“Todo dia era dia de índio” era um verso que fazia eco nos ouvidos das crianças e adolescentes da década de 80, quando a música foi sucesso na voz de Baby Consuelo, que depois se tornaria Baby do Brasil. O nome da canção, na verdade, é Curumim Chama Cunhatã Que Eu Vou Contar, composta por Jorge Benjor, que à época ainda Jorge Ben.

Particularmente, dois trechos chamavam a atenção. Um era este:

Antes que o homem aqui chegasse
As terras brasileiras
Eram habitadas e amadas
Por mais de 3 milhões de índios
Proprietários felizes
Da terra Brasilis

O outro:

Todo dia era dia de índio
Mas agora eles só têm
O dia 19 de Abril

A letra inteira é uma ode ao indígena telúrico, com cenários idílicos (“amantes da natureza/ eles são incapazes/ com certeza/ de maltratar uma fêmea/ ou de poluir o rio e o mar”)

Nas escolas do 1º grau (hoje ensino fundamental) dos anos 80, com uma pitada de nacionalismo do regime militar, as datas costumavam ser mais celebradas. Entre elas, o 19 de abril, o Dia do Índio – nomenclatura que hoje é obsoleta diante da ética linguística – prefere-se indígena ou, para a coletividade, povos originários em vez de índios.

O fato é que restou pouco aos indígenas para comemorar. Desde a chegada das naus portuguesas em 1500, os povos indígenas foram dizimados em um processo de colonização que priorizou a exploração econômica em detrimento dos direitos e da dignidade dos habitantes originais do território.

Falar em “direitos indígenas” é quase um neologismo diante de uma constante de história de destruição que foi manifesta em praticamente todos os momentos da trajetória até os dias atuais, em que a Nação “descobre” que esteve em curso, nos últimos anos, uma política criminosa contra a população Yanomami.

Não é à toa que bandeirantes batizam rodovias e têm estátuas em praças centrais: durante muito tempo o Brasil e seus governantes tiveram uma visão eurocentrista do processo de colonização. Os episódios de violência praticados por Fernão Dias, Raposo Tavares, Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera, e tantos outros, bem como a conversão forçada à religião ocidental foram tidos como fenômenos naturais, no máximo, consequência do “necessário” processo civilizatório.

Houve a ocupação de terras e de recursos naturais de que usufruíam centenas de povos, cada um com sua cultura, sem qualquer tipo de consulta ou respeito a seus ritos e tradições.

Nem seria preciso dizer que a consequência, durante o período colonial, foi a extinção completa de povos que eram numerosos. Outros foram forçados a se adaptar à cultura do colonizador e perder sua identidade cultural. Entre os episódios de violência e crueldade contra os povos indígenas ficaram mais marcados alguns, como a Guerra dos Aimorés e a Guerra dos Tamoios – que, curiosamente, pela nomenclatura que os eventos receberam, parecem tê-los como protagonistas e não como vítimas.

No período imperial, teve início uma política de “civilização e pacificação” dos indígenas, o que foi levado a cabo mais tarde pelo marechal Cândido Rondon, com o objetivo de integrar os povos originários à sociedade brasileira. Uma iniciativa menos desastrosa, mas que não impediu diversas violações de direitos e massacres, como o caso dos índios Cinta Larga em Rondônia, que sofreram com a invasão de suas terras por garimpeiros e com a omissão do Estado.

Ainda que novos ares devessem ter sido respirados com o novo milênio, principalmente em relação à sustentabilidade e à preservação ambiental, a questão indígena continuou negligenciada, com os povos enfrentaram novos episódios de violência e exclusão social. O “avanço para o Oeste”, que dizimou o Cerrado e encurralou as aldeias indígenas, chegava de vez aos recônditos do País, com a construção de grandes empreendimentos, como a Usina Hidrelétrica de Belo Monte, que afetou diretamente as comunidades indígenas do Xingu, no Pará – eles tiveram suas terras contaminadas e suas fontes de subsistência comprometidas.

A falta de respeito às tradições e às línguas indígenas continua contribuindo para a perda da identidade cultural desses povos, o que tem consequências graves para sua autoestima e para o fortalecimento de suas comunidades. Mais do que isso, cada língua indígena que se perde, como tantas já se foram, é um mundo inteiro que deixa de existir, em suas particularidades – porque onde não há escrita, só há a tradição passada entre as gerações; sem descendentes para contar, nada resta.

A invisibilidade dos povos indígenas na mídia e na política continua gritante. Apenas a partir de 2023 existe um Ministério dos Povos Indígenas, comandado por uma mulher indígena, Sônia Guajajara. E, por ironia, tendo em vista o que havia até o ano passado, no governo de Jair Bolsonaro, é uma grande revolução positiva – tamanha era a destruição que se implantou durante os anos da extrema direita no poder, que reforçou a ideia de que a existência de indígenas não é importante ou relevante para a sociedade. “Eles querem ganhar dinheiro”, dizia o ex-presidente, em sua análise inescapavelmente tola e simplista.

E agora, chegou a semana de mais um 19 de abril. Dos “3 milhões de índios” cantados por Baby Consuelo, hoje, mesmo com o crescimento da população, não há nem um terço atualmente.

O cenário da questão indígena, ainda mais diante das mudanças climáticas, é algo fundamental para se debater. O Brasil, mais do que fazer propaganda no exterior sobre o tema, precisa de fato assumir seu compromisso com a proteção dos direitos indígenas e adote medidas efetivas para garantir sua sobrevivência e dignidade. Isso inclui a demarcação e proteção das terras indígenas, a garantia do acesso à saúde e à educação de qualidade e a promoção do respeito às tradições e às línguas indígenas.

Em tempo: a decisão sobre o marco temporal no Supremo Tribunal Federal (STF) deve ocorrer este ano. Não depende do governo, é fato, mas sua rejeição pode marcar uma nova era para a questão indígena no Brasil.