Quando as qualidades constroem os estadistas
26 julho 2014 às 21h37
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Formado em Ciências Políticas pela Universidade Americana em Paris e mestre em Administração Pública pela Harvard Kennedy School, Luiz Felipe D’Ávila propôs-se a delinear a trajetória de grandes personalidades da política brasileira — do império até os nossos dias — que alçaram a condição de estadistas
Salatiel Soares Correia
Especial para o Jornal Opção
Um homem preso a uma cadeira de rodas no comando de uma poderosa nação do mundo nos tempos da Segunda Guerra Mundial. Sua incapacidade física não o impediu de vencer a si mesmo e olhar para adiante com o objetivo de conduzir seu país em meio às trevas.
Como se isso não bastasse, sua liderança foi capaz de construir instituições que moldaram um novo estilo de desenvolvimento na sua pátria. Basta observar a história desse país naquela época. Uma época em que os campos foram eletrificados, melhoraram-se os índices educacionais, desempregados conseguiram recuperar a autoestima por meio de empregos que uma nova realidade econômica a eles proporcionou.
Outro exemplo: um homem escuta a todos pacientemente. Seu carisma se torna o alicerce que une contrários em torno de uma causa: a guerra contra a escravidão. Para isso, na condição de líder maior da nação, visita pessoalmente os campos de guerra para, com sua presença, elevar o moral das tropas.
Os dois exemplos supradescritos aconteceram num mesmo país e em momentos muito difíceis para a nação. Nação que necessita de estadistas para, por meio deles, saber que rumo tomar. No primeiro caso, a vitória na Segunda Guerra Mundial alçou essa nação à condição de líder de uma nova ordem regida pelos valores do capitalismo. No segundo caso, outra guerra possibilitou a esse mesmo país vencer um verdadeiro apartheid entre seus próprios cidadãos: a guerra civil entre o norte, antiescravocrata, contra o sul, escravocrata, guerra que ceifou mais de um milhão de almas nesse país.
O país sobre o qual me refiro é os Estados Unidos da América. E os dois estadistas que conduziram esse país, num mar cheio de turbulências, rumo a um porto seguro foram Franklin Delano Roosevelt e Abraham Lincoln. Dois notáveis homens públicos cujas qualidades se propagaram pelo mundo afora.
Para entender a chegada dessas duas personalidades públicas a esse patamar é preciso entender os valores, princípios e caráter inerentes a cada num deles. Sem tais atributos não teriam eles contribuído para o fortalecimento das instituições de seu país. Não fossem esses atributos o verdadeiro sedimento estrutural de suas personalidades, teriam esses estadistas se vergado ao oportunismo momentâneo que as medidas em curto prazo proporcionam.
Mais que isso: não teriam exercido o lado mais salutar da liderança, que é a educação por meio do exemplo das sociedades por eles governadas. O legado deixado por Lincoln e Roosevelt transcendeu à fronteira dos Estados Unidos, visto que se tornaram símbolos de um valor que almeja a maioria dos povos do planeta: a liberdade que torna os homens mais iguais entre si.
É para tratar desse grupo seleto que o presidente do Centro de Liderança Política, Luiz Felipe D’Ávila, propôs-se a delinear a trajetória de grandes personalidades da política brasileira — do império até os nossos dias — que alçaram a condição de estadistas. Luiz Felipe é um estudioso do assunto com passagens acadêmicas em importantes centros de estudos na França e na meca das ciências políticas nos Estados Unidos: a Harvard Kennedy School.
A metodologia em que se apoia esse estudioso para delinear a trajetória de cada um de nossos estadistas foi desenvolvida por um nome de peso da economia mundial. Trata-se do professor de Harvard Joseph Nye. Para este, não vale a máxima de que os fins justificam os meios. Ao contrário: “Os meios empregados pelo líder para atingir seus objetivos são tão importantes quanto o resultado de suas ações”. Nesse sentido, é que se enquadra a solidão do poder, em que as decisões tomadas pelos homens públicos espelham o íntimo de seu ser que só o caráter revela. As mudanças advindas da boa política são aquelas que refletem não numa parte da sociedade, mas no todo.
