Terra Sonâmbula, de Mia Couto, aborda a guerra em Moçambique com toques de realismo fantástico

01 maio 2022 às 00h00

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Romance do escritor moçambicano passeia pelas lendas e magias africanas para mostrar o desalento e a destruição causados pela guerra civil naquele país
Mariza Santana
Falar sobre os horrores da guerra é sempre um desafio para os escritores. Mas o escritor moçambicano Mia Couto o faz com maestria e sensibilidade, ao narrar, no romance “Terra Sonâmbula”, os efeitos cruéis da guerra civil que ocorreu em seu país, no período de 1976 e 1992.
O autor nos apresenta o menino Muidinga e o velho Tahir, dois refugiados que se escondem em um ônibus queimado e abandonado no meio de uma estrada deserta. Perto do veículo, eles encontram uma mala contendo os manuscritos do falecido Kindzu, outro deslocado de sua terra natal devido à guerra.
As desventuras desses personagens em meio a um cenário de desalento e devastidão são narradas por meio de uma linguagem que remete ao realismo fantástico. Figuras mitológicas africanas se misturam com pessoas comuns que lutam pela sobrevivência em um cenário de violência, fome e caos. Abrigados no ônibus semidestruído, o menino e o velho só possuem como alento os momentos em que o primeiro lê para o ancião as histórias contidas no manuscrito de Kindzu.
O dono dos manuscritos da mala saiu de casa em uma canoa, logo após a morte do pai. Por onde passa, Kindzu encontra criaturas mágicas e personagens cruéis, dorme em um navio naufragado, e se relaciona com as irmãs gêmeas Farinda e Carolinda, que não se conhecem, mas têm suas vidas entrelaçadas.
Sua busca é por algo etéreo e inatingível, uma odisseia sem fim. A viagem se desenrola em um país devastado pela guerra civil e se torna um périplo de ações desconexas e contatos desordenados, com personagens perdidos em meio a uma terra que não dorme, pois vive um pesadelo sem fim e por isso se tornou uma terra sonâmbula.

A narrativa de Mia Couto é repleta de lirismo e muitos neologismos, o que exige maior atenção do leitor, mas contribui para tornar a obra ainda mais envolvente, devido à linguagem incomum. O escritor subverte o sentido das palavras e dos ditados populares, tais como: “… afinal de grão a grão o papa se enche de galinhas”. Ele remete ainda ao onírico para transmitir sua mensagem, como no trecho dito por um fantasma no sonho de Kindzu: “… esta guerra não foi feita para vos tirar do país, mas para tirar o país de dentro de vós”.
Mia Couto é o pseudônimo de Antônio Emílio Leite Couto. O escritor nasceu em Beira, em Moçambique, em 1955. Ele é biólogo, jornalista e autor de mais de 30 livros de prosa e poesia. Sua obra “Terra Sonâmbula” é considerada um dos doze melhores livros africanos do século XX. Entre os prêmios literários conquistados pelo moçambicano está o Camões, em 2003, o mais prestigioso da Língua Portuguesa, e o Neustadt International Prize, em 2014, tido como o Nobel americano. Ele é membro correspondente da Academia Brasileira de Letras, e atualmente trabalha em estudos sobre o impacto ambiental.
Mariza Santana é crítica literária. E-mail: [email protected]