Todas as autoridades médicas são unânimes: a doença-irmã da dengue — menos mortal, mas causadora de terríveis dores nas articulações —, chegou para valer.
Vai derrubar pessoas, piorar o setor da saúde e prejudicar a economia. E o País não se preparou

Na chikungunya, o Aedes albopictus (esquerda), da zona rural, ajuda o Aedes aegypti (direita) a espalhar a doença
Na chikungunya, o Aedes albopictus (esquerda), da zona rural, ajuda o Aedes aegypti (direita) a espalhar a doença

Ela pode não ser a mais letal — e não é — das doenças transmissíveis por mosquitos, mas faz um bom estrago nas pessoas e será um fator a mais a pesar sobre o crítico setor da saúde no Brasil. Mais do que isso, tem tudo para influir negativamente até na economia do País. A febre chikungunya — ou simplesmente chikungunya —está chegando nesta temporada ao Brasil e é transmitida pelo mesmo mosquito da dengue, o Aedes aegypti.

Maus ventos a trazem, e vêm do Norte: a doença, com origem na África, teve seu primeiro caso nas Américas na parte francesa da ilha de Saint-Martin, Mar do Caribe, no final de 2013. Desde então, se alastrou por praticamente toda a região caribenha, todos os países da América Central e do norte da América do Sul, chegando também ao sul do Estado norte-americano da Flórida. Somando todo o continente, a epidemia já está alcançando seu primeiro milhão de vítimas: até a semana passada, eram 931 mil doentes, mais da metade deles apenas na República Dominicana.

Populações de Colômbia e Ve­nezuela vivem e descrevem as agruras da doença, relatos que podem servir aos brasileiros como uma indesejada “avant-première” do que se passará por aqui (veja matéria correlata). No contexto noticioso mundial, o surto de chikungunya nas Américas é abafado por outro, o do ebola.

O diário inglês “The Guardian” faz a observação crítica sobre a diferença de tratamento dada às doenças: há uma epidemia negligenciada no lado oeste do mapa-múndi. “O vírus se espalha rapidamente pelo continente americano, causando forte pressão sobre os serviços de saúde em alguns dos mais pobres países do hemisfério ocidental”, diz o texto, intitulado “Chikun­gunya: Ebola pushes South American epidemic out of the spotlight” [“Chikungunya: o Ebola tira dos holofotes a epidemia sul-americana”].

Meses atrás, antes mesmo de o ebola atiçar o instinto mórbido da mídia nacional — provocada muito mais pelo surgimento de um par de casos da doença nos Estados Unidos do que pelos milhares de mortos na África — a buscar, sem sucesso, algum rastro dessa epidemia, o CHIKV, como foi batizado o vírus da chikungunya, entrava silenciosamente no Brasil.

O primeiro caso confirmado da doença foi registrado em 31 de julho, no Amapá. A vítima foi um garoto francês de 13 anos que tinha desembarcado de Guadalupe, uma possessão francesa no Caribe, para passar férias na capital, Macapá. Desde então, a doença se alastrou por outros municípios amapaenses e também de outros Estados.

O último boletim epidemiológico do Ministério da Saúde sobre os casos da doença no Brasil foi divulgado em 2 de dezembro. Até então, oficializavam o registro de 1.364 casos de chikungunya, contabilizados até o dia 15 de novembro. Desses, 125 foram confirmados em laboratório e os demais pelo que se chama de critério clínico-epidemiológico — que diz respeito aos sintomas em geral e avaliação do paciente feitas pelos médicos.

O documento relata também que, do total, 71 casos são de pessoas que viajaram para República Dominicana, Haiti, Venezuela, Guiana Francesa e ilhas caribenhas, localidades onde a doença já havia se alastrado. O dado mais significativo vem daí: excluídas essas ocorrências sobram quase 1,3 mil casos de forma autóctone, em pessoas que não precisaram se deslocar para ser infectadas. Só em Oiapoque (AP), extremo norte do País, foram 531 registros.

Era de se esperar que a doença chegasse pelo Norte, especialmente no Amapá, onde o Brasil faz fronteira exatamente com a Guiana Francesa. Mas o número que impressiona é o de Feira de Santana, o segundo município mais populoso da Bahia. Lá, até 15 de novembro, havia 563 casos, de acordo com o relatório do Ministério da Saúde. Entretanto, no boletim mais atualizado — divulgado também no dia 2 de dezembro, mas pela Secretaria de Saúde do município — 718 casos já tinham sido confirmados.

Em Goiás, até o fim da semana passada, não havia confirmação de nenhum caso de chikungunya de pessoas infectadas de forma autóctone. Apenas dois pacientes foram diagnosticados com a doença, após exames laboratoriais, e ambos tinham retornado de viagem.

