Dizer que processo contra Dilma tem algo a ver com o fato de a presidente ser mulher é ignorar o mundo em que vive
30 abril 2016 às 13h04

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Se Dilma enfrenta um impeachment não é por ser do sexo feminino, mas por outros motivos. No mundo, existem vários exemplos de mulheres que mostram sua competência administrativa

Marcos Nunes Carreiro
No dia da votação para a admissibilidade do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT) na Câmara dos Deputados, ouvi a seguinte frase: “Essa mulher não deveria ter nem sido eleita. Mulher não sabe governar”. Em resposta, uma mulher disse: “Se fosse homem, então, não sairia do poder?”.
Eu não estava em Brasília, mas assisti à votação pela TV junto com muitas pessoas. E, como a cultura do futebol vigora no Brasil, assistir a uma votação importante como essa, e que mexe com as paixões de muitos, é o mesmo que ver um jogo de futebol em meio a duas torcidas diferentes. Cada lado fala o que quer.
Bem, neste caso, os dois lados estão errados. Dilma dá todos os sinais de ser uma pessoa honesta e é exatamente por isso que ela servirá de bode expiatório. Por algum motivo, ela escolheu não ser a líder do governo e isso, politicamente falando, é um erro grave. Sabemos que um governante precisa “colocar as mãos” na política. Dilma, uma técnica, não quis fazê-lo; ao contrário, desenvolveu uma relação ruim com deputados e senadores.
A verdade é que o chefe do Poder Executivo precisa “agradar” o Legislativo para atraí-lo e, assim, fazer política; criar condições de governabilidade. Dilma não o fez. Dessa forma, não é uma questão de gênero. Se Dilma fosse homem, mas mantivesse essa mesma conduta, seria impedida da mesma forma, como Collor foi.
Mas o grave de toda essa discussão é a primeira fala, a que acusa de incompetência alguém pelo simples fato de ser mulher. Isso diz muito a respeito da cultura do brasileiro e não apenas de homens. Existem muitas mulheres que pensam assim; algumas até com um alto nível de esclarecimento.
Durante manifestação de um grupo de mulheres em São Paulo, na semana passada, a manifestante Edna Ferreira disse: “As mulheres tem de estar em todos os lugares e nós estamos aqui na luta para ocupar todos eles”. E a luta é legítima, sobretudo em um país como o Brasil, cuja cultura pouco favorece as mulheres.
Agora, não se pode tirar a razão de quem fala que o impeachment tem lá o se “quê” de machismo. Vejamos: é certo que o “tchau, querida” — alusão à conversa de Dilma e Lula, liberada pelo juiz Sérgio Moro — foi utilizado como chacota no dia da votação na Câmara, ato aparentemente pensado pelo deputado Paulinho da Força (SD-SP). E esse gracejo tem, de fato, partes fortes de um machismo escancarado.
O “querida” da frase diz muito: quando alguém de fato querido diz isso, a palavra ganha contornos de carinho, mas quando é com ironia, ela assume tons de desprezo. Não se viu mulheres segurando o cartaz de “tchau querida” no dia da votação, apenas homens. A foto que abre a matéria mostra o contraponto: de um lado, o deputado Paulo Pereira (PMDB-RS) segurando o “tchau querida”; do outro, a deputada Moema Gramacho (PT-BA) com o cartaz “fica, querida”.
Mas o ponto central de tudo é: se Dilma não conseguiu governar, é por muitos outros motivos que nada têm a ver com o fato de ser mulher, até porque o número de mulheres com reconhecida competência política e administrativa no mundo é grande o suficiente para descartar qualquer teoria que diga o contrário.

