Que bobagem! O desprezo pela psicanálise de Natalia Pasternak e Carlos Orsi

20 agosto 2023 às 00h01

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Cristiano Pimenta
Especial para o Jornal Opção
O título do livro de Natalia Pasternak e Carlos Orsi, “Que bobagem! Pseudociências e Outros Absurdos Que Não Merecem Ser Levados a Sério” já diz a que veio. O livro se dedica não apenas a tentar demonstrar que todas as práticas de tratamentos elencadas no seu Sumário não são práticas científicas, quer dizer, que são práticas pseudocientíficas. Mais que isso, Astrologia, Homeopatia, Acupuntura, Curas Naturais, dentre outras, são “bobagens que não merecem ser levadas a sério”.
Dentre essas bobagens, pairando no mesmo nível dos “Discos voadores” e da “Paranormalidade”, está a Psicanálise. A expressão “Que bobagem!” foi colhida por Natalia da boca de uma mãe, numa festinha infantil, quando esta foi informada de como um remédio homeopático é feito: “Mas então não tem nada lá (nenhum medicamento)? É só água? Mas que bobagem!” (página 307) disse a mãe.

No que se refere à Psicanálise, os autores, em umas quinze páginas, supõem demonstrar que ela não passa de “uma Disneylândia discursiva, o algodão doce dos sofistas” (página 194). O conceito psicanalítico de inconsciente — não se sabe por que é chamado no livro de “inconsciente psicodinâmico” — é questionado como algo que, na verdade, “não existe”, e devido a essa carência “todo o empreendimento psicanalítico faz tanto sentido quanto hepatoscopia, a arte de prever o futuro examinando o fígado de animais sacrificados” (página 188). Como se vê por essas analogias, há um desprezo pela Psicanálise a ponto de o casal de autores se perguntar impressionado: “Como um sistema baseado numa lógica tão pueril pode ter se tornado tão popular, por quase um século, e entre tantas pessoas cultas, educadas e inteligentes?” (página 193). O casal aposta que essas quinze páginas poderão alertar os leitores incautos para que não venham a cair no “conto do vigário” psicanalítico.
Chama a atenção o modo como a relação de uma teoria com os dados da realidade, os dados empíricos, que a comprovam, ou não, são abordados nas argumentações do livro “Que bobagem!”: “Digamos que você queira mudar um aspecto bem concreto da sua realidade: o lugar onde se encontra. Você quer sair da sua cidade e ir a Paris. Não importa o quanto de elaboração teórica tente demonstrar que a diferença entre tapete voador e avião a jato é apenas uma questão de ‘paradigma’ ou ‘episteme’. O fato concreto é que as leis da Física (que guiam a construção e operação do aeroplano) são capazes de transportar seres humanos e bagagem até a Cidade Luz, e as leis que regem o tapete voador, sejam lá quais forem, não são. Energias curativas, bolinhas de açúcar mágicas, terapias que invocam os antepassados e maluquices inventadas sobre o poder avassalador dos desejos inconscientes operam, todas sob leis do tapete voador’…” (página 310).
Como se vê nesse exemplo, bastaria olhar para os “fatos concretos da realidade” para que você veja que os desejos inconscientes são maluquices inventadas que operam pelas “leis do tapete voador”. Assim, o processo educativo proposto pelos autores, além de muito fácil de ser realizado, é muito divertido. Bastará sempre olhar para a “evidência empírica relevante” para que todas as dúvidas cruciais sejam dissipadas: “Se uma pessoa diz que, no início do século XIX, a França teve um imperador chamado Napoleão Bonaparte, e outra nega essa afirmação, o dilema se resolve com apelo à evidência empírica relevante, tal como em qualquer outra atividade que se pretenda científica” (página 187).
Psicanálise e teoria da memória em Freud