A lista de estadistas proposta pelo autor exclui dois nomes considerados verdadeiros monstros sagrados no Brasil Republicano: Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek. Quanto a Getúlio, creio que a exclusão se deva ao aspecto ditatoria
l que seu governo, com o advento do Estado novo e a prática do populismo, promoveu como ação política. Juscelino talvez tenha sido excluído mais pelo defeito do que pelos méritos que deixou seu legado: a inflação. É altamente discutível essa exclusão, justificável para quem se ateve a uma metodologia em que se julga não só caráter, mas também aos benefícios que esses governos trouxeram para uma parcela da sociedade em detrimento do todo.
Os estadistas do império
O olhar de Luiz Felipe D’Ávila aponta para três expressivos nomes da política brasileira que alçaram a condição de estadistas nos tempos do Império: José Bonifácio de Andrada, Joaquim Nabuco e o imperador Dom Pedro II. Falemos sucintamente de cada um deles procurando, dentro da metodologia exposta, responder sobre o que eles fizeram em suas vidas públicas para alçarem o olimpo da história política do país.
Educado na França e Alemanha, José Bonifácio se tornou um mineralogista de renome. Sua sólida formação iluminista muito contribuiu para sua futura postura de fervoroso defensor da racionalidade no serviço público. Sempre foi avesso da politicagem. Este modo menor de fazer política ia de encontro as duas qualidades que defendeu em toda sua vida pública: de que a virtude do monarca e governantes esclarecidos deveriam andar juntas.
Foi por pensar e agir assim, num Brasil que tinha donos — cafeicultores, donos de engenho — que José Bonifácio não deixou de ganhar inimigos. Inimigos com os quais ele tinha reais dificuldades em lidar: “Sua dificuldade em lidar com adversários políticos tornou-se paranoica […] mandou prender, exilar e deportar os principais líderes da oposição, perseguiu jornais de oposição”, aponta o autor em seus escritos. Ser implacável com os adversários talvez, seja esse o único defeito do homem público que se tornou José Bonifácio.
Em sua vida pública, sempre, abraçou grandes causas, não se intimidando jamais em enfrentar com coragem a grande causa que muito incomodava as elites da época: a abolição da escravatura. Coerente com seus ideais, aboliu a escravidão em sua propriedade. Fez isso alicerçado na sua sólida formação iluminista e procurando, com seu exemplo, provar algo inimaginável no Brasil rural dos tempos da escravidão: de que o ganho de produtividade poderia ser obtido com a mão de obra livre e remunerada.
Próximo do imperador Dom Pedro I, procurou sempre, junto a este, defender princípios. Luiz Felipe D’Ávila nos conta, em seus escritos, que José Bonifácio deixou claro ao imperador o papel que deveria desempenhar no momento em que o país passava por revoltas nas províncias: “Defender os interesses do Brasil, preservar a unidade territorial da nação e fundar os impérios sobre os pilares da monarquia constitucional”.
Sua imensa liderança, expressa na capacidade de mobilização, foi decisiva para que o imperador decretasse a independência do Brasil de Portugal. O Patriarca da Independência (teria sido melhor: o arquiteto da independência) foi, no poder, um grande construtor de instituições.
Foi José Bonifácio que propôs (baseado nas ideias de Montesquieu) a divisão do poder constitucional em três poderes — executivo, legislativo e judiciário. “O Brasil deveria ter um governo central, eleito pelo povo, mas o poder executivo estaria subordinado à regência.” Aconselhava ele a quem sempre lhe dava ouvidos: Dom Pedro I. Foi também o patriarca da independência quem criou uma importante instituição no país: a Marinha.