Devido a sua rigidez — como pessoa, não como governante — Dilma chegou a ser comparada, no início de seu mandato, a Margaret Thatcher. Esta foi não apenas a única primeira-ministra mulher da Inglaterra, como ocupou o cargo por três mandatos consecutivos, de 1979 a 1990. Conhecida como Dama de Ferro, ela foi responsável por implantar importantes políticas públicas na Inglaterra, de privatização de estatais ao combate à influência dos sindicatos britânicos.
Suas ações, embora ainda criticadas por muitos até hoje, possibilitaram que muitas pessoas conseguissem comprar casas populares, fora o incentivo ao mercado financeiro pela compra de ações nas empresas recém-privatizadas.
As políticas de desestatização eram, na visão de Thatcher, um modo de moralizar as finanças públicas. Seus atos estavam centrados na diminuição do papel estatal e no incentivo ao livre mercado. As mudanças feitas por Thatcher na economia foram, para usar um termo atual, estruturantes. Quando ela assumiu, em 1979, o país se encontrava fragilizado economicamente: inflação alta (quase 25%) e dívida externa (em 1977, o FMI precisou emprestar dinheiro ao país).
Para combater a inflação, Thatcher aumentou os juros, ordenou cortes orçamentários e encabeçou novas políticas monetárias, controlando o aumento da oferta. Porém, aliada à austeridade fiscal, a política conhecida como “monetarismo” aumentou muito o valor da libra esterlina, o que gerou prejuízo à indústria e aumentou o desemprego. O alto custo do crédito prejudicou os negócios, o que gerou uma recessão no início dos anos 1980. Thatcher, contudo, não cedeu e manteve suas políticas.
Como seu governo era impopular, ela só foi reeleita em 1983 devido à Guerra das Malvinas, em 1982, contra a Argentina. O confronto, vencido pela Inglaterra, a ajudou a contornar o momento de crise e a garantir sua reeleição. As políticas que implantou durante o primeiro mandato surtiram efeito ainda antes da primeira metade da década de 1980 e, pode-se dizer, colocaram o Reino Unido no caminho de um crescimento econômico sólido que durou até a chegada da crise de 2008.
A chanceler da Europa

A crise de 2008 afetou a Europa de maneira ímpar. A Europa ficou em estado “miserável” com a crise corroendo os países; os orçamentos se desequilibraram devido aos pacotes de salvamento dos bancos que passavam por dificuldades. Em 2010, a Grécia já estava numa situação complicada — a qual se juntaram Irlanda e Portugal, e depois Espanha e Itália, que também pediram proteção da União Europeia (UE).
Naquele ano, a chanceler da Alemanha, Angela Merkel, já era uma autoridade respeitada na Europa, trajetória que começou no dia 20 de dezembro de 2005. Stefan Kornelius, biógrafo de Merkel, conta que ela chegou a Bruxelas pela primeira vez como chefe de governo para uma reunião do Conselho Europeu.
Tinha fama de ser anglófila e sem experiência na política europeia, mas, em sua primeira noite de cúpula, Merkel negociou o orçamento da UE até 2013. Foi preparada e conversou com todos os chefes de Estado de forma individual e venceu a todos com argumentos, obrigando a cúpula a consentir com seu plano.
Dois anos mais tarde, Merkel já era conhecida como uma grande estadista, tendo conseguido para a Alemanha novos campos de atuação no mundo e demonstrado que era capaz de jogar os complicados jogos do xadrez diplomático. Em 2007, Merkel assumiu a presidência do Conselho Europeu e do G8, grupo dos países mais desenvolvidos do mundo, em nome da Alemanha e encarou uma Europa paralisada, incapaz de agir.
Não demorou muito para que ela conseguisse unir a Europa, demonstrando em seus discursos e diálogos a importância da união: “A Alemanha sempre entendeu a unificação europeia como parte de sua razão de Estado”, disse a chanceler.
Veio a crise de 2008, e Merkel ainda à frente da UE enfrentou a situação. “Enfrentar sucessivamente é a ideia que Merkel tem de um processo político: ela identifica um tema, ordena-o no seu mundo de pensamentos, divide-o em subproblemas e depois o resolve”, relata Kornelius.
Voltemos a 2010, ano no qual começamos a falar sobre Merkel. Naquele ano, tornou-se visível a existência de um grave erro de construção na Zona do Euro, que contava com países demasiadamente endividados e que não poderiam sair da União, mas que dela necessitavam ajuda. Em 2010, nem Merkel havia conseguido ainda entender a crise. Somente em 2011 ela começou a falar com determinação sobre o tema.
A grande batalha de Merkel, que passou a ser vista então com uma áurea quase demoníaca — “Merkel, a Thatcher europeia” —, foi para criar uma política econômica comum para a UE, visto que compartilhavam a mesma moeda. Merkel pregava que a ajuda da UE deveria ser dada apenas se os países ajudados se comprometessem a se empenhar para colocar em prática suas reformas. A ideia era que todos se tornassem competitivos. O objetivo de Merkel não era apenas superar a crise, mas criar mecanismos que estimulassem a economia de forma permanente.
A chanceler alemã se tornou, assim, a chanceler da Europa. Traçou um plano para ela, que caminha lentamente, mas tem dado certo. Ela é dura no governo e eficiente, pois trabalha com base em um método: luta silenciosamente consigo mesma e com seus fiéis mais próximos; se aproxima metodicamente de um problema, o divide em pequenos pedaços e os soluciona um a um. E o mais importante: não faz isso sozinha, trabalha com uma equipe qualificada.
Merkel ainda luta pela Europa e seu protagonismo, mesmo abalado por suas políticas diante da crise, existe e apareceu novamente diante da crise dos refugiados do Oriente Médio. Foi ela a primeira a abrir as portas da Alemanha para receber aqueles que fogem da guerra. Não fez de maneira acertada e acabou criando problemas de segurança no país, mas serviu para iniciar o debate.
Por tudo isso, Merkel não é, atualmente, uma figura exatamente amada. Porém, sua competência é inegável. Afinal, ela está é a chefe da maior economia da Europa.
Bachelet

