Goiás ainda não consegue esquecer o devastador poder do Césio 137, que tornou o Estado o epicentro de uma operação de guerra contra os efeitos da radiação

Yago Sales

Era uma guerra. Não uma guerra comum. Uma guerra não declarada, mas acirrada pela desinformação, pela curiosidade, pelo medo. Uma guerra incontornável. Guerra sem interlocutor. Sem porta-voz. O silêncio era o bunker do inimigo que estremeceria o Palácio das Esmeradas em setembro de 1987.

Mesmo que nem um tiro tenha sido disparado e o sangue não escorresse pelo chão tostado pelo calor de uma cidade neófita, a guerra ecoava pelo mundo. As agências de notícias mandavam seus repórteres, pesquisadores de vários campos do conhecimento e com todos os critérios de pesquisa perscrutaram durante e depois da batalha em Goiânia. É que nesta guerra tinha uma bomba, uma bomba muda. Uma bomba abandonada. Uma bomba de césio. Do seu bunker, silenciosa, a bomba destruía facilmente corpos e identidades. Invadia o sangue e desorientava células. Seu arsenal de guerra, a radiação ionizante, esparramava por corpos a radiodermite. Alterava o número de cargas de um átomo. Ou seja, tostava de dentro para fora. Queimava mesmo, devagar, sem alarde, célula por célula. Não era possível intermediar.

Enquanto isso, as vítimas de seu bombardeio azul ofuscante, tinham diarreias, náuseas e vômitos, dificuldade para urinar e perda do cabelo. A guerra deixaria em poucos dias quatro mortos e uma cidade sitiada pelo estigma e um Estado quase ingovernável. Quase, não fosse a firmeza, a destreza e o equilíbrio do Governador de Goiás, Henrique Santillo e de seu Secretário de Saúde, Antônio Faleiros. Antes, porém, é preciso entender o cenário. Tentar resgar os símbolos de uma batalha, antes de tudo, soturna.

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O embrião do motim de partículas de césio ocorreu quando o inimigo saltou de um aparelho de Raio-x, depois de marretadas de Wagner Motta Pereira e Roberto Santos Alves, dois rapazes desempregados de 18 e 22 anos, respectivamente. Passavam frequentemente perto do prédio desmoronado pela metade, com uma saleta feia, o que sobrara de uma estrutura antes usada para tratamento médico. Roberto chamou Wagner para ir lá em um domingo, dia 13 de setembro de 1987.

Ali, a guerra muda seria eclodida. Entre as avenidas Paranaíba e Tocantins, no Centro de Goiânia, uma briga judicial deixaria o campo minado. No local funcionava o Instituto Goiano de Radiologia (IGR), que conseguiu em 1972 o empréstimo do terreno da Sociedade São Vicente de Paulo (SSVP). Para tanto, o IGR atenderia pacientes oriundos da Santa Casa de Misericórdia de Goiânia, uma das organizações da Sociedade.

Pelo que consta, o IGR não cumpriu o acordo com a Santa Casa. E, em 1984, vendeu o local para o Instituto de Previdência e Assistência do Estado de Goiás (Ipasgo). O IGR se mudou, mas deixou parte de sua mobília no prédio, quando soube que seria despejado. E, sob a curiosidade dos dois jovens, bem no canto da sala, o inimigo: um aparelho de Raio-X. A cápsula de césio 137, prestes a ser violada, liberando a radiação que contaminaria pelo menos 1,4 mil, pesava 500 quilos.

O impasse, na Justiça, continuava. Em maio daquele ano, quatro meses antes da tragédia, o Ipasgo iniciou a demolição do imóvel, interrompida por uma liminar da Justiça. O capim invadia pelas brechas e em meio aos escombros. Ambiente curioso. A cápsula, contendo o Césio-137, ficou abandonada três anos: de 1985 a 1987. Neste ínterim, nada de a Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen) fiscalizar aquela bomba. Mas, como alega, a CNEN não teria sido notificado do desuso do aparelho.

