Com um fluxo superior a 40 mil veículos por dia, mas com infraestrutura da década de 1970, a via é, ao mesmo tempo, seminal para a economia do País e uma arma que tira a vida de milhares de brasileiros

Criada para unir o Norte ao Sul do Brasil, BR-153 foi um marco no desenvolvimento do País, mas sua estrutura se tornou obsoleta e já não suporta a demanda. Continua importante, mas também representa um perigo para muitos

 

Revisão feita, tudo certo. O senhor pode viajar tranquilo. Tem certeza? Olha lá, hein, disse Maurício, entre risos. Absoluta, res­pondeu com bom humor o mecânico.

A essa altura, Thiago já estava dentro do carro e tinha voltado a dormir, algo normal para crianças de 8 anos que mal esperam chegar o recesso das aulas para não precisar acordar cedo. Rosa, por outro lado, estava ansiosa, afinal, havia organizado aquela viagem há meses. Seriam suas primeiras férias em três anos e ela queria aproveitar.

O itinerário era perfeito: pegar o carro na oficina às 8 horas, sair de Pal­mas até 8h30 para tentar chegar a São José do Rio Preto antes da meia-noite.

As famílias de Maurício e Rosa eram paulistas. Eles também; mu­daram-se devido aos empregos dos dois: ele era professor do curso de engenharia civil na Universidade Federal do Tocantins (UFT) e ela contabilista em uma empresa que prestava serviços para uma multinacional. Receberam propostas mais ou menos na mesma época. Ele foi primeiro, porque precisava tomar posse no concurso; ela o seguiu dois meses depois.
Rosa viajava muito por causa de seu emprego e, por isso, queria pegar um pouco de estrada; estava cansada de aeroportos. Então, a ideia era sair de Palmas, parar em São José do Rio Preto, onde ficariam três dias na casa de sua sogra, Marta. Lá se juntaria a eles Lucas, filho do primeiro casamento de Maurício, e que estudava na Unicamp.

Conseguiram cumprir a primeira parte do cronograma e chegaram a Porangatu, Goiás, por volta das 13h30. Thiago, já desperto, perguntava à mãe como era o mar. Floria­nó­po­lis, o destino final da família, tinha surgido durante a conversa do almoço e Rosa descrevia o hotel em que se hospedariam, que tinha vista para a praia, o que aguçou a curiosidade do garoto. Ele iria conhecer o mar pela primeira vez.
O mar, disse Rosa, quando quebra na praia, é bonito, é bonito.

Acho que ele não vai entender Dorival Caymmi, Rosa. Aliás, essa música não é lá muito feliz. Pense em outra coisa.
E Maurício tinha razão. Foi ele quem apresentara a esposa à sua xará da música de Caymmi. A canção é bela, mas a letra de uma melancolia só, pois narra a tristeza de Rosinha depois de perder o amado Pedro, que um dia saiu para pescar no mar e por lá ficou.

O mar é bonito. É só isso que estou dizendo, terminou Rosa. Você vai ver, Thiago.

Essa foi a única fala de Maurício durante o almoço. Ele parecia cansado, mas estava, na verdade, ansioso. Queria ver a mãe, a quem não visitava há dois anos, e o filho mais velho, com quem não conversava há três dias. Ele e Lucas costumavam se falar via Skype. Não era o ideal, mas dava uma ideia de proximidade superior à do telefone; pelo menos se viam.

De volta ao carro, a família teve condições de ver melhor a cidade. Porangatu é a segunda maior cidade da região Norte de Goiás — só fica atrás de Niquelândia — e que se desenvolveu muito nos últimos anos, tornando-se referência. Há teatro, bibliotecas e uma agenda cultural intensa naquele município de 45 mil habitantes. Porém, a família pôde ver também uma cidade com muitas lojas fechadas e com maquinário parado.

O que eles não sabiam, nem Maurício, era que o cenário visto se dava tanto devido à crise quanto à paralisação das atividades do Grupo Galvão no município, empresa responsável por obras na BR-153, a rodovia que cruza a cidade e para a qual a família se dirigia.

Aliás, a BR-153 era a principal estrada a ser percorrida por eles, que entraram na rodovia em Aliança do Tocantins e só iriam sair dela em São José do Rio Preto. Seriam mais de mil quilômetros rodados e, como a viagem era demasiadamente longa, Thiago resolveu procurar um filme para ver no DVD do carro. Soltou o cinto e foi verificar o porta-luvas, já que a mãe estava dormindo.

