Lá se vão seis meses após os atos golpistas e 253 pessoas ainda estão presas, de acordo com o Supremo Tribunal Federal (STF). No entanto, a assessoria da Corte não soube precisar ao Jornal Opção quantos goianos estariam entre os detidos. No total, depois de 8 de janeiro, mais de 2 mil pessoas foram encarceradas por suspeita de algum tipo de participação nos crimes cometidos neste dia em Brasília. No entanto, a maioria já responde o processo em liberdade, com aplicação de medidas cautelares. Até o dia 26 de junho, o STF já tinha analisado 1.290 denúncias.

O presidente da Comissão de Direito Constitucional da Ordem dos Advogados do Brasil seção Goiás (OAB-Goiás), Saulo Coelho, não vê demora na análise dessas prisões. “Os ritos processuais penais demandam um certo tempo. Existe uma série de medidas processuais que precisa ser atendidas e o tempo está dentro da normalidade do processo penal”, pontuou.

Segundo Saulo, que também é professor de Direito na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás (UFG), nesse caso, a prisão preventiva ou provisória de alguns dos envolvidos com os atos de 8 de janeiro é justificável. “Como a situação envolve a necessidade de coleta urgente de provas e as pessoas podem ter se organizado para a prática desses crimes, me parece que se justifica a prisão preventiva de algumas pessoas até para que as provas não fossem destruídas durante a investigação”, alegou.

Saulo lembra que o artigo 312 do Código de Processo Penal diz que “a prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova de existência do crime e indícios suficientes da autoria”. Por isso, ele conclui: “Me parece que estamos chegando no tempo processual em que a maioria dessas prisões serão relaxadas em razão da conclusão da fase investigatória”.

Presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB-GO, Saulo Coelho, acredita que quem ainda está preso pode ter prisão relaxada a partir de agora | Foto: reprodução Instagram

O professor acredita que, passados seis meses das prisões, a tendência é que os investigados comecem a ser soltos e respondam o processo em liberdade com o fim das investigações. “Não existe um prazo específico, mas, em geral, é de praxe que essas prisões durem alguns meses, enquanto se faz a instrução do processo. A não ser quando o risco de praticar novos crimes é provada e iminente”, detalhou.

Para o docente, não se pode esquecer da presunção de inocência, além de que, para se manter alguém preso no Brasil, deve haver uma demonstração concreta da necessidade da prisão. ” A defesa pode requerer o relaxamento das prisões, que poderão ser relaxadas, caso a caso”. E Saulo aposta que os presos poderão ser soltos pela razão de que a colheita de provas já se exauriu. “Salvo se a polícia tiver percebido que há uma organização criminosa que ainda pretende tentar conta o Estado de Direito”, salientou.

STF já iniciou interrogatório dos réus

A Suprema Corte já deu início no último dia 26 às oitivas das testemunhas de acusação e defesa e ao interrogatório dos réus pelos atos golpistas de 8 de janeiro. A previsão é que esse trabalho finalize até o fim do mês de julho. As audiências são realizadas por quatro magistrados que atuam como auxiliares/instrutores no gabinete do ministro Alexandre de Moraes. Todo o trabalho é feito por meio de videoconferência. Neste primeiro bloco, o foco são as ações penais contra as 232 pessoas que seguem presas e que são acusadas dos crimes mais graves.

STF deve terminar as oitivas e o interrogatório dos réus de 8 de janeiro até o fim do mês | Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil

O presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB-GO explica que cada conduta precisa ser individualizada, uma vez que é uma exigência da Constituição Federal. “Em geral, as pessoas que foram presas após participar dos atos de 8 janeiro teriam cometido crime contra as instituições democráticas. Mas todo mundo que estava ali não cometeu os mesmos crimes”, ponderou.

O professor lembra que o artigo 359-L do Código Penal diz que é crime “tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”. A pena prevista nesse caso é de quatro a oito anos de reclusão, somada ainda a punição correspondente pelo tipo de violência cometida.

Para Saulo, quem invadiu a sede dos Três Poderes, impediu ou restringiu o exercício desses poderes. Mas ele destaca que “as investigações precisam individualizar as condutas. A situação de quem, de fato, adentrou esses prédios é uma. Mas a situação de quem estava na manifestação e não invadiu nem vandalizou é outra”, alertou.

Entre as principais acusações, segundo o Supremo, estão os crimes de associação criminosa armada; tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito; tentativa de golpe de Estado; dano qualificado pela violência e grave ameaça com emprego de substância inflamável contra o patrimônio da União e com considerável prejuízo; e deterioração do patrimônio tombado.