Homem de caráter, avesso a adulações, pedia demissão do cargo no momento em que o imperador discordava de suas opiniões. A renúncia de Dom Pedro I foi um ato decisivo para a manutenção do império nas mãos de um sucessor de sangue. Nesse momento, o imperador mostrou em quem realmente confiava ao atribuir a José Bonifácio a tutela do pequeno Dom Pedro II, então, com 5 anos de idade.
Resumindo: visão de futuro, caráter, liderança para mobilizar e a defesa de grandes causas são muitas das virtudes que levaram o patriarca da independência ao patamar que hoje se encontra na história do país: o de estadista.
Joaquim Nabuco é outra personalidade da vida pública do país que se enquadra na metodologia desenvolvida pelo professor Nye e aplicada por Luiz Felipe D’Ávila. Nabuco se notabilizou na cena política do Brasil Império pela sua obstinada luta contra a escravidão.
Na condição de membro da elite do país (era filho de um dos mais notáveis ministros do império), o futuro embaixador do Brasil nos Estados Unidos foi considerado um traidor de sua classe social. Nabuco não se intimidou com as adversidades. Estadistas defendem princípios e em nome destes se nutrem de coragem para enfrentar obstáculos. Nabuco era indubitavelmente um homem de coragem.
Via ele a luta contra a escravidão não como uma luta entre classes sociais, mas como algo verdadeiramente maior: o direito que todo ser humano tem pela liberdade. Na sua primeira infância, quando vivida num engenho em Pernambuco, convivia e brincava com negros. Recordando essa época, relatava o peso que a escravidão imprimia no seu modo de ver e sentir o mundo: “Eu estava uma tarde sentado no patamar da escada exterior da casa [no engenho], quando vejo precipitar-se para mim um jovem negro, de cerca de 18 anos, o qual se abraça aos meus pés suplicando-me, pelo amor de Deus, que o fizesse comprar por minha madrinha para me servir. Ele vinha das vizinhanças, procurando mudar de senhor, porque o dele, dizia-me, o castigava, e ele tinha fugido com o risco de vida. Foi este o traço inesperado que me descobriu a natureza da instituição com a qual eu vivera até então familiarmente, sem suspeitar a dor que ela me ocultava”.
Nabuco foi um cidadão do mundo. Viveu por muito tempo na Europa e era para lá que sempre ia quando a política brasileira lhe causava desilusões. Iniciou na vida diplomática se enveredando posteriormente para a política partidária que o elegeu deputado pelo seu Estado natal. Foi um exímio orador. A respeito de suas qualidades oratórias relata Luiz Felipe D’Ávila em seus escritos: “Seus comícios tornaram-se um acontecimento político e social. Mulheres, jovens, operários, escravos libertos, profissionais liberais, burocratas, comerciantes e aristocratas esclarecidos lotavam teatros, clubes, praças e ruas para ouvi-lo discursar e disparar diabrites contra a escravidão”.
A abolição da escravatura foi o grande momento na vida de Joaquim Nabuco. Era ele a figura mais expressiva desse movimento. A proclamação da República e a república de caudilhos que se instalou no país depois foram seus grandes desgostos. E quando se desgostava o caminho de Joaquim Nabuco era um só: a Europa.
Viveu lá e por lá se casou. Retornou ao Brasil para findar onde iniciou sua vida pública: na carreira diplomática. Seu amigo Barão do Rio Branco o nomeou para ser embaixador do Brasil nos Estados Unidos. Faleceu na América do Norte servindo a seu país.
O legado deixado por Joaquim Nabuco se identifica com as qualidades que o levaram ao patamar dos grandes estadistas do país: inabalável caráter, o abraçar de grandes causas, a capacidade de liderar em momentos de adversidade sem se preocupar com os reveses momentâneos da impopularidade. Nabuco personificou a luta de um país em busca do valor supremo de ser livre. Por essa razão, foi ele um grande estadista.