A situação não agradou a Maurício, que mandou o garoto voltar ao seu lugar para que ele mesmo pudesse pegar os filmes. Tirou os olhos da rodovia por 30 segundos e a falta de atenção custou caro: não viu que a pista de duas faixas havia terminado, acabou passando para a contramão e colidiu de frente com um caminhão que ia de Goiânia para Belém. O cronograma não pôde mais ser cumprido. E nem iria.

A história de Maurício, Rosa e Thiago é fictícia, no sentido de que não aconteceu de fato, mas é bastante real para muitos brasileiros que perderam algum conhecido ou parente nesta rodovia que cruza seis estados (Tocantins, Goiás, Minas Gerais, São Paulo, Paraná e Santa Catarina), ligando a cidade de Marabá, no Pará, ao município de Aceguá, no Rio Grande do Sul. Trata-se da quarta maior rodovia do Brasil e que totaliza 4.355 quilômetros de extensão.

A BR-153 nasceu para levar desenvolvimento aos pontos ermos do País, seguindo o que Juscelino Kubitschek começou com a construção de Brasília, cidade cujo objetivo principal era fomentar o desenvolvimento, reduzindo as desigualdades regionais, já que o Brasil só tinha força econômica no litoral. Assim, a mudança da capital do Rio de Janeiro para o Planalto Central era necessária. Tanto é que foi devido à presença de Brasília que as regiões Centro-Oeste e Norte puderam se desenvolver.

Como uma cidade no meio do Brasil conseguiu fomentar crescimento na região Norte? Em grande parte, devido à rodovia que foi construída para cruzar o País. Era um sonho de Juscelino Kubitschek integrar o Brasil de Norte a Sul e assim foi feito. A hoje chamada BR-153, também conhecida como Transbrasiliana, inicialmente levou o nome de Bernardo Sayão, principal engenheiro de seu trecho norte, a Belém-Brasília, que começou a ser construído em 1958 e em 1960 já estava em operação total, mesmo que não pavimentado, o que só aconteceu na década de 1970.

A rodovia permitiu aos produtores rurais acesso de escoamento, o que garantiu aumento de renda e atração de pessoas. Tanto que, às margens da via, surgiram pelo menos 60 municípios, oriundos de acampamentos da Rodobras, em­presa responsável pela construção — grande parte deles no Tocantins, Estado que é mais novo que a própria rodovia. Por isso, é possível dizer até que a BR-153 foi o toque final da “Marcha para o Oeste” iniciada por Getúlio Vargas na década de 1930.

Atualmente, a BR-153 é a principal rota de escoamento da produção industrial da Zona Franca de Manaus para o Sul e Sudeste do País e por ela também passa boa parte da produção de grãos e do setor agropecuário produzidos na região. Isso mostra a importância que a BR-153 tem para o Brasil. Um fato.

Contudo, a rodovia que foi feita para suportar um fluxo de aproximadamente mil veículos por dia na década de 1960, atualmente precisa aguentar um tráfego diário superior a 40 mil automóveis. E se o número de carros e caminhões aumentou 40 vezes, a estrutura da pista não mudou tanto, o que a transforma num perigo constante para quem precisar trafegar por ela.

A relação da BR-153 com os brasileiros é esquizofrênica: ao mesmo em que é seminal para o País, funcionando como a coluna vertebral — aquela que literalmente sustenta — os negócios de praticamente todos os Estados, é também um instrumento letal. Em todos esses anos, dezenas de milhares de acidentes ocorreram e é provável que em cada Estado do País haja uma família que tenha perdido um ente querido nela.

São três as razões principais para isso:
1) As más condições da pista: em muitos lugares, ainda existem buracos, o que faz os motoristas andarem em ziguezague, aumentando muito a possibilidade de acidentes. Além disso, não há mais acostamento em vários trechos;
2) Grande parte da rodovia ainda não é duplicada: com um fluxo tão grande de veículos, é inevitável que haja acidentes em uma pista não duplicada;
3) A imprudência dos motoristas.

O governo federal tem consciência da situação, mas sempre alegou não ter condições financeiras para realizar as intervenções necessárias e, por isso, começou, em 2014, a fazer concessões de trechos da BR-153 para empresas privadas. Atual­mente, há duas concessionárias na rodovia: a Triunfo Concebra, responsável por parte do trecho goiano e mineiro; e Transbra­siliana S.A., que reponde pelo trecho paulista.

