Por que o Brasil das redes sociais (e fora delas) está muito mais próximo de um atentado em Paris do que uma hecatombe ecológica em seu quintal

Desde seu início, a guerra civil na Síria mata por dia, em média,o mesmo número de mortos na sexta-feira 13 de Paris
Desde seu início, a guerra civil na Síria mata por dia, em média,o mesmo número de mortos na sexta-feira 13 de Paris

Elder Dias

Marcos Eufrásio Messias é pedreiro e tinha uma existência tranquila até o começo do mês. Juntamente com a mãe, os irmãos e dois sobrinhos, vivia no mesmo lugar desde que nascera. Na casa modesta criava galinha, pato e codorna. Tudo muito simples, mas ele não precisava de muito mais: tinha — como ele diria à reportagem da Agência Brasil — “a vida feita”. Até que um rio passou em sua vida. Um rio com lama e sem alma, ao contrário do povoado que destruiu. O pedreiro perdeu todo o pouco que materialmente havia acumulado e viu as referências de seus 38 anos serem levadas todas pela avalanche que destruiu seu mundo. Ele morava em Bento Rodrigues, distrito que existia na zona rural de Mariana (MG) até o dia 5 de novembro de 2015.

Mehdi Taleb é um libanês residente em Beirute, a capital de seu país. No dia 12, sua irmã Leila e o marido dela, Hussein Mostapha, visitavam a família na terra natal. O casal, de residência nos Estados Unidos — Dearborn, no Estado de Michigan —, fazia um passeio pelo centro comercial de Burj al-Barajneh, no subúrbio da principal cidade do Líbano. Foi quando dois homens a pé detonaram os explosivos atados em si. Leila e Hussein morreram, juntamente com mais 39 pessoas. O filho deles, Haider, de 3 anos, saiu ferido. E Mehdi entra na história apenas para contar ao jornal “The Detroit News”, de Michigan, o que o pequeno sobrevivente repetia: “Eles (seus pais) estavam sangrando e queimando”; “Eu quero voltar para eles!”; “Onde eles estão?”.

Os índios Guarani-Kaiowá lutam pela demarcação de suas terras há décadas, em Mato Grosso do Sul. Um progresso nessa batalha ocorreu há dez anos, quando o governo federal lhes destinou uma área em Antônio João, a 400 quilômetros de Campo Grande. Na prática, a vitória nunca aconteceu: manobras judiciais, agora centradas no Supremo Tribunal Federal (STF), sempre atravancaram o processo. Os índios perderam a paciência e ocuparam a área, chamada de Terra Ñande Ru Marangatu, mas que abriga hoje, na verdade, quatro grandes fazendas de gado. O resultado: nos últimos meses, houve crescimento da tensão com os sindicatos rurais, com vários episódios de violência. Em um deles, no fim de agosto, o kaiowá Semião Fernandes Vilhalva, de 24 anos, levou um tiro no rosto ao proteger seu filho em um dos conflitos e morreu. Há várias denúncias de humilhação e espancamento de indígenas por milícias privadas dos fazendeiros.

Índios da tribo Guarani-Kaiowá esperam há décadas por suas terras, em meio a conflitos e mortes que não saem no jornal | Fotos: Divulgação
Índios da tribo Guarani-Kaiowá esperam há décadas por suas terras, em meio a conflitos e mortes que não saem no jornal | Fotos: Divulgação

Trinta e duas pessoas foram mortas na terça-feira, 17, em um ataque suicida do Boko Haram em Yola, no nordeste da Nigéria. Cerca de 80 outras, pelo menos, saíram feridas da ação, que ocorreu em um mercado — local de muita aglomeração, escolhido para multiplicar o número de vítimas. A mesma cidade, no mês passado, havia sido alvo de outro atentado dos mesmos terroristas, que também agiram simultaneamente em uma cidade próxima, Maiduguri. Ao todo, morreram 37 civis. O Boko Haram é aliado do grupo Estado Islâmico e tão cruel com suas vítimas quanto o parceiro mais conhecido.

Comentando um pouco das quatro histórias: 1) o caso de Mariana (MG) foi o único a ganhar algum destaque. Não por acaso: é o maior desastre ambiental do Brasil, tendo matado rios e pessoas, extinguido espécies e aniquilado um bioma inteiro. Prejuízo de valor incalculável; 2) o ataque a Beirute ocorreu um dia antes da sexta-feira sangrenta de Paris, mas praticamente não repercutiu. 3) a via-crúcis (termo nada exagerado) dos guaranis-kaiowás e outros indígenas brasileiros é antiga, mas a imprensa nunca se ocupou realmente de registrar o que com eles ocorre; 4) a Nigéria fica na África, o continente esquecido. Quem se importa?
Do lado oposto, Paris. Uma semana inteira de muita dor e comoção, “Marselhesa” e do ideário liberdade-igualdade-fraternidade. O mundo se condoeu pelos franceses, o Brasil também.

