Era uma questão de rápida leitura técnica e política. O Planalto não soube (ou não quis) transformar o desastre em algo positivo para uma virada na gestão

Ao lado do governador mineiro Fernando Pimentel, Dilma observa o desastre da Bacia do Rio Doce: sem tocar o pé na lama | Roberto Stuckert Filho/PR
Ao lado do governador mineiro Fernando Pimentel, Dilma observa o desastre da Bacia do Rio Doce: sem tocar o pé na lama | Roberto Stuckert Filho/PR

Elder Dias

Os grandes líderes são conhecidos e reconhecidos nas provas de fogo, especialmente em tempos de crise. Isso vale para a guerra, para a religião, para o esporte e, claro, para a política. É nesse sentido que, no atual momento e buscando aqui uma posição descolada de ideologizações, pode-se afirmar que a presidente Dilma Rousseff atestou, definitivamente, que não serve para conduzir os destinos de um País.

E isso não tem nada a ver diretamente com a questão econômica em si, em que a cada semana os índices mostram a trajetória do fundo do poço sem que haja qualquer avanço ou reação por parte do Planalto. Também não se refere aos atropelos que seus aliados vêm sofrendo — embora não só eles, vide Eduardo Cunha (PMDB-RJ) — com a Operação Lava Jato e suas prisões midiáticas, que tumultuam o que restaria de serenidade em Brasília para firmar passos no rumo de um ajuste ou pacto para sair da queda em parafuso.

Dilma poderia ter pautado a discussão nacional ou até mesmo inaugurado um novo parâmetro para a sua e as próximas gestões se tivesse verdadeiramente se preocupado com o desastre ambiental da Bacia do Rio Doce – afinal, começa nesta segunda-feira, 30, em Paris, a COP 21, a cúpula que vai decidir literalmente o futuro do planeta. Não se sabe se a presidente é cética ou mística – embora ela já tenha se declarado católica, em 2010 –, mas, sob qualquer um dos dois aspectos, os sinais do rumo o qual deveria seguir para sobreviver se mostraram de forma clara e bruta na enxurrada gigante de lama e tristeza que desceu pela barragem estourada de rejeitos de minérios de ferro da Vale/Samarco.

Na tsunami que devastou pessoas, rios e mar, parecia que Deus (ou o acaso, um referencial que fica ao gosto de cada um) lhe gritava “Dilma, chegou a sua hora!”. Os ouvidos da petista – nascida em Belo Horizonte, a capital do Estado mais afetado pelo crime ambiental – não processaram a mensagem. Somente no dia 12 de novembro, uma semana depois de tudo, a chefe do governo brasileiro se apresentou ao local do desastre. Mas não pôs o pé na lama: pelo contrário, sobrevoou a área de helicóptero, acompanhada pelo governador mineiro e colega de partido, Fernando Pimentel.

Dizem que alguns assessores chegaram a orientá-la a seguir imediatamente para Mariana, assim que tomaram notícia da “tragédia”. Ela teria se recusado, apoiada por outros auxiliares que consideraram, quase que em ato de superstição, que o peso da catástrofe poderia contagiar Dilma. Como se a ida à cidade afetada pudesse conseguir piorar sua popularidade.

Se houve mesmo essa avaliação, foi um cálculo de infelicidade grave e rara. Exemplos passados de governantes que lidaram com catástrofes de diversas origens existem aos montes. A reação negativa aos que tiveram atitude é rara, exatamente o contrário do que se viu com quem se comportou de modo passivo.

Tomemos um trecho de um artigo do portal BBC Brasil, de agosto de 2006, sobre comportamentos díspares do então presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, em episódios extremos:

“Imagens são duradouras. Existe o Bush resoluto e churchilliano, de megafone na mão, nos destroços do World Trade Center, dias após os atentados de 11 de setembro. Era o líder de um país em guerra, ali na trincheira. E existe a imagem do Bush a bordo do Air Force One sobrevoando a zona de destruição da região do golfo do México após a passagem do (furacão) Katrina. Era o imperador distante, acusado de incompetente e de insensível à agonia de seus súditos pobres e negros.”

Sim, imagens são duradouras e fortes, sejam elas positivas ou negativas. Era uma questão de rápida leitura técnica e política. A técnica: o caso de Mariana é um problema gravíssimo a que é vital dar a atenção devida, apresentar um governo proativo e colocar todos os recursos emergenciais, profissionais e financeiros de que se dispõe para a gestão da crise e a mitigação dos danos. A política: não há nada a perder — e talvez haja algo a ganhar — em termos de popularidade, se a presidente se apresentar na cena do desastre e se continuar a se mostrar diretamente envolvida com o drama dos moradores atingidos.