Essas concessões melhoraram a manutenção da pista, que também foi duplicada em alguns trechos. Existe uma duplicação da rodovia entre Interlândia, distrito de Anápolis, em Goiás, até o chamado Trevão Mineiro, en­troncamento das BRs 153 e 365, e que pertence ao município de Monte Alegre de Minas. São 342 quilômetros de rodovia duplicada, dos quais 62 quilômetros estão em território mineiro e 280 em Goiás.

A extensão da BR-153 em território goiano é de aproximadamente 700 quilômetros, logo, a parte duplicada representa 40% disso. É pouco. Tanto que o trecho que vai de Anápolis a Po­rangatu foi apelidada de “Ro­dovia da Morte”. O motivo é óbvio. Em 2001, por exemplo, dois vereadores de Porangatu, que estavam a caminho de Goiânia, se envolveram em um acidente e morreram. O mesmo aconteceu com a ex-prefeita de Uruaçu, Marisa Santos, falecida em 2011, vítima de uma colisão frontal com outro carro.

Dessa forma, é inevitável a conclusão de que a BR-153 precisa ser, pelo menos, duplicada. Se não for, continuará sendo a “Rodovia da Morte” para milhares de brasileiros.

O plano de duplicação

Vilmar Rocha: “Não podemos mais esperar a duplicação” | Foto: Fernando Leite / Jornal Opção

O governo federal deu início, em 2012, ao Programa de Investi­mentos em Logística, previsto no PND (Programa Nacional de Desestatização), com uma previsão de investimentos na casa dos R$ 46 bilhões com os nove leilões
previstos, envolvendo a concessão de 7 mil km de rodovias e investimento.

Em Goiás, entrou na roda de concessões a BR-153. O trecho de Itumbiara a Anápolis foi concedido à Triunfo Concebra e de Anápolis e Aliança do Tocantins ao Grupo Galvão. O trecho tem 624,8 quilômetros de extensão e atravessa 23 municípios. O compromisso do grupo era de investir R$ 4,31 bi­lhões na rodovia durante os 30 anos de contrato. Em contrapartida, a empresa iria instalar nove postos de pedágio, sendo seis deles em Goiás e três no Tocantins.

Agora, o grande ponto do contrato era a missão da Galvão de duplicar 598 quilômetros da rodovia até 2019, o que, passados dois anos, sequer começou a ser feito. Acon­tece que a Galvão Engenharia acabou envolvida nas investigações da Operação Lava Jato — os antigos executivos da empresa foram, inclusive, condenados à prisão.

Foi aí que surgiu o problema — ou pelo menos é essa a justificativa apresentada: o grupo esperava financiamento do BNDES para cumprir o contrato, mas o banco suspendeu todos os financiamentos às empresas envolvidas na Lava Jato. Sem os R$ 700 milhões solicitados pela Galvão, dois anos se passaram e nada de obras. Só a expectativa.

Em Porangatu, por exemplo, cidade pela qual passa a BR-153 e que teria seu trecho duplicado, muitas pessoas, pensando em lucrar com as obras, investiram em negócios, como a compra de maquinários para aluguel ou mesmo para fornecimento de alimento aos trabalhadores contratados. As obras não começaram e ficou o prejuízo.

O deputado estadual e ex-prefeito de Porangatu, Júlio da Retífica (PSDB), relata que o fluxo da BR-153 que corta a cidade é “muito pesado. O número de caminhões é muito grande e tem causado inúmeros acidentes com vítimas graves, pois os caminhões formam praticamente um comboio, tornando impossível a ultrapassagem”.

Além desse papel de poupar vidas, segundo ele, as obras teriam também a função de gerar emprego e renda na região e “baratear tanto o preço da carga quanto dos seguros, visto que, devido ao grande número de acidentes, o seguro é muito caro, o que atrapalha muita coisa”, explica o deputado, que diz ter medo de rodar pela rodovia, o que faz todas as semanas, visto que mora em Porangatu.

Em razão do atraso, a Galvão recebeu quase 30 autuações pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) por descumprimento de contrato e estava sob risco de perder a concessão, uma situação que não é exclusiva da Galvão, mas de quase todas as concessionárias que venceram os leilões de trechos das rodovias federais.