Como geralmente ocorre com esse perfil de notícias, o noticiário nacional ficou monotematizado. E isso contagiou as redes sociais. No Facebook, a maior delas, foi disponibilizado um filtro para colocar a foto do perfil com sobreposição da bandeira da França, em atitude de solidariedade. Algo certamente legítimo, mas que causou questionamentos por aqui: afinal, o País não vivia um drama não menos grave e bem mais próximo, com a destruição ambiental provocada pelo rompimento da barragens de dejetos de produção de minério de ferro, em Mariana (MG)?

Refugiados nigerianos, expulsos de suas casas pela violência dos extremistas do Boko Haram: nada mais que estatísticas
Refugiados nigerianos, expulsos de suas casas pela violência dos extremistas do Boko Haram: nada mais que estatísticas | Foto: Divulgação

De forma semelhante, um libanês, um índigena e um nigeriano questionariam a desatenção a seus dramas. Com exceção do caso de Mariana, há um desconhecimento praticamente total dessas histórias por parte da população brasileira, mesmo a tida como mais bem informada. O exemplo da Nigéria é bem simbólico para o que nos propomos neste texto: nos últimos seis anos, foram mais de 20 mil mortes provocadas pela ofensiva dos radicais. E a Nigéria é apenas um dos países africanos que sofrem atualmente com conflitos sangrentos — Mali, Mauritânia, Sudão, Somália e República Centro-Africana, entre muitos outros. O continente africano agoniza em lutas desde as guerras de independência, a partir dos anos 50.

Em 1978 Edward Said publicou sua obra mais conhecida, “Orien­talismo”, na qual analisa a visão ocidental do mundo “oriental”, mais concretamente do mundo árabe. Segundo o autor, o Ocidente criou o Oriente. Mais do que isso uma visão distorcida daquilo que chamou de Oriente, para lhe contrapor um “Outro”. Seria, em sua concepção, uma forma de diferenciação, o que sempre serviu aos interesses do colonialismo. O pensador analisou o discurso de autores ocidentais em várias áreas — literatura, política, religião, economia etc. — e encontrou um ponto em comum: em todos os casos, esse Oriente sempre vinha recheado de “bárbaros”.
Um comentário do cineasta e comentarista de TV, Arnaldo Jabor, na edição da segunda-feira, 16, do “Jornal da Globo”, serve para ratificar as conclusões do intelectual palestino. Vamos a ele:

“A maior descoberta do Estado Islâmico foi a mídia, as redes sociais. E usam nosso progresso tecnológico para nos atacar. A Al Qaeda dependia da decisão do líder Osama. Hoje não há mais um chefe-geral, mas, sim, milhares de assassinos em rede. Osama era analógico, o Estado Islâmico é digital. Esses ratos de Alá descobriram também o ‘indivíduo ocidental’ e o grande horror que só a morte individual desperta em nós. Como dizia Stalin: “A morte de milhões é uma estatística. A morte de um homem só é uma tragédia.” Eles escolheram o berço da democracia e a mais bela cidade. Eles trouxeram a peste para o Ocidente. Eles nos odeiam porque eles vivem no lixo da barbárie e nós somos civilizados. E vamos parar também com aquele papo de que estamos pagando pelo mal que fizemos no passado. Eles não são mais consequência de nada. Eles querem atingir o mal absoluto, acabar com nossa alegria de viver.

O que fazer contra esses ratos? Só adiantaria uma grande coalizão de países para atacar maciçamente por ar e terra. Mas, mesmo assim, vai mudar nosso conceito de paz, de sossego. A nossa ideia de vitória ficou arcaica também. Haverá vitória sobre quem? Eles não existem, não têm rosto. Querem o martírio. Como disse o mulá Muhamed Omar: “Nós amamos a morte, vocês sempre quiseram viver.”

Jabor é um homem ocidental, culto e cosmopolita. Por isso, se por um lado o discurso acima causa algum espanto, não deixa também de ser típico. Uma análise do texto, mesmo que breve e superficial, pode ajudar a explicar por que Paris “existe” mais do que Beirute, Yola, Mariana ou Antônio João.

O pedreiro Marcos Eufrásio perdeu o pouco que tinha, inclusive seu lugar de nascimento: o povoado de Bento Rodrigues não existe mais
O pedreiro Marcos Eufrásio perdeu o pouco que tinha, inclusive
seu lugar de nascimento: o povoado de Bento Rodrigues não existe mais | Fotos: Divulgação

Primeiramente, Jabor insiste na distinção “nós versus eles”, repetida do começo ao fim de sua fala. O “nós” tem 10 citações diretas e indiretas; o “eles”, 12. E de que se constitui o “nós” de Jabor? De “progresso tecnológico”, do “indivíduo ocidental”, um ser “civilizado” preenchido por um “conceito de paz, de sossego”, cercado de pessoas que “sempre quiseram viver”. E quem são “eles”, para o comentarista global? São os “ratos de Alá” que, vivendo “no lixo da barbárie”, “trouxeram a peste para o Ocidente” e “usam” o progresso tecnológico para “atacar” com o “mal absoluto”, porque “amam a morte”.