De fato, diferentes crimes podem ter sido praticados e, como aponta Saulo Coelho, os atos golpistas de 8 de janeiro tiveram uma “tessitura complexa”. “Não se pode punir ninguém sem conseguir individualizar a conduta dessa pessoa e enquadrar essa conduta na nossa legislação”, postulou.

O trâmite processual das audiências de instrução é dividido em duas etapas. Primeiro as testemunhas de acusação são ouvidas na presença de um representante da Procuradoria-Geral da República, dos réus e de seus advogados. Esse é o momento em que a PGR, a defesa e o juiz perguntam.

Depois, é a vez das testemunhas de defesa e dos réus serem interrogados. A audiência é aberta pelo juiz com a presença da PGR, do advogado de defesa e do réu para então ouvir as testemunhas apresentadas pela defesa. Nesta hora, tanto a PGR quando os advogados que defendem os réus fazem perguntas. Encerrado esse momento, o interrogatório continua, mas dessa vez com o réu.

Vereador de Inhumas segue preso por conta de 8 de janeiro

A última terça-feira, 4 de junho, foi de muita tristeza para a família do vereador José Ruy (PTC), de Inhumas. Isso porque ele passou o aniversário dele atrás das grades. O parlamentar foi preso pela Polícia Federal no dia 14 de fevereiro em uma das etapas da Operação Lesa Pátria. Lá se foram quase cinco meses e, desde então, a família e os advogados tentam reverter a detenção.

O motivo da prisão do vereador foi um vídeo que viralizou nas redes sociais em que ele aparece caminhando e acenando para a câmera durante os atos golpistas de 8 de janeiro. Nas imagens (veja abaixo), dá pra ver José Ruy no telhado do Congresso. Ele teria furado o bloqueio que havia no acesso à Praça dos Três Poderes para que fosse possível realizar a gravação.

Vídeo mostra vereador José Ruy no teto do Congresso durante os atos golpistas | Vídeo: reprodução redes sociais

O advogado Leonardo Batista atua na defesa do vereador há cerca de um mês. Ele explicou que uma decisão do ministro Alexandre de Morais, de 23 de maio, quando ainda não estava no caso, o manteve preso. Segundo ele, já estão sendo feitas as oitivas de testemunhas. “Após o término dessa fase vou requerer a liberdade e a revogação da prisão”, antecipou.

Segundo Leonardo, as provas já foram colhidas e o vereador não oferece risco à ordem pública. “Ele não financiou os atos, não depredou nem invadiu prédio público. Não incitou a invasão nem violência. A única prova que tem nos autos é uma foto em que ele estava na rampa do Congresso. Nada mais do que isso. Dali ele não passou. Estamos confiantes de que ele será absolvido”, defendeu.

O advogado explicou ainda que o fato de estar presente na manifestação não é crime. “Ninguém do grupo que estava com José Ruy imaginou que o protesto ganharia essa magnitude. Quando ele viu que passou do ponto, ele retornou pra Inhumas. Voltou de Brasília no mesmo dia”, declarou.

Em maio, a odontóloga Lorrany Garcia, filha do vereador por Inhumas, José Ruy (PTC), pediu aos prantos em vídeo publicado na internet pela liberdade de seu pai. Na publicação, Lorrany diz que José Ruy é “um homem de família simples que vem do campo e que sempre trabalhou muito para poder formar suas filhas”.

“Ele está preso sem ter feito nada”, acrescentou Lorrany. Segundo ela, seu pai é idoso e tem comorbidades. A odontóloga clamou pela liberdade não só do vereador, mas de todos os presos por participação nos atos golpistas. Mesmo preso, o advogado de defesa do parlamentar garantiu que ele está “bem cuidado e tomando medicamentos pra pressão”.

Na época da publicação da filha do vereador, quem endossou o pedido da filha de José Ruy foi o delegado e ex-deputado estadual Humberto Teófilo. Nas redes sociais, o ex-parlamentar também lamentou o extenso período de prisão de um homem, que, segundo ele, “sempre defendeu os valores da família”. Ao prestar solidariedade, Humberto disse que espera que “a verdadeira justiça seja reparada com a libertação do vereador”.

