura administravo-burocrática que já existia no Brasil e foi fundamental para garantir o bom funcionamento do programa. É o caso do CadÚnico, que já existia desde 2001 e hoje tem mais de 25 milhões de famílias cadastradas.

Para o professor Tadeu, o Cadastro Único com toda sua burocracia já existente foi fundamental “para que um conjunto de pessoas desse país começasse a recebem uma quantidade de recursos do governo que é basicamente uma mixaria”. “No início, os benefícios médios eram de R$ 63 e correspondia a 20 e poucos por cento do salário mínimo”, lembrou o professor da UFG.

Por isso, para Tadeu, o Bolsa Família, sozinho, não é capaz de conter a fome nem retirar uma parte da população da pobreza. E isso porque o valor que é pago a cada família é “muito pouco, quase irrisório”. Nos primeiros anos do Bolsa Família, vivíamos em outro contexto: inflação decrescente, aumento real do salário mínimo, desemprego em baixa. “O brasileiro tinha ganho de renda no geral”, lembrou Tadeu.

Hoje, a realidade é distinta. “Nos últimos anos, o Brasil nunca teve tanta gente fora da escola e sem trabalhar. Vivemos uma curva maior do desemprego, que ultrapassava os dois dígitos até bem pouco tempo atrás”, pontuou o professor, que avalia que é preciso, inclusive, olhar com mais atenção para a evolução dos microempreendedores. “Esse é um nome bonito para bico. Afinal, quem são eles? A maioria é formada por motoristas de aplicativo, pessoas que fazem comida pra fora, entre outras atividades”, destacou, lembrando ainda que, atualmente, ter curso superior não garante emprego a ninguém. Muito menos com renda maior.

Hoje, o Bolsa família de um piso mínimo de R$ 600 para cada família beneficiada, com benefícios adicionais. Por exemplo: para grávidas e para cada criança e adolescente de 7a 18, é pago R$ 50 e para cada criança de 0 a 6 anos registrada no CadÚnico é transferido R$ 150. Além disso, o programa é composto pelo Benefício de Renda Cidadã que oferece R$ 142 por membro da família; Benefício Complementar, que intera o repasse à família até o piso de R$ 600; e o Benefício Extraordinário de Transição, que repasso um valor para compensar as famílias que recebiam mais do que isso na época do Auxílio Brasil.

Para Tadeu Arrais, hoje o tripé do estado social brasileiro é o Benefício de Prestação Continuada (BPC), o Bolsa Família e a aposentadoria rural. “São os pobres recebendo pouco e fazendo a economia girar”, avaliou. “O programa é tão forte que nem o governo Bolsonaro conseguiu acabar com ele. Só mudou de nome e nem assim conseguiu despersonalizar”, avaliou o professor que ainda é enfático ao dizer que quando se tem fraude no programa, não é o pobre que faz.

Tadeu discorda de quem critica o Bolsa Família com o argumento de que ele é usado de forma eleitoreira. “Não há correlação exata da conversão de votos”, afirmou. De fato, o programa é o maior cadastro de famílias brasileiras – o professor estima quase 100 milhões de pessoas cadastradas -, no entanto, ele não acredita que o capital político eleitoral não pode ser medido por ele. “Sinal de que as pessoas percebem que esse é um direito delas”, garantiu.

Para o professor, numa sociedade de trabalho precário, com as características da goiana, em que o setor de comércio e serviços – e o setor agrícola também – têm baixa remuneração, é preciso olhar para os mais pobres. “Em uma democracia, é necessário a inserção dos mais vulneráveis. As pessoas em situação de rua, a população carcerária. Quem vai olhar pra essas pessoas?”, questionou.

Pra finalizar, o professor Tadeu contextualiza que as democracias liberais vendem a ideia de que o progresso material vai se dar a partir do trabalho e do consumo numa sociedade moderno. No entanto, a condição do desemprego crônico dos últimos anos é, na visão dele, uma ameaça às democracias. “Isso significa que o Estado vai ser exigido cada vez mais a trabalhar com dois tipos de transferência de renda: as diretas e as indiretas. E não há nada que indique que programas como o Bolsa Família têm data para acabar”, arrematou.