Michelle Bachelet assumiu o governo do Chile em 2006, sendo a primeira mulher a ser presidente do país. Após 10 anos de governo, claramente, ela enfrenta os desgastes do tempo e da crise econômica que também afetou o Chile, país que tem grande parte de suas receitas com base na exportação de commodities, que caíram substancialmente nos últimos anos.
A exemplo de Dilma, Bachelet também tem sofrido ataques da oposição em seu país; tem perdido apoio. Porém, sua capacidade política parece ainda ser forte para aguentar a pressão. Porém, apesar das dificuldades que parecem ter afetado a América Latina, é inegável que o Chile, sob a presidência dela, avançou muito em setores considerados básicos, como a educação e os direitos humanos.
E foi justamente o seu trabalho à frente do Chile, país com os melhores índices de desenvolvimento da América Latina, que levou Bachelet à presidência da Organização das Nações Unidas Mulheres (ONU Mulheres), órgão da instituição voltado para o compromisso de trabalhar pela igualdade de gêneros.
A ONU Mulheres foi criada em 2010 e, partir daí, passou-se a discutir que uma mulher assuma a secretaria-geral da ONU. A defesa, sustentada por um grupo de 56 países sob a liderança da Colômbia, defendem que isso aconteça já no fim deste ano, quando o atual secretário-geral, Ban Ki Moon, deixará o cargo.
A ideia acaba tendo como ponto de partida a própria Bachelet, que acaba representando as outras mulheres que estão à frente de países ou instituições importantes do mundo, como Angela Merkel, Hillary Clinton — que pode se tornar a primeira mulher a presidir os Estados Unidos — e a própria Dilma, primeira mulher à frente do Brasil — fora Christine Lagarde, atual presidente do Fundo Monetário Internacional (FMI). O debate foi continua.
Um exemplo de competência feminina em Goiás

A crise financeira está instalada no Brasil, sendo esse justamente o principal motivo para que o impeachment da presidente venha sendo estudado, debatido e agora julgado pelos poderes competentes. A situação já havia sido prevista em 2014, ano em que muitos economistas já alertavam para o que estava por vir.
Em Goiás, no fim daquele ano e em meio ao enxugamento da máquina, o governador Marconi Perillo (PSDB) convidou Ana Carla Abrão para assumir a secretaria da Fazenda do Estado. Ana Carla, à época, ocupava a diretoria de risco de crédito do banco Itaú, um dos maiores grupos financeiros da América Latina.
Ana Carla chegou com a tarefa de promover um ajuste fiscal que permitisse a Goiás passar pela crise com o mínimo de impacto possível. Mesmo com resistências dentro do próprio governo, ela fez o trabalho e apresentou, no início deste ano, os números do ajuste: “Não tenho dúvida de que Goiás fez o maior ajuste fiscal de todo o País. No total, no orçamento de 2015, chegamos a mais de R$ 3 bilhões de cortes”.
Esse trabalho, embora impopular, parece ter impedido que Goiás entrasse na rota de estados como Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Isso significa que o Estado superou a crise? Não, até porque o período é difícil para o País. Porém, para ela, a situação atual é muito melhor que a do ano passado.
Ana Carla é reconhecida por seu trabalho e, exatamente por isso, foi convidada para assumir a Secretaria da Fazenda de Goiás. Partiu dela, por exemplo, a proposta de uma Lei de Responsabilidade Fiscal estadual (LRFe) que possibilite ao Estado, ao Tesouro estadual, condições de fazer investimentos e andar sem tanta dependência da União. Afinal, este é um dos grandes problemas atuais: a má distribuição de recursos entre os entes federativos.
A proposta, nascida em Goiás, já influenciou vários outros estados. O Rio Grande do Sul, inclusive, já aprovou a sua LRFe; Rio de Janeiro, Espírito Santo, Tocantins e Mato Grosso já estão com suas leis nas assembleias legislativas. E essas são apenas algumas das ações desenvolvidas.