Já o último estadista do império foi o próprio imperador Dom Pedro II. Falemos um pouco de sua longa trajetória. Dom Pedro II foi o governante que mais tempo comandou os destinos do Brasil. Reinou por quase meio século. Foi um estadista de reconhecidas virtudes. Encarava a monarquia de uma maneira diferente da maioria de seus pares: não como um poder divino ou pela vontade de uma elite iluminista, mas pela soberana vontade do povo. E o povo verdadeiramente amava aquela figura do monarca virtuoso e cidadão exemplar. Conta-nos o autor, em seus escritos, que “o respeito e o carinho pelo imperador eram manifestados nas ruas, nas inspeções às repartições públicas e nas cidades que visitava. Sua fama de monarca sábio, constitucional e exemplar espalhou-se pelo mundo”. Luiz Filipe D’Ávila descreve o imperador como sendo a antítese do pai: “Apesar da timidez, provou ser um monarca sério, guiado por um senso de dever público que inibia a aproximação das pessoas que desejavam pedir-lhe favores, benesses e privilégios”.
Seu estilo de governar era de absoluto respeito pelas instituições. O poder moderador do imperador se colocava acima dos partidos políticos. Dom Pedro achava a alternância de poder algo bastante salutar numa monarquia constitucionalista. Criou um conselho de notáveis e por meio deste incentivava o debate das questões que exigia a realidade da época. Luiz Felipe d’Avila revela que “como timoneiro da nação [Dom Pedro], contribuiu para o fortalecimento das instituições políticas, do Estado de Direito, das liberdades individuais e da construção da civilização brasileira”. O imperador era defensor da liberdade de imprensa. Julgava que só uma imprensa livre o permitiria sentir o real sentimento do povo.
Na condição de amante das letras e das artes [falava 10 idiomas], o monarca promoveu o renascimento cultural do Rio de Janeiro. Conheceu bem a realidade brasileira ante as várias viagens que implementou pelo interior do Brasil. Entretanto sua imensa cultura contrastava com seu pouco conhecimento de economia. Quem diretamente sentiu essa escassez de conhecimento foi o maior empreendedor dos tempos do Império: o notável Barão de Mauá. Mauá construiu um império que acabou ruindo ante a falta de apoio do Império. Também pudera: Dom Pedro vivenciava o gigantismo estatal, enquanto que o Barão pendia pelo capitalismo empreendedor que eleva a produtividade.
O espírito cosmopolita do imperador se manifestava nas longas viagens que fazia pelo mundo afora. Conheceu, assim, não só grande parte da Europa e o Egito, mas também os Estados Unidos. Nessas viagens, tornou-se amigo de cientistas como Thomas Edison, inventor da lâmpada elétrica, e de escritores de renome mundial como foi Victor Hugo. Certamente, a convivência do imperador com os ares do mundo foi decisiva para chegada da energia elétrica no Brasil. Foi nos tempos do reinado de Dom Pedro II que se construiu a primeira usina hidrelétrica no país: a de Marmelos, em Juiz de Fora.
Estadistas a nação conhece nos momentos de dor. Várias revoltas regionais ocorreram durante seu reinado. A Sabinada, na Bahia; a Balaiada, no Maranhão e, a mais duradora delas, a dos Farrapos, no Rio Grande do Sul, todas foram derrotadas pelo poder central, tendo no seu comando um imperador que sabia dar rumo a situações políticas delicadas.
O país consolidou mais ainda a admiração pelo seu líder maior num dos momentos mais trágicos de sua história: a Guerra do Paraguai, guerra essa que ceifou a vida de mais de 100 mil brasileiros. Dom Pedro se fez presente não só nos campos de batalha, dessa forma, elevando o moral das tropas, como também nas decisões estratégicas que tomava junto com o grande herói desse conflito: Luís Alves de Lima e Silva, futuro Duque de Caxias.