Partes coloridas do mapa da Organização Pan-Americana da Saúde marcam onde a epidemia já está confirmada
Partes escuras do mapa da Organização Pan-Americana da Saúde marca onde a epidemia já está confirmada

Made in África

Grosso modo, a chikungunya pode ser definida como uma dengue com dores nas juntas, em português bem acessível. O nome da doença, bem exótico — e que deve em breve ser aportuguesado para algo como “chicungunha” —, a torna por certo a enfermidade de nome mais estranho entre as que mais recentemente aportaram no Brasil. “Chikungunya” é uma palavra da língua maconde, falada pelos macondes, uma tribo africana que habita parte de Moçambique e da Tanzânia, país que registrou o primeiro caso da doença, em 1952.

O significado da expressão diz muito sobre a principal característica da enfermidade: quando um maconde fala “chikungunya” ele quer dizer algo como “tornar-se dobrado”, “contorcido”. Em outro país africano, Angola, a doença é popularmente conhecida como “catolotolo”, uma palavra que vem também de uma língua nativa, o quimbundo, e significa “ficar alquebrado”.

Depois de picado pelo mosquito vetor, a pessoa tem um curto período de incubação, de dois a dez dias, até apresentar sintomas — cerca de 20% a 30% dos infectados não chegam a desenvolvê-los. Na fase aguda da doença, é bom se preparar: a febre vem repentina, com picos acima de 39 graus. Comumente há também dor de cabeça, mialgia (dores nos músculos) e erupções e manchas vermelhas na pele. Até aqui, tudo bem parecido com a dengue clássica. Só que, em meio a esses sintomas já nada agradáveis, o enfermo sente dores intensas nas articulações, principalmente dedos dos pés e das mãos, tornozelos e pulsos.

Esse é o sintoma característico da doença, e vem de maneira tão forte que acaba por impedir os movimentos. Mais sério do que isso: a febre desaparece em poucos dias, mas as dores articulares podem perdurar por meses e, principalmente em idosos, se transformar em artrites crônicas. A chikungunya, portanto, traz uma perda de saúde para a pessoa e dois tipos de perda econômica para o País: as unidades de atendimento ficarão sobrecarregadas e as empresas perderão seus trabalhadores também por longos períodos.

Só em Goiânia, doença pode deixar 120 mil afastados do trabalho

Médico Boaventura Braz: “Chikungunya é complicador para a saúde pública” | Foto: Edilson Pelikano
Médico Boaventura Braz: “Chikungunya é complicador para a saúde pública” | Foto: Edilson Pelikano

A chikungunya chegar ao Brasil não era questão de “se”, mas de “quando”. Em um mundo no qual as distâncias se tornam cada vez menores e o volume de turistas que se deslocam entre os países cresce ano a ano, independente de haver ou não crise econômica, a tendência é de que as epidemias também se globalizem. Portanto, o desafio das autoridades de saúde é ter um planejamento eficaz pronto para ser executado.

Não é o que parece ter havido por aqui, na opinião do médico infectologista Boaventura Braz de Queiroz, uma das referências da área em Goiás. “O atropelo das outras questões da saúde é tão grande, com falta de planejamento e de verbas, que faz com que a chegada da chikungunya seja encarada da mesma forma que a dengue tipo 4.” Em outras palavras, ele diz que ambas as epidemias estavam previstas há tempos, mas não tiveram medidas de prevenção para serem combatidas no País.

E o quadro será grave em Goiás, pelo que preveem as autoridades sanitárias do Estado e da capital. O prognóstico é de que haja 300 mil casos de chikungunya nos próximos meses — só em Goiânia. Parece ser um número assombroso, exagerado, inverossímil até. Afinal, em um ano de prevalência no continente americano, a soma foi menor que 1 milhão de casos, em todos os países.

De qualquer forma, se a coisa ocorrer conforme o figurino recortado pelas secretarias da Saúde do Estado e de Goiânia, pelo menos um em cada quatro goianienses sofrerá com a doença. Isso, vale ressaltar, em um prazo de meses. Boaventura Braz diz que esse alto número de casos se deve ao fato de a chikungunya ter uma taxa de ataque muito mais elevada. “Enquanto na dengue de cada cem pessoas, somente 20 ou 30 pessoas tem sintomas clínicos, no caso da chikungunya isso chega a até 90%, com um quadro para deixar todo mundo quieto em casa”, diz.

