Escrito no século 19, “O Segredo do Bonzo” é um achado irônico e sagaz sobre como o charlatanismo se multiplica – e se justifica

Valdemiro Santiago, o criador da Igreja Mundial do Poder de Deus, que chegou a pedir em carta para fiéis darem testemunhos falsos “para o bem” da instituição

Elder Dias

Sobrevivente de um esfaqueamento em pleno culto na semana passada, Val­demiro Santiago não é nenhuma excelência intelectual. Conseguiu estudar até o 5º ano do ensino fundamental. Apesar de ter chegado à cúpula da Igreja Universal do Reino de Deus, a maior instituição neopentecostal do Brasil, nunca fez qualquer curso de teologia. Mesmo com essa falta de atributos em tese essenciais para um líder de uma entidade religiosa, após se desentender com Edir Macedo, fundador da Universal, em 1998 ele criou sua própria denominação: a Igreja Mundial do Poder de Deus (IMPD). E assim nasceu um fenômeno.

Desde que criou sua igreja, em menos de 20 anos Valdemiro acumulou uma fortuna considerável – calculada, por valores de quatro anos atrás, em US$ 220 milhões (ou R$ 700 milhões), segundo a revista “Forbes”. Uma parte substancial de sua riqueza foi construída após se tornar um “televangelista”, termo por qual se designa o pastor que prega em rede de televisão, algo protagonizado inicialmente nos Estados Unidos por nomes como Jimmy Swaggart e Jim Bakker, nos anos 80. A mesma exposição na TV fez fama e fortuna de seu ex-líder Edir Macedo, assim como de Silas Malafaia (Assembleia de Deus Vitória em Cristo), R. R. Soares (Igreja Internacional da Graça de Deus) e do casal Estevam e Sonia Hernandes (Renascer).

Se passou longe de ter um currículo na plataforma Lattes, o mesmo não pode se dizer da ficha corrida na polícia: Valdemiro Santiago já foi preso por porte ilegal de armas (uma escopeta, duas carabinas e munição), em 2003; foi acusado de desviar os dízimos e as ofertas da igreja, em 2012; foi flagrado pedindo a fiéis, por meio de cartas, que fingissem doenças e curas a pretexto de pagar dívidas e a fim de aumentar sua arrecadação e comprar uma emissora de televisão, em 2013 – quando também sofreu com processos por inadimplência no pagamento de aluguel de seus templos; foi também alvo de ação na Justiça pela Rede Bandeirantes por não pagar pelo horário utilizado, em 2014. Têm mais coisas, mas o texto não é exatamente para uma compilação de denúncias e delitos.

É bem verdade também que nem sempre líderes religiosos miram dinheiro e riqueza como objetivos principais, embora a teologia da prosperidade, pregada por todos os citados dois parágrafos acima, seja, sim, o que realmente mova essa turma e seus seguidores. Mas o encantamento das multidões – a ponto de que os fiéis deixem de se atentar a questões básicas e elementares e sejam induzidos a absurdos, tal a intensidade de alcance da fé cega –, não é privilégio de evangélicos pentecostais e neopentecostais. Ainda que não priorizando o viés da riqueza, sacerdotes católicos também têm apostado em espécies de proselitismos como forma de se destacar. No âmbito das bandeiras políticas, o padre Paulo Ricardo, de Várzea Grande (MT), também apresentador de TV, foi um dos nomes de proa na luta pelo impeachment de Dilma Rousseff (PT) e contra o “comunismo petista”, ao lado de figuras heterogêneas como Lobão, Olavo de Carvalho, Danilo Gentili e Alexandre Frota. Vaidade, tudo é vaidade, já dizia o Eclesiastes – nome de um dos principais livros chamados sapienciais do Antigo Testamento.

O que buscam esses pastores e seus rebanhos parece algo muito semelhante ao apresentado em um brilhante conto do igualmente brilhante Machado de Assis, no século 19. Em “O Segredo do Bonzo” – publicado primeiramente em um jornal carioca (“Gazeta de Notícias”) e depois no livro “Papéis Avulsos” –, o autor dá voz a um imaginário relato “inédito” de Fernão Mendes Pinto (1509-1583), um explorador português do século 16 que realmente narrou fatos considerados extraordinários de suas expedições, descritos em sua obra “Peregrinação” – tão extraordinários que ganhou ele o codinome de “Fernando Mentes? Minto!” entre os próprios lusitanos.

Por meio desse eu-lírico emprestado, Machado de Assis trata em “O Segredo do Bonzo”, com sua singular ironia, de um tema recorrente em sua escrita: a manipulação e a alienação do ser humano. No caso específico do conto, uma sátira mordaz à maneira como as massas são enredadas por quem se investe do papel de orador eficiente, ainda que medíocre.

Em Fuchéu, capital do reino de Bungo, em algum lugar do Extremo Oriente, onde se passa a história, há um frenesi em torno de alguns sujeitos que descobriram “verdades” gloriosas. O aventureiro Fernão, com seu amigo Diogo Meireles, encontra dois deles pelo caminho: Patimau (que garante ter provas de que os grilos se originariam do ar e das folhas) e Languru (que jura ter encontrado numa gota de sangue de vaca o princípio da vida futura). Ambos se mostram tão seguros de suas descobertas que convencem imediatamente os curiosos populares que os cercam, a ponto de serem por eles carregados nos braços com seu nome gritado pelas ruas. Fazem o que fazem “pela glória do reino de Bungo”, motivo pelo qual dariam a própria vida – assim garantem os ovacionados.

