Escritor cearense não apenas domina a técnica, como também coloca a imaginação a serviço da moral

Por meio da obra de Karleno Bocarro, é possível compreender os males da crença no coletivismo e da muleta do escapismo | Foto: Arquivo Pessoal
Por meio da obra de Karleno Bocarro, é possível compreender os males da crença no coletivismo e da muleta do escapismo | Foto: Arquivo Pessoal

Adalberto de Queiroz
Especial para Opção Cultural

Quanto tempo ainda e quantos livros mais, e/ou produtos culturais em geral, incluindo o cinema, serão necessários para se quebrar os poderosos elos da corrente de uma literatura derivada das utopias ideológicas do século passado? Podem estes resistir por décadas?

Questionava-me no artigo anterior da série “Autores do século 21”, se a atenção de certa ficção foi por muito tempo provar, através de personagens nem sempre verossímeis, teses ideológicas, afirmando que, ao contrário do passado recente, jovens autores surgem diante do leitor como um novo alento: neles, a ficção ganha estado de arte do olhar e a narrativa dá ao leitor o prazer da leitura sem que este se veja presa a injunções ideológicas.

Ora, diante de “As almas que se quebram no chão”­, a dúvida se nos apresenta ao avesso: seria ele um paladino da antiutopia? Estaria o jovem autor com seu livro ora reescrito, revisado e ampliado em 2ª edição — dado ao sucesso da 1ª — criando o campo para a denúncia explícita da utopia e a criação de um novo campo, em tudo oposto àquele, mas que não deixa de ser “ideologizado”?

Essas dúvidas restam ao final da leitura e a revisão das notas do livro “As almas que se quebram no chão”.

Examinei atentamente cada uma das saídas e falo, neste texto, um pouco das emoções da leitura que o livro pode proporcionar ao leitor, tomando como ponto de partida uma afirmação de Emmanuel Lévinas, em “Significação e receptividade”, da obra “Humanismo do outro homem”:

“A experiência é uma leitura; a compreensão do sentido, uma exegese, uma hermenêutica e não uma intuição. Isto enquanto aquilo — a significação não é uma modificação trazida a um conteúdo existindo fora de toda linguagem. Tudo permanece numa linguagem ou num mundo, a estrutura do mundo assemelhando-se à ordem da linguagem com possibilidades que nenhum dicionário pode determinar. No isto enquanto aquilo, nem o isto, nem o aquilo se dão, imediatamente, fora do discurso. No exemplo do qual partimos, esta opacidade retangular e sólida não toma ulteriormente o sentido de livro, mas já é significante em seus elementos pretensamente sensíveis. Ela [a linguagem] decide sobre a luz, sobre o dia, remete ao sol que se levantou ou à lâmpada que foi iluminada; e a meus olhos também; remete como a solidez remete à minha mão; mas não somente como a órgãos que a apreendem num sujeito e que, por aí, se opõem de alguma forma ao objetivo apreendido; remete também como a seres que estão ao lado desta opacidade, no seio de um mundo, comum tanto a esta opacidade, a esta solidez, a estes olhos, a esta mão, como a mim mesmo como corpo. Em momento algum teria havido aí nascimento primeiro da significação a partir de um ser sem significação e fora de uma posição histórica em que a linguagem é falada. E, sem dúvida, é isto que se quis dizer quando [Heidegger] se nos ensinou que ‘a linguagem é a casa do Ser’”.

Peço a meus leitores que releiam o texto acima para que possamos seguir com o desafio de compreender a criação cultural (livro) — num gênero dito em decadência (o romance) e escrito por “um encarnado” chamado Bocarro. E faço um desafio similar ao do narrador do conto de Machado de Assis, no conto “O cônego ou metafísica do estilo”. Subamos à cabeça do autor:

“Subamos à cabeça do cônego. Upa! Cá estamos. Custou-te, não, leitor amigo? É para que não acredites nas pessoas que vão ao Corcovado, e dizem que ali a impressão da altura é tal, que o homem fica sendo coisa nenhuma. Opinião pânica e falsa, falsa como Judas e outros diamantes. Não creias tu nisso, leitor amado. Nem Corcovados, nem Himalaias valem muita coisa ao pé da tua cabeça, que os mede. Cá estamos. Olha bem que é a cabeça do cônego”.
Se não posso desafiar o leitor como o fez o mestre Machado, faço-o comigo mesmo, subo à cabeça do jovem escritor para entender os porquês, comos, e quês-tais o fizeram chegar à escrita desta obra tão importante para o novo desenho da ficção brasileira do século 21. Não costumo fazer isso, senão após a leitura da obra — há tempos não leio prefácios ou “orelhas” antes de ter lido o livro. Sei que é uma tentação fazê-lo e até um conselho precioso de Mortimer J. Adler, em “How to read a book”, mas quando tenho certeza da aquisição ou da vontade de ler um livro, evito-as. Primeiro leio, para só depois cotejar a receptividade que tive com a dos Outros — leitores, escritores, críticos.