Obviamente, fosse essa a reação do Planalto à “tragédia”, os contrários ao governo já teriam o discurso pronto: populistas, demagogos, aproveitadores da desgraça alheia, “urubus” na carniça, desviadores de foco, seriam algumas das expressões que povoariam as bocas e textos dos opositores. Mas, se há algo certo na vida política é que não se deve esperar elogios da oposição. E se há algo certo em qualquer aspecto da vida é que, se for para pecar, que se peque por excesso e não por falta, por atos e não por omissão.

Omissão é a palavra. Até por toda a conjuntura que vive desde o período eleitoral do ano passado — com o País dividido em duas metades rivais, como se o Brasil fosse um imenso Maracanã e sua população binária, os torcedores de um Fla-Flu —, seria necessário um fato importante para poder unir os brasileiros em torno de uma causa. Era Mariana. Quando decidiu se recolher a seu palácio, ignorando a mais grave ocorrência ambiental da história da América do Sul, Dilma reforçou o estigma de inepta que carrega.

Dessa forma, é inegável que, em abrangência nacional, o grau de importância (ou, no caso, de desimportância) que o desastre de Mariana alcançou foi determinado, em grande parte, pela forma com que a Presidência da República tratou a questão. Imagine se, no máximo ao fim do dia seguinte ao ocorrido — já sabendo da amplitude real que o caso tomaria e seria bem antes do que as TVs mostraram nos dias seguintes —, Dilma incorporasse o Bush de 2001.

Convocaria uma cadeia nacional de rádio e TV para deixar a Nação a par do assunto, de forma aberta e relevante. Ato contínuo, tomaria o rumo das Minas Gerais e desceria na região afetada no mesmo helicóptero que a levaria só para um sobrevoo tardio. Mas, no cenário agora invocado, ela pisaria o pé na terra daquele povo desolado e sujaria seus sapatos presidenciais na lama que devastou tanta vida. A partir daí, daria sequência a um plano emergencial acompanhado de perto por ela própria, com alguém do primeiro escalão transferido para lá até segunda ordem, para cuidar das questões práticas e políticas.

Nada disso foi feito e Dilma passou em branco. Existia um risco de isso tudo não sair exatamente de forma a beneficiá-la politicamente? Sim, existia. Assim como existia a plena certeza de que não fazer nada seria algo negativo. O fato é que nunca se saberá como seria o tratamento da mídia e a reação da opinião pública ao caso se a ação do governo federal fosse imediata, incisiva e transparente.

Agora, quase um mês depois do negligente derramamento de lama em toda uma bacia hidrográfica, ficaram as medidas burocrático-judiciais. Os governos federal e dos Estados de Minas Gerais e do Espírito Santo anunciaram, semana passada, uma ação judicial de R$ 20 bilhões contra as empresas Samarco, Vale e BHP Billinton. Mas o “timing” não existe mais. E não há, de fato, um envolvimento pessoal da presidente, o que seria essencial, em um sistema de governo como o brasileiro, para pôr a questão no centro das atenções, como ela merece desde o começo.

Por outro lado, é curioso e inquietante notar o silêncio geral da oposição. Se até poderiam atacar uma eventual ação de Dilma, deveriam ter atacado sua inação no caso. Mais do que isso: a falta de fiscalização por parte do governo federal – via Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) – pode ser questionada como crime de responsabilidade o que viabilizaria um pedido de impeachment muito mais embasado do que as dezenas de artifícios que foram rascunhados e rejeitados até o momento. Quanto custa o silêncio da oposição?

Na verdade, Dilma Rousseff inicia a semana da COP 21 com muitos passivos ambientais para levar a Paris. Seu governo nomeou uma integrante da bancada ruralista, Kátia Abreu (PMDB-TO), como ministra da Agricultura e outro ministro, o da Defesa, Aldo Rebelo (PCdoB-SP), foi o relator de um Código Florestal bastante contestado; também não acelerou o
desenvolvimento de fontes alternativas de energia; ao contrário, optou por construir a usina hidrelétrica de Belo Monte, um monstro no meio da Amazônia que desterrou ribeirinhos; não resolveu a contenda da demarcação das terras indígenas; acenou com a transposição do Rio São Francisco como uma vitória do progresso, enquanto o Velho Chico e seus afluentes agonizam já em suas nascentes — em outras palavras, está fazendo transfusão a partir de um anêmico. Por fim, em um episódio à parte, em troca de reduzir aos olhos globais o desmatamento na Amazônia, entregou o Cerrado de bandeja ao agronegócio.

É claro que Dilma não foi a primeira nem a única. Lula, Fernando Henrique Cardoso e todos os antecessores colaboraram para o quadro grave que há hoje na questão ambiental brasileira. Mas, justamente por isso, em um eventual livro de memórias à la FHC, quando estiver bem longe o poder, a então ex-presidente poderá lamentar o caso Mariana como o momento em que poderia ter feito um giro de 180 graus em sua gestão, mas não teve nem a coragem nem a sensibilidade necessárias. Talvez, nos mesmos escritos, confesse neste ou noutro capítulo que não tinha aptidão para ser a líder que o Brasil precisava.