Depois de observar os feitos de Patimau e Languru, a dupla de forasteiros encontra Titané, um comerciante de alparcas (sandálias), que lhes diz que o fenômeno devia ter a ver com os ensinamentos de um certo bonzo da região – uma espécie de sacerdote ou místico budista. Em tempo, antes de prosseguir, um adendo essencial: o outro sentido de “bonzo” na língua portuguesa, que Machado conhecia como ninguém, tem a ver com indivíduo “hipócrita” ou “dissimulado”.

Acessível, o bonzo explica a eles como o saber e a virtude podem se desperdiçar se não forem devidamente “trabalhados”. A tese central do suposto guru é bastante pragmática: “Entendi que, se uma coisa pode existir na opinião, sem existir na realidade, e existir na realidade, sem existir na opinião, a conclusão é que das duas existências paralelas a única necessária é a da opinião, não a da realidade, que é apenas conveniente”.

Não tem como não remeter ao episódio em que Valdemiro pede, por meio de cartas endereçadas a seus fiéis, um favor bem inusitado. Eis o texto na íntegra (com várias vírgulas erráticas):

“Igreja Mundial do Poder de Deus – Av. João Dias, 1501 – Santo Amaro, S. Paulo. A paz do Senhor esteja em sua vida. Eu, profeta Valdemiro Santiago, venho por meio dessa, convidar a você (sic), para um projeto de expansão da nossa igreja. Estamos precisando de pessoas que possam viajar, para dar o seu testemunho de consagração e vitória. Estaremos pagando uma ajuda de custo.

Procuramos pessoas para se passarem por enfermos curados, ex drogados (sic) e aleijados. Esperamos contar com a sua colaboração e descrição. Precisamos muito da sua ajuda para conseguir convencer mais pessoas a contribuírem financeiramente, para aquisição do canal 32. Por favor, se não puder ou não quiser contribuir, que destrua essa carta e não comente com ninguém. Esse é um pedido feito diretamente pelo apóstolo Valdemiro Santiago, a todos os seus fiéis. Precisamos aumentar a nossa arrecadação. Esta é a maneira mais eficiente de conseguir convencer as pessoas, que realizamos milagres. Com isso certamente irão contribuir financeiramente com a nossa igreja.”

Em “O Segredo do Bonzo”, Machado de Assis usa de ironia e sagacidade para satirizar os charlatães e suas vítimas: um conto ainda muito atual

Por fim, duas recomendações: “Essa carta é extremamente sigilosa, contamos com sua compreensão”; e “Estamos confiando em sua colaboração com nossa igreja, é para um bem maior”.

Valdemiro quer que os fiéis deem seu “testemunho de consagração e vitória”, ainda que falso (“procuramos pessoas para se passarem por enfermos curados, ex-drogados e aleijados”), para multiplicarem o convencimento de pessoas a fim de que as contribuições aumentem e, então, a Igreja Mundial tenha condições de adquirir o “canal 32” – antes pertencente à MTV. A compra era necessária para que Valdemiro continuasse a ter espaço para seu televangelismo, já que o perdera na Band e na Rede 21 (ambas do grupo Bandeirantes, sendo a última voltada quase que exclusivamente à programação religiosa).

No conto machadiano, o nome do bonzo (Pomada) é mais outra pista do terreno por onde, mimetizando o texto de Fernão Mendes Pinto, vai se imiscuindo cada vez mais a ironia do autor. Ele próprio avisa, em nota: “Pomada e pomadista são locuções familiares da nossa terra: é o nome local do charlatão e do charlatanismo”. Ora, se um pastor pede a seus próprios fiéis, pelo bem da igreja (os fins), que mintam e finjam (os meios), o que fazem os fiéis ao continuar a seguir tal pastor a não ser se tornarem os Patimaus e os Langurus de um certo Pomada?

A resposta talvez esteja na fala de outro pastor midiático, Silas Malafaia. Em uma pregação a respeito de desconfianças sobre líderes religiosos, ele avisa, enfático: “Quem calunia pastor e fala da igreja não pode ser crente. Vou dar um conselho para você: fica longe de participar de divisão, de calúnia e difamação de pastor. Fica longe disso! Quer arrumar problema para sua vida, entra nisso! […] Teu pastor é ladrão? Teu pastor é pilantra? Você não tá gostando? Sai de lá e vai para outra igreja. Não se mete nisso não, porque não é da tua conta!”

O pastor está acima de qualquer julgamento. E foi esse “segredo” que, no conto, o bonzo Pomada ensinou a Patimau, a Languru e também, a Fernão Mendes Pinto e seus amigos: o que a “coisa” precisa é existir na opinião, mesmo que não exista na realidade. Então, se os fiéis forem convencidos pelos testemunhos falsos, isso é o suficiente para o sucesso da missão. O que fazem, então, nada mais é do que para a glória de um projeto maior.

Tanto “O Segredo do Bonzo” como outros contos de Machado de Assis mais conhecidos – “A Teoria do Medalhão” é ótima referência –, além de tantas outras obras literárias e cinematográficas mostram a raiz do problema que (des)envolve o charlatanismo: o ser humano tem uma necessidade praticamente biológica de crer em algo. É dessa forma que Diogo Meireles, o colega de Fernão, mais vivido nos costumes de Fuchéu, a cidade dos gurus, consegue, em seu experimento para testar a doutrina do bonzo, “desnarigar” todos os doentes de um mal que deformava o nariz: inventa uma teoria e, com muita convicção, a expõe. Qual teoria? A de que todos continuariam a ter seus narizes, apenas sendo substituídos narizes visíveis por outros, metafísicos. E conclui-se o conto: “Nenhuma outra prova quero da eficácia da doutrina e do fruto dessa experiência, senão o fato de que todos os desnarigados de Diogo Meireles continuaram a prover-se dos mesmos lenços de assoar. O que tudo deixo relatado para glória do bonzo e benefício do mundo.”