Os dois rapazes conseguem, com dificuldades, colocar o cilindro dentro do carrinho de mão e leva-lo para a Rua 57, casa de Roberto. A outra parte, mais pesada, seria levada por Kardec Sebastião dos Santos e um rapaz conhecido apenas como Lucas para o ferro-velho de Ivo Alves Ferreira, pai da menina Leide das Neves, morta aos seis anos pelos efeitos do alto nível de radiação. Ainda naquele dia 13 de setembro, Wagner e Roberto, sentiram o impacto da força que o minúsculo pó de césio lhes causaria. Vomitaram, sentiram-se mal-estar e tiveram enjoo. Mas culpariam qualquer coisa, menos aquele objeto que lhes renderia algum trocado assim que as dores passassem quando vendessem o achado a um ferro-velho.

Os dias seguintes seriam usados como inspiração para livros, documentários e roteiros para o cinema, como o filme “Césio 137 – O Pesadelo de Goiânia”, de 1990, roteirizado e dirigido por Roberto Pires, com um elenco imponente como Nelson Xavier, Joana Fomm, Paulo Betti e Stepan Nercessian. Explodia no coração de Goiânia uma tragédia causada pelo desleixo da CNEN e, sobretudo, médicos que sabiam mais do que uma população de baixa renda atrás de alguma para arrefecer a fome.

Wagner e Roberto, uma dupla que, com seus corpos fortes, teriam de suportar o sobrepeso da culpa – não criminalmente, pois a desinformação lhes inocentaram – mesmo 30 anos depois. Não é difícil ouvir comentários do tipo “aqueles catadores de papel”, mesmo que já se tenha chegado à conclusão de que eles não eram catadores, nem trabalhavam em ferro-velho. Ambos seriam escorraçados com olhos famintos por culpa-los.

Com muito custo, destruíram com uma marreta o cabeçote da cápsula. Ali dentro, um brilho azul aparentemente inocente, depois assassino. Mas eles queriam mesmo era vender aquela coisa. E venderam-na para Devair Alves Ferreira, dono de um ferro-velho. O negócio de “Di”, como era conhecido pela família, ficava na Rua 26-A, no Setor Aeroporto. Além do chumbo, ficaria por ali, abandonado num canto do estabelecimento, aquela “marmita”, contendo o césio 137.

Devair não sabia, mas sua família inteira seria demarcada pela radiação. Cada centímetro de seus corpos contaminados a partir do apreço pelo brilho. Em uma entrevista para o documentário “Césio no sangue”, do jornalista sueco Lars Westman, contou: “Desliguei as luzes e vi um foco azul. E fiquei procurando aquele troço. Coloquei perto do cortinado, perto da televisão. No sábado comprei, como de costume, uma cerveja, liguei meu rádio. Por volta do meio-dia comi a feijoada que minha mulher fez e uma feijoada. Comecei a ter vômitos e diarreia. No dia 24 meu cabelo começou a cair. Eu mudava de cor. Olhei pro espelho e vi que estava caindo quando entrei debaixo do choveiro. E perdi o sabor na boca”.

O efeito do Césio era devastador para o organismo humano. Mesmo usado para o tratamento para o câncer em aparelhos de radioterapia, o corpo não suporta alta dosagem. Se o irradiado não morrer – como ocorreram com Maria Gabriela Ferreira, sua sobrinha Leide das Neves Ferreira, de seis anos, Israel Batista dos Santos e Admílson Alves de Souza, os dois funcionários de Devair no ferro-velho – teriam sérios problemas de saúde. Eles sofrem até hoje às privações causadas pela radiação.

O brilho azul reluzia o curioso. O nunca antes visto e, posterior, o nunca mais vivido. O nunca antes perpetrado. O acidente com o Césio é o acaso mais indefinido a que uma cidade jovial, 54 anos, estaria preparada para combater. Reconhecida como uma da cidade promissora, bela por sua Art Decó, calma, própria para se viver. O Estado crescia, com seu agronegócio em destaque nacional. Era líder na exportação de bovino. Os jornais da época se entusiasmavam com o crescimento.