O assunto não é novo na Câ­mara Federal. Em audiência pública proposta pelo deputado goiano Marcos Abrão (PPS), em julho do ano passado, já se discutia uma solução para o problema e a Galvão já havia apresentado um plano para não perder a concessão. À época, o deputado disse: “Estive no município de Mara Rosa [Goiás] e presenciei a dor de um pai que havia perdido um filho em acidente na BR-153. Infe­liz­mente, a perda de milhares de vidas é a pior consequência da falta de manutenção e cuidado com as rodovias em nosso País. Temos a responsabilidade de levar esse assunto [a duplicação] adiante, e cobrar das autoridades as soluções em caráter emergencial”.

Júlio da Retífica: “Solução para o problema é emergencial” | Foto: Alego / Ruber Couto

A proposta apresentada pela Galvão consiste em uma parceria com um fundo estrangeiro formado por vários investidores, que iriam assumir a responsabilidade financeira pela obra. Além disso, o grupo pediu que os cinco anos mínimos para a conclusão da duplicação fossem recontados, isto é, que os dois anos que já passaram fossem desconsiderados, visto que seria impossível realizar a obra em apenas três.

O pedido seria aceito pelo governo federal, uma vez que o Departamento Nacional de Infraes­trutura de Transportes (DNIT) já informou que não tem recursos para cuidar da rodovia — basta ver o abandono da BR-153 nas proximidades de Pi­renópolis para verificar isso. Porém, o pedido esbarrou no Tribunal de Contas da União (TCU).

O ministro relator dos processos de infraestrutura do TCU, Bruno Dantas, está com o processo desde então e as partes tentam um acordo, tanto em relação ao prazo do contrato quanto à inclusão do fundo estrangeiro na operação, como principal investidor na obra.

Assim, o governo de Goiás en­trou nos debates para tentar ajudar a resolver o imbróglio, visto que tem interesse na conclusão da obra — que irá beneficiar e muito não apenas os goianos, mas todo o País. As conversas começaram entre o go­ver­nador Marconi Perillo e o ministro da Casa Civil, Eliseu Pa­dilha. Uma reunião entre os dois, o diretor da ANTT, Jorge Bastos, e os executivos que assumiram a Galvão para tentar chegar num acordo.
Desde então, as conversas têm sido feitas entre o secretário de Meio Ambiente, Recursos Hídricos, Cidades, Infraestrutura e Assuntos Metropolitanos de Goiás, Vilmar Rocha; o diretor da ANTT, Mário Rodrigues, que é relator do processo na A­gência; e o secretário Fomento para Ações de Transportes do Mi­nistério dos Transportes, Dino An­tu­nes. O objetivo é chegar a um ter­mo que possa ser aceito pelo TCU.

Vilmar Rocha explica que o interesse no acordo é devido à urgência que o País e Goiás têm na conclusão da duplicação, principalmente para salvar milhares de vidas, mas também para otimizar o escoamento da produção goiana e poupar as rodovias estaduais que são usadas pelos caminhoneiros que tentam a todo custo fugir das más condições da BR-153 — a GO-080 é a principal “vítima”, pois está em boas condições e é duplicada.

“É do interesse de todos que a Galvão continue as obras, pois, se for declarada a caducidade da concessão, a rodovia voltará para o governo federal, que não tem dinheiro para dar manutenção e não irá fazer a duplicação, mas publicará novo edital de concessão para que outra empresa interessada assuma. E isso não irá demorar menos de cinco anos. Nós não podemos esperar mais”, relata o secretário goiano.

E o assunto pode ser resolvido em breve. Vilmar, que esteve em Brasília na semana passada para tratar de vários assuntos do governo estadual, informa que cobrou agilidade no processo e que a reunião com o ministro do TCU deve acontecer logo depois do carnaval. Se o acordo for aceito, as obras devem começar de imediato.

Uma fonte do governo federal informou que, embora a reunião ainda não tenha ocorrido, as discussões estão avançadas e que tudo se encaminha para que haja a retomada das obras. O grande problema, na visão do ministro do TCU Bruno Dan­tas, seria o pedido da Galvão de “zerar” o prazo para entrega da duplicação de cinco anos, mantendo os 30 de concessão. As­sim, uma solução seria passar a con­cessão para 28 anos e não 30.

Isto é, ficariam cancelados os dois anos que já passaram para que a empresa não fique inadimplente e o fundo estrangeiro a ser parceiro da Galvão no empreendimento já aplicaria 250 milhões de euros na rodovia a partir de maio para finalizar a primeira etapa da duplicação, visto que a empresa só poderá cobrar pedágio após a conclusão dos trabalhos iniciais no sistema rodoviário e a execução de 10% das obras de duplicação. l