Outro fator bastante grave: do total de enfermos, pelo menos 20% vão desenvolver uma espécie de forma crônica da chikungunya, que deixará como sequela dores articulares durante meses. Conforme o número esperado pelos órgãos da saúde, seriam 60 mil goianienses de cama por até seis meses. “No total, em um ano, teríamos 240 mil pessoas acamadas por pelo menos algumas semanas”, diz o médico.

Trabalhadores ausentes

Jogando por alto, se a população economicamente ativa representa cerca de 50% do total de habitantes, 120 mil homens e mulheres em Goiânia deixariam de trabalhar. “Com certeza, um prejuízo muito maior do que o da dengue”, diz Boaventura, mas que, talvez, não tenha entrado ainda no cômputo das consequências da epidemia. “Teremos um absenteísmo [índice de falta ao trabalho] muito mais alto”, prevê.

Em um sistema público já tão criticado mesmo sem nenhuma má novidade — basta dizer que três unidades essenciais da saúde municipal foram recentemente fechadas aos fins de semana —, a chikungunya trará inevitavelmente sobrecarga aos postos de atendimento, além de riscos de confusão de diagnósticos e subvalorização dos sintomas. “O problema é que isso, no diagnóstico, pode levar a desconsiderar a dengue, mais perigosa, o que seria grave.”

Epidemia faz países vizinhos nos sinalizar algo como “somos vocês amanhã”

A chikungunya na rede: lamentações vêm de hispânicos — por enquanto
A chikungunya na rede: lamentações vêm de hispânicos — por enquanto

Digite “chikungunya” na caixa de pesquisa do Twitter e acione o comando “all” [todos]. O resultado será 90% das citações em espanhol. É que a doença está fazendo grandes estragos na população de países como República Domini­cana, El Salvador, Guatemala e agora avança mais e mais rumo norte (México e até o sul da Flórida, nos EUA) e rumo sul. Nesse sentido, o auge agora está na Colômbia e na Venezuela. O Brasil está na fila de espera.

Apertado o “enter” do Twitter, basta ler as muitas lamentações dos vizinhos hispânicos: “A chikungunya é o ebola da América!”, diz, no Twitter, o comunicólogo Einer Amessi, de Tlalpan, no México. “Dia 5 de minha chikungunya, a erupção começa às 4 da tarde e não desaparece, mas pica e se agudiza”, relata o venezuelano André, com o perfil @andre_062010.

A jornalista colombiana Ana Maria Pinedo Haddad relata especialmente o caso de San Pelayo, um município de 33 mil habitantes, do departamento de Córdoba. “Lá, há pelo menos uma pessoa doente por casa. A doença está atacando especialmente ribeirinhos, na zona rural.” Nisso, um detalhe importante: além do Aedes aegypti, outro mosquito, o Aedes albopictus, de hábitos rurais, também transmite a chikungunya. “Eu poderia lhe dizer que o caso de San Pelayo é o mais grave da Colômbia, mas não há estatísticas e o Ministério da Saúde não faz nada para ajudar nesse sentido”, critica.

Venezuelana desabafa

Ana Maria Pinedo, colombiana: “Município tem um doente por casa”
Ana Maria Pinedo, colombiana: “Município tem um doente por casa”

Há quatro dias com o vírus, a advogada venezuelana Geny Molina Ramones relatava seu drama no Twitter. “Te odeio, chikungunya!”, desabafava. Provocada a descrever o que sentia, ela disse, por e-mail: “O vírus não age da mesma maneira com ninguém, mas o sintoma comum são as dores nas articulações. Em mim, me deu muita dor nas costas, nos braços, nos joelhos e nos tornozelos. É sempre um incômodo para caminhar, para sentar e para encostar. Vem com muita febre e só se pode tomar acetaminofeno [paracetamol]”, diz, para completar com um quadro preocupante: “Em minha casa a doença começou atacando meu pai; depois minha mãe, minha irmã, eu e, agora, meu sobrinho. Se um melhora, automaticamente outro cai de cama.”

Enquanto do norte da América do Sul para cima os cidadãos adoecem e se revoltam com o vírus, a parte de baixo começa a se preocupar. Casos confirmados mais ao Sul, no Paraguai e, na última semana, em Foz do Iguaçu (PR) levam agora os argentinos a se preocuparem. “Com a chegada do verão, a Argentina se prepara para enfrentar a febre chikungunya, presente na América Latina”, diz a manchete do site Agencia Hoy.

No site do diário “El Dia”, outro título corroborava. “Já há dez casos confirmados em todo o País”. Por enquanto, de argentinos que vieram de locais infestados. Mas já se pode afirmar: da Flórida à Bacia do Prata, a chikungunya já é uma realidade dolorosa de toda a América Latina.