Estado de calamidade pública: o que esperar depois do ‘furacão’?
29 março 2020 às 00h00

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O Brasil está sendo posto à prova, enfrentando, quiçá, uma de suas piores crises. Resta saber se conseguiremos juntar os cacos e nos reerguer mais uma vez

O dicionário Michaelis da Língua Portuguesa define o substantivo ‘calamidade’ como “destruição ou desastre em grande escala que afeta extensa área ou grande quantidade de pessoas; catástrofe”. É um significado, no mínimo, amedrontador. E é para ser. Um fato, ou uma série deles, deve ocorrer causando o desequilíbrio das normas, rotinas e padrões de um determinado local para que a situação seja considerada calamitosa, e é exatamente a realidade que o Brasil tem experimentado. A determinação de pandemia do novo coronavírus por parte da Organização Mundial da Saúde (OMS) tem feito com que o cidadão presencie, estarrecido, as autoridades públicas acionarem o alerta vermelho máximo, decretando estado de calamidade pública diante da tempestade que já se abate sobre a população.
Tecnicamente, o estado de calamidade pública só vigora em situações realmente extremas. O decreto dá às autoridades competentes poderes para a adoção de medidas excepcionais consideradas necessárias à racionalização dos serviços públicos diante de um desastre. Em abril do ano passado, por exemplo, o prefeito da cidade do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, do Republicanos, decretou estado de calamidade pública depois que a “cidade maravilhosa” se viu submersa pela água da chuva.
Na época, foram registrados deslizamentos de terra, ruas alagadas e carros boiando na água em bairros das zonas Sul e Oeste. O decreto deu ao prefeito autorização, entre outras coisas, para descumprir alguns artigos da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Agora, um ano depois, Goiás vive o mesmo dilema. Mas, desta vez, o mal que acomete os goianos é pior, muito pior do que a chuva. O novo coronavírus, responsável pela Covid-19, doença que ataca as vias respiratórias e que já levou mais de 20 mil ao óbito no mundo todo, fez com que tanto o governador do Estado quanto o prefeito da capital decretassem estado de calamidade pública.
O decreto de nível estadual foi enviado à Assembleia Legislativa de Goiás (Alego) por Ronaldo Caiado no dia 23 de março, segunda-feira, e aprovado no dia 25, quarta-feira. Pela primeira vez na história, a matéria, publicada no suplemento do Diário Oficial do Estado (DOE) na quinta-feira, 26, foi votada e aprovada pelos deputados goianos por videoconferência. Isso porque as atividades parlamentares presenciais da Alego estão suspensas desde o dia 16 deste mês, devido ao coronavírus.

Em um trecho da justificativa para a aprovação do decreto que deverá vigorar até o dia 31 de dezembro, Caiado afirma que “a infecção humana pelo coronavírus é tão grave que seus impactos transcendem a saúde pública e afetam a economia como um todo”. Entre as medidas previstas está a flexibilização do cumprimento da meta fiscal no Estado diante da iminente elevação dos gastos públicos como tentativa de conter a crise e queda de arrecadação. Segundo Ronaldo Caiado, há uma previsão de déficit nas contas públicas na ordem de R$ 4 bilhões para esse ano devido à pandemia da Covid-19.
A fiscalização dos gastos executados pelo governo no combate à propagação do coronavírus durante os efeitos do decreto de calamidade pública ficará a cargo da Comissão de Tributação, Finanças e Orçamento (CTFO), designada no âmbito da Alego, que será composta por cinco membros titulares. A Comissão acompanhará, através de trabalhados desenvolvidos nos meios virtuais, a situação fiscal e a execução orçamentária e financeira das medidas relacionadas à Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN).
Juntamente com o decreto de calamidade pública, e em razão dele, o governador Ronaldo Caiado publicou o decreto nº 9.644, em alteração ao de nº 9633, que determina situação de emergência na saúde pública do Estado. Esse decreto reforça a determinação do governo de Goiás de que toda e qualquer atividade comercial, industrial e de prestação de serviços, considerada de natureza privada e não essencial à manutenção da vida seja suspensa até o dia 4 de abril.
Entretanto, ele também flexibiliza a abertura de algumas novas atividades, determinando que ficam autorizados a funcionar borracharias, oficinas, restaurantes e lanchonetes em rodovias no Estado. Oficinas mecânicas e borracharias em áreas urbanas também poderão abrir em regime de revezamento, que será estabelecido pelos municípios goianos. Além das obras da construção civil relacionadas a energia elétrica, saneamento básico, hospitalares e penitenciárias, as obras de infraestrutura do poder público e aquelas de interesse social, bem como os estabelecimentos comerciais e industriais que lhes forneçam os respectivos insumos “não estão mais entre as atividades com suspensão prevista”.
Governos municipal e federal também puxaram a “alavanca” da calamidade pública
Não foi apenas o governador Ronaldo Caiado, em âmbito estadual, que julgou a necessidade de decretar estado de calamidade pública. No dia 24 de março, um dia depois de ter recebido, por parte do prefeito Iris Rezende, o decreto para apreciação, a Câmara Municipal de Goiânia também aprovou estado de calamidade pública na cidade.
A aprovação se deu por unanimidade, em sessão extraordinária, e o autógrafo de lei foi encaminhado no mesmo dia para a Prefeitura, a tempo de ser publicado no Diário Oficial. Assim como o decreto estadual, o municipal impõe estado de calamidade pública em Goiânia até o dia 31 de dezembro. O objetivo, segundo a própria prefeitura é “permitir a contratação de servidores temporários para Saúde, bem como remanejamento de recursos para área”.
O prefeito Iris garantiu que, desde a primeira notificação em Goiânia, o município tem trabalhado “intensamente na prevenção ao novo coronavírus”. “Nossa dedicação é integral ao acompanhamento da situação e na definição de novas medidas diariamente. Decretamos situação de calamidade para garantir que todos os esforços possam ser direcionados à saúde da nossa população”, declarou.
O decreto de calamidade pública trouxe, além da possibilidade de remanejamento dos servidores lotados nos órgãos e entidades da Administração Municipal para a Secretaria de Saúde, a suspensão temporária do concurso público cujo edital já havia sido divulgado.
No dia 20 de março, foi a vez do Congresso Nacional. Em votação unânime, o Senado aprovou o decreto legislativo que reconhece estado de calamidade pública no Brasil. A votação ocorreu remotamente, e foi a primeira vez nos quase 200 anos do Senado Federal, que os parlamentares votaram uma matéria sem estarem numa sessão plenária.
Também é a primeira vez que o Brasil entra em estado de calamidade desde que a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) entrou em vigor. O texto foi aprovado com 75 votos e promulgado imediatamente após a votação. Ele autoriza o governo federal a gastar mais do que o previsto e desobedecer as metas fiscais para custear ações de combate à pandemia. Desse modo, o rombo nas contas públicas poderá ir além de impressionantes R$ 124,1 bilhões, que é meta fiscal para o governo central definida no Orçamento para este ano.
Calamidade pública x Calamidade financeira
Em janeiro de 2019, Caiado decretou estado de calamidade financeira por um ano em Goiás. Apesar do termo soar tão assustador quando o de calamidade pública, eles possuem efeitos distintos.
De acordo com o doutor em Economia e professor da Universidade Federal de Goiás (UFG) Everton Rosa, a calamidade financeira significa reconhecer que “o ente chegou ao limite e não tem condições de atuar com equilíbrio das contas”, o que não necessariamente é causado por um fator de catástrofe ou desastre natural.
Segundo Everton, a ideia desse tipo de decreto é que os Estados ou municípios possam ter permissão para descumprir algumas regras da LRF. “O ponto é que não tem necessariamente relação com uma situação de emergência como a de destruição natural, como terremotos, tornados, furações, como ocorre em outros países, ou uma crise de saúde como temos no momento”, explica.