Aqui é preciso voltar, antes de tudo, para a reflexão do que seja o conceito de “cosmopolita” que foi cravado para Arnaldo Jabor — supondo, com pouca chance de errar, que ele mesmo se considere como tal. Segundo uma das definições, “cosmopolita” é o mesmo que “cidadão do mundo”, e diz-se de quem “deseja transcender a divisão geopolítica que é inerente às cidadanias nacionais dos diferentes Estados e países soberanos”. Como homem do mundo, deve saber que o progresso ocidental deve muito à álgebra (invenção dos árabes), ao papel (tecnologia chinesa) e aos medicamentos (muitos criados a partir da sabedoria indígena).

Em “Orientalismo”, Edward Said afirma que foi o mundo ocidental que criou o Oriente — por meio da literatura, do teatro e das artes em geral, desde os tempos da Grécia Antiga aos dias atuais. Um Oriente que sempre foi atualizado de acordo com os interesses hegemônicos. Inclusive na prática.

E aí temos Jabor falando que não tem esse papo de que “estamos pagando pelo mal que fizemos no passado”. Ou seja, o Ocidente não teria nada a ver com a violência “deles”, embora reconheça que algum “mal” foi feito algum dia. Será que tal mal não se refletiria de alguma forma na violência atual?

Leila Taleb, Hussein Mostapha e o pequeno Haider, agora órfão | Foto: Divulgação
Leila Taleb, Hussein Mostapha
e o pequeno Haider, agora órfão | Foto: Divulgação

A guerra civil da Síria, que deixa o país em frangalhos nos últimos cinco anos, fez mais de 220 mil mortos. É como se, desde o começo do morticínio, em 2010, houvesse um atentado como o de Paris todo dia. Nisso Jabor acerta: a morte coletiva, aos milhares, parece não comover. Tanto que o único sírio morto em consequência da guerra que chegou a ternome conhecido e divulgado foi Aylan Kurdi, o menino que morreu na praia da Turquia. Em terras europeias, portanto “ocidentalizado” de alguma forma.

Ao contrário do que fala o cineasta e dublê de analista geopolítico da Globo, o Ocidente parece ter, sim, certa culpa da violência que desandou no Oriente Médio desde o século passado e que agora o atinge em suas esquinas mais conhecidas. O imperialismo (aqui citado sem pretensão panfletária) que dividiu as terras do mundo árabe de acordo com os conchavos após a 1ª Guerra Mundial deixou sequelas: com a criação artificial de países e fronteiras, sem respeitar as diversidades dos povos nativos — porque, turco, persa, curdo ou árabe, todos são “japoneses” para o homem ocidental são — e visando atender a interesses econômicos dos colonizadores, conflitos generalizados seriam questão de tempo. Nesse contexto de bomba-relógio, a criação do Estado de Israel foi só a cereja do bolo.

É interessante notar os poucos casos em que mortes coletivas no mundo não ocidental assumem a primeira página dos jornais e portais. Foi o que ocorreu com o atentado ao hotel no Mali, na sexta-feira, 20, que deixou 27 mortos e fez cerca de 200 reféns. Mas por que este foi notícia e não o da Nigéria, quatro dias antes, e como mais perdas humanas? Talvez seja o fato de o hotel ser conhecido por hospedar estrangeiros, inclusive funcionários da Air France a serviço da empresa aérea na ex-colônia francesa.

E o que Mariana e os guaranis-kaiowás têm a ver com árabes e negros africanos? Ora, eles representam o mundo “bárbaro” que não está no Oriente. Ou, se Said permite, um orientalismo “lato sensu”. O ocidental acha feio o que não é espelho — e isso serve também para o índio mato-grossense e o caipira do interior mineiro. A chance de alguém de Belo Horizonte ter mais afinidades com um nova-iorquino do que com o pedreiro Marcos Eufrásio é bem alta. E assim fica mais claro por que o Brasil dito “civilizado” está muito próximo de um atentado em Paris do que uma hecatombe ecológica em seu quintal.

É esta a triste constatação: ancorado na falsa premissa de que evolução é “progresso tecnológico”, o Ocidente tem a macabra mania de transformar em números e estatísticas as vidas que não lhe dizem respeito. Foi assim com os escravos de Roma; continuou assim com os negros da África e com os colonizados da Índia; é assim com os sírios, curdos, guaranis-kaiowás, tutsis e caipiras do mundo. E é assim que, como em um filme que se repete como crônica já anunciada, os bárbaros continuam a invadir o mundo civilizado. E os ocidentais, assustados, não conseguem imaginar de onde pode surgir tanto mal.