Bocarro nasceu no Ceará e mudou-se para a Alemanha aos 23 anos de idade, onde permaneceu por oito anos. Graduou-se em História, Ciência da Cultura e Filosofia na Universidade Humboldt de Berlim e fez mestrado em Filosofia na mesma instituição, com uma dissertação sobre a estética em Nietzsche. Atualmente, vive em São Paulo. É professor universitário e traduziu do alemão a obra “Luvas Vermelhas”, do escritor romeno Eginald Schlattner.

Em entrevista a Paulo Briguet, do Jornal de Londrina, Bocarro diz: “Não podemos ignorar a finalidade estética da epígrafe num romance: ao lado do título, ela nos oferece uma boa indicação do que teremos pela frente”. E a epígrafe de “As almas” é um poema de Karl Marx:
“Menestrel, por que tocas tão encolerizado, por que olhas em torno tão selvagem? O que ferve o sangue, o que circula em ondas? Por que dilaceras o teu arco? O que ruge as ondas? Que elas, com um estrépito, se quebrem no rochedo, e a alma no chão do Inferno?”.

Está dada a largada à aventura e a considerar a epígrafe a resposta à pergunta sobre a contra-ideologia — seria um panfleto anti-comunista, ao apontar diretamente no ícone e autor do “Manifesto” o caminho do Mal a que estão destinados os que tomam o caminho do mestre-poeta (confesso que não sabia até então que o ideólogo alemão havia escrito poemas). Deixo a resposta a Jessé de Almeida Primo, crítico e autor da apresentação do romance:

Na obra, o centro do mal não decorre na vida da política do protagonista ou das demais personagens, mas sim de dentro da alma destes
Na obra, o centro do mal não decorre na vida da política do protagonista
ou das demais personagens, mas sim de dentro da alma destes

“(…) o romance que ora apresento, ‘As almas que se quebram no chão’, título este tirado de um poema de Marx que lhe serve de epígrafe, não pode ser reduzido a mero panfleto de oposição contra os vermelhos. Não é um comentário ao comunismo em si mesmo ou às esquerdas: é de fato uma narrativa com todas as virtudes literárias, em que as ideias são sugeridas não por construções teóricas, mas por acontecimentos”.

E estes são muitos e bem estruturados em torno de quatro personagens principais: Marco, Barad, Dias e Bocas, além dos secundários — as personagens femininas que vêm e vão, mas não passam desapercebidas ao leitor atento, por se insinuarem como a possibilidade de vida mais estável aos diletantes que percorrem as páginas desta história. Não vou tirar-lhes o prazer de descobrir as nuances de cada um, mesmo que opte por ler a “orelha” e a apresentação antes que o livro. Só ressalto que os nomes não foram escolhidos por acaso. Acertadamente, diz Primo sobre Marco Dilthey [um dos personagens]: “(…) apesar de ser um oportunista, não tem fibra para tirar vantagens dignas desse nome, ou, nas palavras de Machado de Assis, é ‘uma alma ardente e frouxa, nascida para desejar, não para vencer, uma espécie de condor, capaz de fitar o sol, mas sem asas para voar até lá’”. Ora, na cabeça do estudioso de alemão Bocarro, a escolha do sobrenome Dilthey não está ali por acaso — talvez quisesse ele que seu personagem fosse como seu inspirador o filósofo hermenêutico, psicólogo, historiador, sociólogo e pedagogo alemão Wilhelm Dilthey.