Ainda bem que chegou o livro “Que bobagem!” para nos ensinar isso! Sem ele estaríamos na desorientação, tal como um negacionista! Mas a tentativa de depreciar a Psicanálise, mais especificamente a teoria da memória em Freud, chega ao ponto de se fazer um uso indevido do trabalho da neurocientista Cristina Alberini. Esse ponto do livro Que bobagem! foi desmascarado por Rogério Lerner, professor do Instituto de Psicologia da USP e responsável pela disciplina de pós-graduação intitulada “Ensaios Clínicos Randomizados e Estudos Neurocientíficos na Produção de Evidências em Psicanálise”.
Diz Rogério Lerner: “O trabalho da neurocientista Cristiaa Alberini merece figurar entre aqueles que mencionei acima (trabalhos científicos randomizados cujos resultados são favoráveis à psicanálise). Alberini é a única da lista que Pasternak e Orsi incluem em suas referências, ainda que numa nota de rodapé (a de número 24), quando o casal afirma o seguinte: ‘Hoje sabe-se que é altamente improvável que o cérebro seja capaz de preservar memórias de eventos ocorridos antes do início do terceiro ano de vida’ (página 327). Eles usam seu trabalho para argumentar contra hipóteses de Freud acerca do impacto que experiências infantis poderiam ter sobre a mente, particularmente sobre a memória, de seu paciente conhecido como ‘Homem dos Lobos’. Ocorre que Alberini cita Freud para apontar, em concordância com ele, que foi um dos primeiros a escrever sobre amnésia infantil e buscar, ainda que imprecisamente, uma explicação do seu mecanismo e do paradoxo de experiências emocionais não rememoradas terem um impacto na construção da mente e do sistema nervoso a longo prazo. Não se pensa hoje que aquilo que Freud propôs em 1914 ocorra literalmente como hipotetizou, mas que estava às voltas com a noção original de que experiências emocionalmente impactantes na infância têm consequências de longo prazo para a vida mental das pessoas”. (Que bobagem é o negacionismo de evidências científicas abundantes sobre psicanálise e psicoterapias psicodinâmicas!; Rogério Lerner; in Blog de Psicanalise, sbpsp)
Experiência clínica e transferência

Outro aspecto da psicanálise que é criticado por Pasternak e Orsi é a “experiência clínica”, que, desde Freud, se fundamenta na relação de transferência do paciente ao analista. O casal de autores afirma que essa experiência é uma “falácia”, “insuficiente”, “inconclusiva”, etc. No entanto, eles a definem de modo equivocado. Eles resumem a experiência analítica ao fato de que o analista interpreta os “sinais” do inconsciente, os sonhos, os lapsos, etc. A experiência consiste, pensam eles, no fato de que o analista, interpretando, é capaz de “trazer o inconsciente à luz”. A evidência clínica se sustentaria apenas na palavra do analista.
Mas o que ocorre na transferência é uma crença por parte do paciente na causalidade psíquica de seu sintoma. O paciente que procura um psicanalista, via de regra, é alguém que já desconfia, ou já está seguro de que exista uma causa para seu sintoma, e que essa causa não lhe é exterior. Ou seja, sabe que, de alguma forma, ele mesmo está implicado no seu sintoma, ele mesmo tem suas responsabilidades aí. Sabe que usar o recurso da medicação, por exemplo, ainda que eventualmente possa ajudar no apaziguamento de seus sintomas, poderia ser uma forma de se eximir dessa responsabilidade. É essa implicação de responsabilidade que permitirá que o tratamento ocorra. De fato, Freud, o desbravador do campo emergente da Psicanálise, comunicava a seus pacientes aquilo que ele julgava existir no inconsciente de seus pacientes. Mas ele mesmo passou a ser mais comedido nesse ponto, tal como ele diz em “Além do Princípio de Prazer”. Em Lacan isso vai mais longe, de modo que é o próprio paciente que passa a se encarregar de trazer seus próprios conteúdos inconsciente à luz. A participação do analista se torna muito mais pontual e discreta.
Gostaria, para concluir, de recorrer a uma vinheta clínica apontando aquilo que o tratamento analítico aborda. Uma paciente procura um analista porque seu casamento está em crise. Ela vive uma relação abusiva da qual não consegue sair. Seu marido a deprecia e a insulta cotidianamente. No tratamento, percorrendo a cadeia significante de sua história, tal como Lacan conceitualizou a “associação livre”, ela formula que seu pai, homem profundamente religioso, nutria pelas mulheres um desprezo inequívoco. Eis aí o que ficou marcado na memória sob a forma de um trauma e que emerge no tratamento sob a forma de sua verdade singular. O homem a quem ela, quando criança, amou profundamente, seu pai, a depreciava. Ela é levada então a formular uma correlação causal fundamental: a de que o homem que ela escolheu para se casar portava essa característica paterna essencial, a depreciação pelas mulheres. Mais precisamente, ela se dá conta de que se identificou com a ideia depreciada que seu pai fazia do que é ser uma mulher. Verdade dura de ser aceita, mas que surge acompanhada do sentimento de convicção. Uma parte fundamental da experiência analítica consiste nisso: descoberta e enfrentamento da sua própria verdade, a qual se impõe, quando surge, como um “fato concreto”. É a emergência dessa verdade reveladora que permitirá ao sujeito se desidentificar da concepção paterna de mulher e promover uma mudança profunda na realidade concreta de suas relações.
Cristiano Pimenta, psicanalista, é membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise. É graduado em Filosofia pela USP e mestre em Psicologia Clínica pela UnB. É colaborador do Jornal Opção.