Caso Avestruz Master poderia ter ensinado racionalidade à imprensa e ao Judiciário
22 janeiro 2023 às 00h00
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Há 25 anos nascia em Goiânia a empresa que aplicou um dos maiores golpes financeiros do Brasil. A Avestruz Master marcou a história do Estado e ajudou a moldar ferramentas do direito empresarial (como a Lei de Recuperação Judicial). Por outro lado, foi exemplo do pior do comportamento humano: a ambição de enriquecer rápido, a má cobertura da imprensa, a histeria coletiva e o punitivismo cego que levou à morte de 40 mil animais por fome e ao fracasso do plano de recuperação judicial que poderia ter ressarcido os credores.
Para compreender o processo de descoberta e solução do escândalo, o Jornal Opção ouviu Neilton Cruvinel, advogado da Avestruz Master que apresentou o plano de recuperação judicial, aceito pela Justiça de Goiás em 2005.
A Avestruz Master
A empresa oferecia contratos de compra e venda de avestruzes com compromisso de recompra dos animais. Quem investisse em uma ave com 18 meses de vida, ganharia um retorno de 11% sobre a aplicação até o mês em que a avestruz fosse readquirida pela Avestruz Master. Supostamente, o lucro seria assegurado pela exportação da carne, mas, na realidade, o dinheiro de quem escolhia sacar seu crédito vinha dos novos participantes do negócio.
Enquanto a Avestruz Master alegava ter comercializado mais de 600 mil animais, nunca existiram mais do que 38 mil aves. Para que se tenha uma ideia, o grupo gastou em 2004 mais de R$ 4 milhões em publicidade, para atrair novos membros para a base da pirâmide, e gastou apenas R$ 100 mil em ração para avestruzes.
Em 2005, o esquema de pirâmide foi descoberto. O fundador do grupo, Jerson Maciel, e seus sócios (filhos de Jerson) fugiram para o Paraguai, onde Neilton Cruvinel teve contato com os administradores pela primeira vez. Em 2010, a Justiça Federal condenou os dois filhos e o genro do dono da Avestruz Master a indenizar os investidores em 100 milhões de reais. Os três condenados, Jerson Maciel da Silva Júnior, Patrícia Áurea da Silva Maciel e Emerson Ramos Correa, foram presos em 2019. Jerson Maciel, controlador do grupo, morreu dois anos antes da decisão. O prejuízo total amargado pelos investidores é estimado em 1 bilhão de reais.
O que poderia ter sido
Em 2005, após o esquema ser descoberto, o advogado Neilton Cruvinel que vivia em São Paulo foi contactado por um amigo que investia na Avestruz Master. Cruvinel foi procurado porque já havia trabalhado em dois casos de esquemas de pirâmide semelhantes, Boi Gordo e Gallus, em que os investidores também aportavam dinheiro mas não levavam os animais, que ficavam no pasto, atraindo novos aportes. O amigo lhe procurava em nome de Jerson Maciel, que estava foragido.
Neilton Cruvinel foi ao Paraguai duas vezes. Na primeira, conversou com Jerson Maciel e o convenceu a se entregar para a justiça. Para persuadir o dono da empresa, Neilton Cruvinel falou a respeito de uma nova lei que prometia uma saída digna da situação. A lei de Recuperação Judicial, fevereiro daquele ano, possibilitava que a empresa continuasse em relativo funcionamento enquanto dívidas eram pagas. Cruvinel retornou ao Brasil, se apresentando como advogado da empresa e comunicando a rendição dos foragidos.
Então, se dedicou a elaborar um plano de recuperação, segundo o qual os créditos dos investidores seriam transformados em ações. “A situação que encontrei era a de caos completo”, diz Cruvinel, ao afirmar que o modelo de negócio no plano de recuperação teve de ser completamente redesenhado. “A empresa funcionava de uma forma insustentável, pagando 11% ao mês para os investidores mais 5% para os corretores franqueados que buscavam novos clientes nas cidades. Além disso, comprava os próprios títulos (que representavam as aves) sempre valendo mais, assim criando uma demanda artificial.”
