Quando um escritor é elevado ao status de divindade, todos à sua volta são preteridos, ainda que suas obras possuam valor estético elevado. Isso aconteceu no Brasil, quando João Cabral de Melo Neto se tornou a menina dos olhos da crítica, ao passo que Jorge de Lima, poeta maior, foi praticamente ignorado

Jorge de Lima, poeta, autor de “A Invenção de Orfeu” | Foto: Divulgação

“Quero (…) a água da fonte escondida.”
(Manuel Bandeira)

Bernardo Souto
Especial para o Jornal Opção

A crítica literária brasileira sempre escolhe os seus queridinhos da vez. Enquanto isso, escritores valorosos como Gustavo Corção, Carlos Pena Filho ou Ângelo Monteiro permanecem praticamente ignorados. Sempre foi assim, sempre assim será. O velho Machado de Assis, em “Memórias Pós­tumas de Brás Cubas”, já diagnosticara a irrefreável tendência do brasileiro às ideias fixas.

T.S. Eliot, sem dúvida um dos maiores críticos literários do séc. XX, dizia que toda admiração absoluta é uma espécie de miopia, já que leva à cegueira idolátrica e à ilusão de que existem escritores indefectíveis. Na conferência “O que é poesia menor”, de 1944, Eliot ironiza a postura do leitor que valoriza apenas os autores eleitos pelos estudiosos da literatura como os melhores:

“Na verdade, sentir-me-ia inclinado a duvidar da veracidade do amor à poesia de qualquer leitor que não tivesse uma ou mais dessas afeições pessoais pela obra de algum poeta sem grande importância histórica: suspeitaria que a pessoa que apenas gostasse de poetas que os livros de História concordam ser mais importantes não passaria, provavelmente, de um estudante consciencioso, que contribui com muito pouco de si na sua apreciação.”(1)

Otto Maria Carpeaux também observou o mesmo, só que por outro ângulo, ao estudar a obra do grande romancista russo Fiódor Dostoiévski:

“Dostoiévski admirava muito a francesa [George Sand], que lhe comunicara as primeiras ideias socialistas, e cuja técnica novelística, bastante frouxa, agradou o seu próprio gênio indisciplinado. (…) Quanto à maneira de narrar o enredo, Dostoiévski preferiu sempre os enredos de George Sand – e de Sue, ao qual tomou emprestado a técnica de alargar um assunto meio policial meio de aventuras em grande panorama de costumes e problemas contemporâneos.” (2)

Ora, não é preciso ser muito inteligente para perceber que, quando um escritor é elevado ao status de divindade, todos à sua volta passam a ser preteridos, ainda que suas obras possuam valor estético elevado. Isso aconteceu no século XX, no Brasil, quando João Cabral de Melo Neto se tornou a menina dos olhos da crítica, ao passo que Jorge de Lima, poeta bem maior que Cabral, foi praticamente ignorado. Também ocorreu em Portugal: o intenso brilho de Fernando Pes­soa como que nos impediu de en­xergar, por várias décadas, a obra de Mário de Sá-Carneiro, poeta dos mais fortes que o país de Dom Sebastião produziu. Na esfera das artes plásticas, tal fenômeno gerou ao menos duas dezenas de pintores de má-qualidade: quase todos os boschianos e brueghelianos do século XVI. São o que Ezra Pound chamava de diluidores.

Assim como Manuel Bandeira – que, contra tudo e contra todos, dizia ser Raimundo Correia melhor verse-maker que Bilac – outros grandes escritores do séc. XX também buscaram beber da “água da fonte escondida”. Citemos três casos emblemáticos, a título de ilustração: Pound redescobriu a poesia chinesa antiga e os trovadores provençais; T. S. Eliot revisitou os Metaphysical Poets da Inglaterra e a assimilou a ironia cáustica de Jules Laforgue, que nunca esteve entre os poetas mais divulgados da França e, last but not least, Jorge Luis Borges se dedicou ao estudo da literatura escandinava medieval, da Kabbalah e do estranho misticismo de Emanuel Swedenborg.

É evidente que a ânsia de redescobrir a roda pode muito bem ser um tiro no pé, pois que existem alguns escritores, como Shakespeare e Dante, que sempre ocuparão o centro do cânone. Por outro lado, a postura de ler apenas os clássicos bem pode se converter numa espécie de fetichismo, sobretudo porque nasce da ideia equivocada de que a tradição é algo imutável e não sujeito a nenhuma forma de hierarquização. E, como bem notou G. K. Chesterton, tradição não é estarem os vivos mortos; mas os mortos vivos.

É verdade que houve um acentuado declínio espiritual no último século e meio, mas não é correto afirmar que houve um declínio literário. Só pra ficarmos no terreno da Poesia, nos últimos 150 anos o Ocidente produziu: Yeats, T. S. Eliot, Dylan Thomas, Rilke, Trakl, Hofmannsthal, Ungaretti, Montale, Rimbaud, Verlaine, Paul Claudel, Saint-John-Perse, Konstantinos Kavaphis, Boris Pasternak, Antonio Machado, García Lorca, Jorge Luis Borges, Fernando Pessoa, Jorge de Lima, Manuel Bandeira, Cecília Meireles etc., etc., etc. Se isso é declínio, desaprendi por completo o significado da palavra declínio… É por isso que devemos tomar cuidado quando falamos mal da produção literária de nossa época…

Fico com a impressão de que Friedrich Nietzsche – pelo menos neste caso em particular – estava certo: “São nos tempos de grande perigo em que aparecem os filósofos. Então, quando a roda rola sempre com mais rapidez, eles e a arte tomam o lugar dos mitos em extinção. Mas projetam-se muito à frente, pois só muito devagar a atenção dos contemporâneos para eles se volta.” (Der Wille zur Macht, n.420)*

(1) ELIOT, T. S. A essência da poesia. Rio de Janeiro: Arte Nova, 1972. p 65.
(2) CARPEAUX, Otto Maria. “Dostoiévski no mundo dos Karamázov”. In: DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os Irmãos Karamázov. Trad. de Rachel de Queiroz. Rio de Janeiro: José Olympio, 1953. p. 34.
*Cf LEÃO, Emmanuel Carneiro. “Apresentação”. In: HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Trad. Márcia de Sá Cavalcante. Parte I. Petrópolis: Vozes, 2005. 15ª edição. p. 11.

Bernardo Souto é bacharel em Letras/Crítica Literária pela Universidade Federal de Pernambuco e mestre em Literatura e Cultura: Estudos Comparados, pela Universidade Federal da Paraíba.