Marco, pobre homem, é desses personagens de que nos rimos, com quem choramos e, às vezes, tentamos dizer-lhe: “Ei, avante! Não faça isso. Não se entregue. Fuja, já! Salve suas economias amealhadas em terra estrangeira. Salve sua alma — antes que ela própria se quebre no chão, no pó do fracasso…”; tal como a personagem Andrea dele firmou a imagem inicial e jamais retocada: “(…) armer Kerl, pobre rapaz… meio perdido”. E assim ele segue, desorientado, perdido, rumo à poeira do chão, nas mais diversas situações que o destino coloca diante dele:

“Marco Dilthey sabia agora o seguinte: superestimara o amigo. Barad era, na verdade, um tolo tentando o impossível: a independência de qualquer vínculo social e pessoal, e com a consciência de sua fragilidade — o tédio a rondar a alma e o desespero a abrir a boca pronto a tragá-lo. E, apesar disso, orgulhoso. Uma presunção que para se manter em pé reprovava o modo de ser alheio ou admoestava os outros às suas experiências pessoais. Marco, ao contrário, amava a vida sem devotar fascínio à autodestruição; fiava-se nos seus portos seguros. Não era assim também um Bocas, um Gruba, uma Sandra, que sugavam a seiva do dia despreocupados com o amanhã, longe disso. Mas o que esperar daquela vida que levava em Berlim? Ah, ele faria um esforço para conquistar Andrea — e agora, depois que conhecera melhor Barad, com insistência — e, caso fracassasse, voltaria ao Brasil sem sentimentos de perdas ou lágrimas”.

Este pequeno traço da personalidade de Marco (e uma citação rápida à de Barad) não vem por acaso logo após a cena da descrição da palestra de Lula, em Berlim, numa viagem feita após queda do muro. Lula aparece no romance falando aos estudantes para explicar as causas da então recente derrota para Collor de Mello — com ênfase na busca de culpados e conspiradores, bem como “nas esperanças futuras…”. Naturalmente, “alemães herdeiros do antigo regime e brasileiros financiados pelo Partidão” estão na dita cena do livro, onde “apaixonados pelo Brasil, os alemães ‘tomavam a frente perguntando, apontando soluções para os infinitos problemas…’ e aparentemente ficavam satisfeitas com as respostas do homúnculo” — Lula é, pois, comparado a Hitler, como na passagem: “(…) uma personalidade política significativa. Um fenômeno, deve-se admitir, não tão estranho assim à cultura germânica. Nela se preza também o líder carismático: genial, demoníaco e de origem obscura…”.

À luz do filosofo Lévinas, conclui-se que a utopia dos personagens de Bocarro é o veneno que lhe causa um enorme estrago em sua ação como indivíduo | Foto: Divulgação
À luz do filosofo Lévinas, conclui-se que a utopia dos personagens de Bocarro é o veneno que lhe causa um enorme estrago em sua ação como indivíduo | Foto: Divulgação

O centro do mal, no entanto, não decorre na vida do protagonista da política e suas personagens. Vem de dentro da alma destes. Tomemos o principal príncipe do mal; Bocas já se sabe, pressupõe o rei da “boca” (de drogas). Sim, é o perfeito patife, o enganador que, para enganar, se faz sedutor; é o maquiavélico demônio que arrasta para sua caverna o pecador ansioso por sexo, drogas e aventuras etílicas. Você o verá, mas deverá confirmar que a principal droga que trafica é o mal que o personagem traz consigo, enraizado na alma, a utopia que em derrocada, da extinta União Soviética, onde Bocas estudou — um hedonista que se aproveita da queda do Muro de Ber­lim para se fazer “empresá­rio”/distribuidor de drogas, no lado oes­te de Berlim, usando seu charme pessoal e o suingue brasileiro para conquistar mulheres alemãs loucas por aventuras exóticas e eróticas; e para isso incorpora a seu time até mes­mo um “chef” de cozinha (Gruba).

Entre as drogas para amenizar a dor e ausência de vontade para enfrentar seu destino, os desajustados brigam com a cultura em que se veem inseridos como “imigrantes” (temporários/estudantes ou desocupados, como o velho militante comunista Dias). Difícil para o leitor vê-los incluídos numa cultura que gerou um místico como “Meister Eckhart”; um reformador “atormentado pelo pecado como Lutero”; algo que, segundo Bocarro, no passado longínquo da Alemanha da Idade Média, Marco gerou “aquela coisa da vontade, der Wille; a energia do conceito, der Wille zur Macht, a vontade de poder, que traspassa a alma alemã…” e que falta aos personagens brasileiros incapazes de jogar pontes sobre o caos (interior) e a incompreensão do momento histórico (exterior, também caótico e em transição — de regime, de hábitos, de sistema de governo).