No Brasil, existia um mercado consumidor para o couro e as plumas dos avestruzes, e o maior desafio era encontrar compradores para sua carne, considerada exótica. Mas o negócio era relativamente sustentável, pois a ave é extremamente resistente e, por 40 anos, coloca cerca de meia centena de ovos por ano. Além disso, a empresa tinha o selo de qualidade Walmart, com a possibilidade de distribuir a carne da ave aos supermercados dessa rede. Somados com outras fontes de lucro, como abatedouro e frigorífico, os avestruzes dentro do plano desenhado por Cruvinel podiam fazer a empresa eventualmente pagar suas dívidas.
“A empresa tinha tantos credores que a assembleia geral para apresentação do plano teve de ser feita no Estádio Serra Dourada. A única solução possível era transformar as dívidas em ações, e todos que tinham alguma coisa a receber passariam a ser sócios da empresa. As promessas de lucros exorbitantes eram impossíveis, mas aquela era uma forma de os investidores recuperarem seu dinheiro, e muita gente enxergou a viabilidade do plano. Tínhamos uma equipe econômica enorme que atestava que aquilo era possível.”
Por que não foi
Oficialmente, o caso terminou com o Judiciário declarando a empresa falida e bloqueando seus bens, distribuindo suas posses e deixando uma dívida de R$ 1 bilhão para 59 mil pessoas. O plano de recuperação desenhado por Neilton Cruvinel sobreviveu por cinco meses. Em julho de 2006, o atraso de 20 dias para pagar um processo trabalhista foi suficiente para declarar a insolvência da empresa.
“Naquele momento, era muito novo o conceito de punir criminalmente os donos do negócio e deixar a empresa se recuperar. Nas alternativas anteriormente existentes, Concordata e Falência, o judiciário tinha uma influência pesada. A Avestruz Master era o primeiro grande caso em que a lei de Recuperação Judicial era aplicada, meses antes da companhia de aviação Varig ir pelo mesmo caminho, outro caso em que erros judiciários prejudicaram a sociedade. Então, eu entendo que tudo aconteceu de forma trágica pelo desconhecimento.”
Como consequência do bloqueio dos bens, milhares de aves morreram de fome, o frigorífico em Bela Vista de Goiás permanece fechado, e até as cercas das fazendas foram leiloadas. “Eu briguei com juiz e procurador da república, tentando explicar a nova lei, dizendo ‘como querem recuperar a empresa se ela está travada?’ Eu queria comprar ração para os animais, manter empregos. Não sei se os lucros renderiam o projetado, mas o importante naquele momento era fazer a empresa rodar. Nem tudo poderia ter virado pó.”
As vendas dos bens da Avestruz Master foram decepcionantes, pois toda a operação necessária para criar avestruzes é muito específica. Com pequenas fazendas e grandes incubatórios, e sem um mercado consumidor para o produto, os leilões arrecadaram pouco dinheiro.
Na realidade, é improvável que o atraso de 20 dias da dívida trabalhista tenha determinado sozinho o embargo da empresa. A Avestruz Master tinha a elite goiana como credora. A cobertura da imprensa teve como foco os casos de pessoas que perderam todos seus bens. “Nada que tenha muita atenção da mídia pode ser resolvido com racionalidade”, diz Cruvinel. “A emoção impede qualquer decisão razoável. Na minha avaliação, a maior preocupação era punir os donos.”
Envolvimento pessoal
“Eu me arrependo profundamente de ter aceitado esse processo”, diz Neilton Cruvinel. “Eu paguei do meu bolso um call center para convocar credores para a assembleia no Serra Dourada; eu dava quatro entrevistas por dia; emissoras de TV tinham uma base na porta do meu escritório. Eu vi milhares de animais com mais de cem quilos morrerem de fome. Eu me envolvi pessoalmente tentando impedir que o que restava virasse pó, mas as pessoas em Goiânia queriam matar o cara [Jerson Maciel] e a imprensa vendia a coisa como se fosse a hora de fazer um linchamento.”
“Todos os dias, promotores de todo o Brasil aproveitavam [os holofotes] para tentar entrar no caso, emitindo decisões desconexas. A Justiça Federal entrou, mesmo sem ser de sua alçada, e bloqueou os bens da empresa, antes da falência, forçando os credores a protestar na porta da Polícia Federal em Goiânia. Tudo isso foi extenuante, foi uma loucura. Depois da Avestruz Master, eu nunca mais mexi com recuperações judiciais. Me desencantei com essa área e passei a atuar em outros campos do Direito.”