Foram quase três meses separados e então aquele era um momento de muita festa pelo homem que voltava a sua cidade e seu lar. Em meio aos gritos de euforia e abraços de centenas de pessoas que vestiram sua melhor roupa para recepcioná-lo, caixas de foguetes explodiam para a celebração e tudo isso deixava quase inaudível a canção que embalava o momento:

Há um tempo / pra todas as coisas / debaixo do céu / eu creio! / Nova história / novo começo / um novo tempo / eu creio! / Nem olhos viram / nem ouvidos ouviram / um novo tempo / eu creio!

À melodia e letra de Uma Nova História, do grupo Family Worship, se seguiu a de outra música gospel, A Vitória Chegou (“disseram para você que tudo acabou / que a prova te venceu e Deus te abandonou / Promessa não tem prazo de validade / mensagem negativa não vem do Senhor”), na voz de Aurelina Dourado. Um fundo sonoro com mensagens de esperança para coroar o retorno.

Naçoitan publica, em suas redes sociais, momento de sua chegada em casa após 3 meses de prisão | Foto: Instagram

Poderia até ser uma cena idílica – e até era, mesmo, para os que ali se apresentavam. Mas tratava-se da recepção de boas-vindas ao prefeito de Iporá, Naçoitan Leite, depois de quase três meses de cadeia por invadir a casa da ex-mulher arrebentando o portão com sua caminhonete e dar 15 tiros contra o quatro em que estavam ela e seu namorado. Na sexta-feira, 16, o advogado Thales Jayme anunciou a soltura de seu cliente.

Naçoitan já era conhecido por outras “polêmicas”. Como a que o deixou sem partido, desde que o União Brasil resolveu afastá-lo após um áudio, em 2022, em que falava da necessidade de “eliminar” o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes.

O vídeo com as festividades em Iporá pela “volta” do prefeito chocou as redes sociais. Os comentários, porém, não mudam em nada o comportamento na cidade, em que o político goza de muita popularidade.

Seria o choque entre dois mundos? Seria Iporá uma cidade “atrasada” e as redes sociais teriam reagido de tal forma por ser lugar de gente “avançada” e ciosa do que são os direitos humanos e a necessidade de justiça?

Na verdade, o conjunto de tudo faz parte de um processo sócio-histórico-cultural muito peculiar do Brasil: a indignação dos comentários nas redes sociais diz respeito ao modo com que algumas pessoas são “perdoadas” por seus “erros” com benevolência e a atitude da multidão à espera de um prefeito que responde por tentativa de duplo homicídio, invasão de propriedade e porte ilegal de arma é algo que acontece da mesma forma em situações similares. É que Naçoitan Leite não é um brasileiro comum.

A questão se baseia na forma com que a história brasileira se conduziu durante os séculos e foi estudada por intelectuais diversos que fizeram obras-primas do que se chama hoje “literatura de não ficção” nacional: entre elas, Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre; Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Júnior; Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda; Os Donos do Poder, de Raymundo Faoro, todos lançados entre as décadas de 30 e 50 do século passado (acrescentaria aqui também O Negro no Futebol Brasileiro, de Mário Filho, para entender a mesma temática pelo viés do esporte nacional).

Em todas as obras, uma coisa em comum: a existência de uma elite atípica, que não parece entender muito além de suas questões comezinhas e que se mostra incapaz de superar um passado nada honroso. E aqui é preciso falar de outro livro, este contemporâneo, que traz já no título o resumo do que trata: A Elite do Atraso, de Jessé de Souza, que traz à tona o mesmo problema que perpassa, mais aparente ou mais como pano de fundo, toda a escrita de seus antecessores: a chaga nunca fechada da escravidão.

Escreveu o historiador abolicionista Joaquim Nabuco, em seu livro de memórias, Minha Formação: “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”. O livro foi publicado em 1900, ou seja, 12 anos após a princesa Isabel assinar a Lei Áurea.

A elite sabe reconhecer a elite e quem a ela não pertence. Não é apenas uma questão de dinheiro, mas também – infelizmente – não tem nada a ver com cultura: é uma relação de poder e compadrio, que atravessa os séculos e faz com que, diante de toda a aparente miscigenação e diversidade do povo brasileiro, sobreviva bem saudavelmente um terrível e não declarado sistema de castas.

É o que outro livro, O Povo Brasileiro, de Darcy Ribeiro, apresenta, em uma divisão empírica das classes não em níveis de renda, mas apenas na observação que o autor faz da sociedade. Darcy divide o Brasil em três classes, cada qual com suas subdivisões: dominantes, intermediárias e oprimidas.

Em pesquisa divulgada no fim de 2022, a elite nacional teve o 6º pior valor entre 32 países do mundo, atrás de países que os próprios brasileiros consideram mais “atrasados”, como México, Índia e Arábia Saudita. O relatório foi feito pelos economistas Tomas Casas e Guido Cozzi, que criaram o Índice de Qualidade das Elites.

O conceito de elite para os autores é o de um “grupo pequeno e coordenado, capaz de acumular riqueza”. Esses grupos, segundo eles, seriam uma “inevitabilidade empírica”, presentes em todas as sociedades. No índice que criaram, um número alto significaria que a elite do país cria mais valor do que captura, contribuindo para o crescimento econômico e o desenvolvimento humano da nação; o oposto – o dos índices baixos, no qual o Brasil se encontra – designaria elites “extrativas”, que capturam mais do que criam valor. Em palavras mais simples, o índice mais alto define uma elite que mais beneficia a sociedade do que dela se beneficia, e o mais baixo, o contrário.

Não é à toa que geralmente os países com uma elite mais atrasada são também os que têm maior concentração de renda. Em suma, o topo da pirâmide brasileira concentra seus esforços e recursos em ter e manter favores e privilégios, em vez de produzir. Quer acumular em vez de investir na produção. Casas e Cozzi acabam por dividir as elites em três tipos principais: rentistas (que extraem valor e têm muito poder); competitivas (que geram valor, mas não têm muito poder); e iluministas (geram valor e têm muito poder).

Se o Brasil disputado um campeonato de qualidade das elites, estaria na última divisão

Segundo o estudo, de forma nada surpreendente, a elite brasileira é do grupo das rentistas. E as piores classificações que valem para o indicador estão na forma com que o Estado retira renda (distorções no sistema tributário que beneficiam os mais ricos); no rentismo da produção (protecionismo para os grandes empresários levando à formação de monopólios ou oligopólios); e no rentismo do trabalho (forma de lidar com o emprego).

Em suma, se o Brasil disputado um campeonato de qualidade das elites, estaria na última divisão. Tudo porque as elites, por aqui, trabalham pelos seus e não pelo desenvolvimento do País. É o que se vê quando abraçam um prefeito processado por tentativa de duplo homicídio (um dos casos qualificado, na verdade, como tentativa de feminicídio), em vez de ter uma atitude de, no mínimo, admoestação.

A elite brasileira quer ser servida sempre e não quer servir quase nunca. Uma foto emblemática das manifestações “Fora Dilma” de 2015 e 2016 mostra um casal indo para um dos atos, no Rio de Janeiro, tendo a babá, de uniforme, conduzindo o carrinho com os bebês do casal. Num domingo. O tipo de coisa que não se aceita em outras elites, mas aqui é visto como uma especial ostentação. No fim de tudo, somos aquele País em que se confunde “gente de bem” com “gente de bens”.