Mas, recomendo que voltemos à cabeça do autor, e aí instavelmente assentados –— como deve ser uma viagem às alturas. Bocarro diz:

“A questão [de publicação] não é de sucesso ou fracasso, mas de necessidade. Eu não saberia viver sem a literatura. Ela é o ar que respiro. Mesmo assim, alguma forma de recompensa, para tantos sacrifícios, deve existir; alguém que almeja a sabedoria não deve morrer à míngua, ou de loucura. A publicação (finalmente) de meus romances torna o ar que respiro um pouco mais salubre, não? Pois bem, quando saiu ‘As Almas’, eu já tinha avançado 100 páginas [na escrita] de ‘O Advento’. O desafio era então colocar uma peça a mais para alcançar a altura do escritor perfeito. Quer dizer, eu não podia cair na insensatez de continuar retratando personagens envoltos numa existência romântica de recusa a si mesmos, do ‘conhece-te a ti mesmo’ socrático; que, ao darem importância a uma vida sem compromissos, abraçam a tolice como forma de vida”.

Os desajustados de seu romance inicial, que na verdade deve ser o quarto na tetratologia planejada pelo autor; e que segue agora em “O Advento”, livro que se encontra no prelo, são tipos cavernosos e que levam a vida pela metade. A história toda é mesmo como uma descrição de projetos frustrados de vidas em derrocada — como acertadamente nos adverte o prefaciador. Se Ortega y Gasset está certo sobre a força das circunstâncias na vida do ser humano, no caso das personagens de Bocarro, vemos sob o olhar crítico de Primo que, de fato, os personagens aqui “se tornam títeres das circunstâncias”. Por que as vidas não se realizam — os projetos desandam ao longo da história contada pelo romancista de forma segura (ou não claudicante, como a de seus personagens)? Porque, diz Ortega:

“Yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella no me salvo yo. Benefac loco illi quo natus es — lemos em la Biblia. Y en la escuela platónica se nos da como empresa de toda cultura, esta: ‘salvar las apariencias’, los fenómenos. Es decir, buscar el sentido de lo que nos rodea”.
“Bem-aventurado seja o lugar em que nasceste” não é citação bíblica; provavelmente Ortega se equivoca aqui, mas acerta no sentido. E, voltando, é preciso que o leitor vá adiante à questão pertinente à significação, pois que além da forma e da técnica bem dominadas é preciso encontrar o fundo exato do “chão” em que se quebram as almas imaginadas por Bocarro. Aprendemos com Lévinas que “a criação cultural não se acrescenta à receptividade, mas é imediatamente a sua outra face”. Ora, é possível, a partir da leitura de “As almas” concluir que a utopia que faz com que os personagens vivam uma vida incompleta é o veneno que lhe causa um enorme estrago em sua ação como indivíduo. À derrocada de uma solução coletiva, sob um regime que os sustentava como estudantes financiados pelo partido comunista, os personagens são como vespas ao redor da lâmpada do poste numa rua movimentada. O voo de que são capazes só o fazem como uma viagem para a débâcle [ruína], são como no poema da legenda “ondas que se quebram no rochedo” — com estrépito, “almas no chão do inferno”.

Não por acaso a percepção que fica a este leitor é a de que o livro de Bocarro serve-nos de boa lição para a compreensão dos males da crença no coletivismo e da muleta do escapismo. Se outra lição não tirasse o leitor desse tão movimentado romance, uma já valeria que é similar à história que nos conta Gustavo Corção, em “Lições de Abismo”. É a história de “As almas” similar ao que se dá em “A viagem ao centro da terra” (J. Verne), assim resumida por Corção:

“O sábio, prevendo os perigos da jornada e conhecendo os nervos delicados do sobrinho, teve a ideia de aproveitar dois ou três dias de permanência num porto da Dina­mar­ca, onde o navio fazia escala. Ha­via nessa cidade, em cima de abrupto penhasco, uma antiga torre de igreja servida por estreita escada exterior; e foi aí que o professor impôs ao infortunado sobrinho [o jovem Axel] um rigoroso treinamento contra as vertigens. Antes de descer às profundezas, ele ensinava a galgar as alturas, e a esses salutares exercícios dava o nome de lições de abismo”.
Eis-nos, caro leitor, diante dessa “casa do Ser”, diante da linguagem de um jovem autor do século 21, diante de um romance em que este não apenas domina a técnica, como também põe a imaginação a serviço da moral, onde o leitor é chamado a tomar partido de “ser ou não ser”, ao contrário de seu hamletiano protagonista Marco, perdido e necessitado de “Lições de Abismo” como essas.

Adalberto de Queiroz é empresário e escritor.