Segundo o ex-deputado, em nenhum momento José Ruy aparece no vídeo invadindo o Congresso Nacional nem praticando atos de vandalismo. E ele ainda sugere que, caso o parlamentar estivesse vendendo drogas, provavelmente teria sido solto na audiência de custódia. “Aliás, se Zé Ruy estivesse desviando dinheiro público também não estaria preso e exercendo normalmente seu mandato de vereador”, provocou o delegado.

Porque foi uma tentativa de golpe?

O cientista político Pedro Célio acredita que 8 de janeiro “foi um desenlace de uma sequência de ações concatenadas e coordenadas no sentido de um golpe político”. E sua conclusão se dá em virtude das reivindicações e bandeiras do movimento que visavam o impedimento do exercício de um governo que tinha acabado de ser eleito e que havia tomado posse há uma semana.

“Foram invadidos e depredados as sedes dos Três Poderes: o Congresso, o Supremo e o Palácio do Planalto. E a inviabilização de poderes legitimamente constituídos é um golpe”, completou o cientista política, que ainda lembrou que essa situação foi anunciada e estimulada por autoridades que lideravam aqueles manifestantes por diversas vezes.

E Pedro Célio destacou que o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) conclamou seus apoiadores a não aceitar o resultado das eleições e detratou o STF e TSE, numa tentativa explícita de desmoralizar o processo eleitoral. “O mesmo processo do qual ele estava participando e pelo qual ele havia sido eleito há quatro anos”, afirmou.

Para Pedro Célio, democracia brasileira ainda corre risco | Foto: Fernando Leite/Jornal Opção

O cientista político recapitula três momentos importantes na linha do tempo para entender o que pode ter culminado nos atos golpistas de 8 de janeiro. O primeiro deles foi a diplomação do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), no dia 12 de dezembro de 2022. “Houve um quebra-quebra na capital federal. Brasília foi saqueada. Viaturas e prédios foram depredados. Todas elas lideradas por pessoas que não aceitaram o resultado eleitoral”, afirmou.

Logo em seguida, Pedro Célio lembrou da descoberta de um caminhão com explosivos próximo ao aeroporto de Brasília. “Parece uma situação isolada, mas não é. Tentou-se criar um clima de instabilidade e de caos que poderia levar a concretizar a intervenção militar, que a linha do golpe vinha pregando”, destacou o cientista político.

E o terceiro elemento foi revelado meses depois: a minuta do golpe descoberta na casa do ex-ministro da Justiça de Bolsonaro, Anderson Torres. “Era o roteiro, os passos a serem seguidos para efetuar as ações articuladas no sentido de destituir os Poderes”, pontuou Pedro.

Na história da república brasileira, há uma série de golpes e tentativas de golpes. O mais famosos deles foi em 1937, quando Getúlio Vagas se manteve no poder à custa de uma ditatura. Mas Pedro Célio enumera alguns outros: “Tivemos em 1954, com Carlos Lacerda, antes do governo de Juscelino Kubitschek. Tivemos depois com Jânio Quadros, que tentou criar uma situação de caos e instabilidade pra se manter no poder. Em 1977, na época do presidente Geisel, dentro do próprio governo militar, houve uma tentativa de golpe dentro do golpe. Em 1982, quando Lionel Brizola foi eleito no Rio de Janeiro teve também”.

Comparação com terrorismo e risco real à democracia

Por conta das cenas chocantes que invadiram as redes sociais e a mídia de uma forma geral que cobriam em tempo real a tentativa de golpe, houve quem comparou o fenômeno a um ato terrorista. “Do ponto de vista dos padrões legislativos internacionais, seria terrorismo. Em muitos países, seria considerado terrorismo. Mas, no Brasil, a legislação específica não enquadra aquela situação como terrorismo”, salientou o presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB-GO.

Apesar de ter resistido a 8 de janeiro, Pedro Célio acredita que a democracia brasileira ainda corre risco. Isso porque, na visão dele, a articulação golpista com o carimbo da extrema direita conseguiu uma força que muitos imaginavam não ser possível antes dela acontecer. “Do ponto de vista empírico, a extrema direita brasileira desenvolve um discurso golpista na essência, fascista no conteúdo e tem uma formatação muito adequada às tecnologias com a mobilização através das redes sociais”, detalhou.

Mas o cientista político reconhece o amadurecimento das forças comprometidas com a democracia no Brasil. “A ponto de recuperar laços de compromisso e de união entre esquerda, políticos de centro, empresários e setores de algumas religiões que podem fazer frente ao neofascismo com muita dificuldade, mas com êxito, do ponto de vista do resultado eleitoral”, elogiou Pedro.