O governador de Goiás, Henrique Santillo, constava como o 3° mais popular do país. Santillo, poucos dias antes de arregaçar as mangas para a batalha contra os efeitos do césio 137, resolvia um impasse político em Goiânia: a permanência de Joaquim Roriz na prefeitura de Goiânia ou o anúncio de um novo interventor. Enquanto isso, o calor na cidade batia recordes. No dia 18 de setembro, a cidade chegava à marca de 41 graus. Crianças de rua brincavam no espalho d´agua na Praça Bandeirante. O equilibrista de Moscou, Peter Heringer, no dia anterior, parara o Centro da cidade para uma performance nunca vista. Cerca de três mil pessoas o assistiram atravessar, num cabo de aço, o Banco do Estado de Goiás (BEG) e o Banco Real. Numa altura de 45 metro, chegou a tocar uma guitarra, como ilustra uma fotografia publicada na edição do jornal Diário da Manhã de 18 de setembro de 1987. Ele dava entrevistas, ofegante, para a rádio.

Os hospitais estavam lotados, sobretudo o Materno Infantil. Crianças desidratadas pelo calor, com vermes – os jornais da época destacavam a falta de cuidado com pés que não calçavam e mãos que pouco eram lavadas antes da refeição por crianças pobres.

Na cidade, contudo, não se falava em outra coisa com tanta animação quanto o Mundial de Motociclismo. Jornalistas estrangeiros passeavam pelas ruas, bebericavam nos bares e cafés. Ou estavam no Aeroporto Santa Genoveva para entrevistar comitivas que chegavam de todos os países. No dia 20 de setembro, às 11h:30min chegava o australiano Wayne Michael Gardner, o grande campeão do Motociclismo. Naquele dia, ocorria na cidade um seminário sobre Aids. A cidade seguia normalmente. Mas, no Centro, no Setor Aeroporto, Setor Norte Ferroviário, Jardim Veneza e Santa Genoveva o invisível contaminava, silenciosamente.

Até hoje não há consenso para o número de pessoas que foram contaminadas. Uma das vítimas, Odesson Alves Ferreira, por exemplo, tio da menina Leide das Neves e, por muito tempo, o presidente da Associação de Vítimas do Césio, era motorista de ônibus à época. Não sabe o número de pessoas que passaram por ele e teriam sido irradiadas. É um assunto demasiado subjetivo: a quantidade de gente que teve contato indireto com algumas gramas da substância. Mesmo que não tivessem tido contato físico, os transtornos tomaram contornos de medo e, pior, preconceito. Goiânia era vítima em sua totalidade. Cada canto da cidade, um relato de desespero.

A guerra, no entanto, estava declarada. Depois de perceber que aquele “troço” adoecera toda a família, Maria Gabriela Ferreira, uma bela mulher, mulher do Devair Ferreira, decidira ir à sede da vigilância sanitária, na Rua 16-A, no Setor Aeroporto. Delataria aquela coisa que brilhava, mas fazia seu marido perder os cabelos e seus funcionários irem para casa mais cedo por causa de enjoos. Foi seu ato heroico (quanto que o Estado iria saber tudo, que uma peça perigosa havia sido violada?) e, como contrapartida de goianienses, teve seu caixão apedrejado, sob o ímpeto do presidente da Câmara dos Vereadores à época, José Nelto (PMDB). Paus, pedras, pedaços de meio fio e cruzes de concreto que iam arrancando de lápides espalhadas pelo Cemitério Parque. Gritos de nojo, ódio, mas é preciso reconhecer, de desconhecimento. A mulher que salvou Goiânia de consequências maiores (seria possível?), enterrada ao lado da sobrinha Leide das Neves, não poderia se defender. Nem velório teve. A menina e a tia morreram dia 23 de outubro.

O sepultamento, dia 26 de outubro, foi acompanhado por cerca de 2 mil pessoas. Poucas eram as homenagens. Sobrou um padre constrangido, uma imprensa penalizada e microfones e câmeras prontificadas para registrar a dor da mãe de Leide, dona Lourdes Ferreira, que nem conseguiu ver, pela última vez, o rosto da filha morta por aquele pó que a menina comeu com um ovo. A guerra estava apenas no início. O inimigo já era conhecido. Agora, seria preciso minar seu poderio.

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