Se o decreto de calamidade pública tende, diretamente, a salvar a vida da população por meio de medidas emergenciais, o de calamidade financeira tende a salvar as contas públicas. “A ideia, sem a crise natural ou de saúde, é conquistar alguma flexibilidade para o Estado não parar, reagir para pôr as contas em ordem”, diz o professor.
Ainda segundo Everton, a preocupação inicial do decreto de Caiado “é evitar eventuais punições a que o Estado e o município estariam sujeitos se a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF)” for aplicada sem ressalvas”. “Então, a ação estadual e municipal é de garantir que estes entes terão flexibilidade para descumprir os limites impostos pela LRF, como limites com folha de pessoal, tetos de endividamento público e não estarão sujeitos aos prazos de reorganização das finanças públicas também definidos pela LRF”, esclarece.
Tempos difíceis podem estar por vir
No início do ano e 2019, o governo federal projetou um crescimento do PIB de 2,2%. Ao final do ano, tivemos um pífio 1,1%. O resultado intrigou os especialistas. Nos dois anos anteriores, 2017 e 2018, o crescimento do PIB foi de, em ambos, 1,3%. O próprio secretário do Tesouro Nacional, Mansueto Almeida, chegou a dizer que “não era normal para um país que está em desenvolvimento crescer apenas 1,1%” em 2019. E se o cenário econômico já se projetava sombrio para 2020, com a pandemia do coronavírus e os decretos de calamidade pública em todas as esferas, ele tem se deformado em um monstro de dar medo em qualquer escola de Economia.
Há uma semana, o governo federal revisou a projeção do crescimento do PIB em 2020. De 2,1% ele passou para inacreditáveis 0,02%, o que, do ponto de vista econômico, é zero. Para Everton, a pandemia do coronavírus é o agravante maior que faz com que sejamos levados a esperar tempos difíceis na economia, mas não é o único. Segundo o professor e economista, “sem a pandemia do coronavírus as previsões já eram fora da realidade, e a economia brasileira está sem motor de crescimento”.
“A economia não cresce sem investimento, sem ampliação da renda das famílias e da produção. A equipe [econômica do governo federal] conseguiu levar o Brasil ao seu menor nível de investimento público em décadas. Eu temo que a crise que vivemos será muito pior que em outros países pois falta visão para estes economistas”, argumenta Everton.
O professor acredita que as expectativas para o que está por vir da crise econômica gerada pela pandemia do coronavírus e por, segundo ele, medidas econômicas inadequadamente, não são das melhores. “Não acho que teremos apenas uma recessão, mas provavelmente uma depressão, com destruição de muitas atividades econômicas, postos de trabalhos e empresas de diversos portes. A duração do estado de calamidade poderá que ser estendida, mas não vejo outra forma para recuperarmos a economia sem garantias governamentais de segurança econômica para a população comum e sem apoio e até participação pública nos negócios privados”, explica.
Segundo ele, há a necessidade de uma “economia planejada de guerra para enfrentar a pandemia, de ação articulada entre o Banco Central e o Tesouro para garantir a renda da população e a organização da produção essencial neste momento”.
Os decretos de calamidade pública podem ser o prenúncio de um mal maior que ser constatados. Mas também, pode ser “a noite escura” que anuncia a aproximação da “alvorada”. Quanto a isso, ninguém pode ter certeza. Mas uma coisa é livre de dúvida: o Brasil, assim como o resto do mundo, está sendo posto à prova, enfrentando, quiçá, uma de suas piores crises. Resta saber se, após a passagem do “furacão”, saberemos juntar os cacos e nos reerguer mais uma vez.