O findar desse conflito acabou enfraquecendo o Império e o que disso resultou: a proclamação da República. Caiu o imperador de pé. Recusou até a pensão que os militares queriam lhe conceder no exílio. Veio a falecer em Paris, num hotel de modestas instalações. Seus feitos de grande estadista já eram há muito conhecidos pelo mundo afora. Prova disso foram as mais de 200 mil pessoas que compareceram ao seu funeral numa ambiência cosmopolita que Dom Pedro II tanto amava.
Os estadistas da Primeira República
O olhar de Luiz Felipe D’Ávila evidencia três presidentes da chamada Primeira República no patamar de estadistas: Prudente de Morais, Campos Salles e Rodrigues Alves. Esses se constituíam num trio de paulistas genuínos, representantes que eram dos ideais defendidos por Dom Pedro II.
A chegada de Prudente de Morais à presidência da República estava relacionada à elite que esse paulista diretamente representava: os cafeicultores de São Paulo. O patamar de estadista a ele atribuído pelo autor condiz com a grande causa defendida pelo presidente no momento em que exerceu o cargo máximo da nação: a defesa do regime democrático.
Prudente de Morais foi um árduo defensor da Constituição e da liberdade do Congresso. Para ele, vitórias e derrotas no Legislativo faziam parte do jogo democrático. Durante seu governo, foram solucionados dois grandes conflitos da história política brasileira: a Revolta Federalista do Rio Grande do Sul e o de Canudos. Questão das mais polêmicas, a Guerra de Canudos não deixa de ser uma nódoa na biografia deste estadista, na medida em que ceifou a vida de milhares de brasileiros fustigados pela extrema desigualdade social no país.
Outra vitória de seu governo se deu no âmbito da política externa mediante a resolução, por meios diplomáticos, das disputas com a França em torno do hoje Estado do Amapá e a contenda com a Argentina quanto ao território das Missões. Muito da resolução dessas disputas se deveu à habilidade do coringa da política externa brasileira de muitos governos, ou seja, o Barão do Rio Branco.
O governo de Prudente de Morais não ficou imune de cometer equívocos. Nesse sentido, vale ressaltar a decretação do estado de sítio, quando seu governo mandou para a prisão vários adversários políticos. Além disso, durante sua gestão, ocorreu o fechamento de jornais de oposição.
Prudente Morais foi, sem dúvida, um de nossos estadistas. Como atesta Luiz Felipe D’Ávila, “conquistara o povo, vencera os radicais por meio de seu exemplo pessoal, de cumprimento da lei, do respeito às instituições e à Constituição. A partir daquele instante, estava encerrada a possibilidade de florianistas e jacobinos articularem um golpe”. Uma última ressalva: os florianistas e jacobinos brasileiros eram aqueles que viam a figura do marechal Floriano Peixoto como uma espécie de salvador da pátria. Incluíam-se nestes grupos militares adeptos do positivismo e as classes médias e menos aquinhoadas da população dependentes dos favores do Estado. Posto isso, falemos agora de Campos Salles.
Manuel Ferraz de Campos Salles foi uma espécie de Fernando Henrique Cardoso dos tempos da Primeira República. Dois problemas cruciais asfixiavam a realidade brasileira quando ele assumiu o governo: a inflação e a dívida externa. A entrada desse paulista de Campinas na galeria dos grandes estadistas brasileiros, como proposto por Luiz Felipe D’Ávila, deve-se ao fato de ele ter percebido a importância da estabilização da economia e ter lutado com tenacidade para estabilizá-la, mesmo que isso lhe custasse o que veio a custar quando ele deixou a presidência: a perda de popularidade. Campos Salles saiu vaiado pela população, mas deixou as finanças públicas do país em ordem. Estadistas são conscientes de que podem pagar um preço no curto prazo, mas movido por sua convicções se atêm aos objetivos estratégicos que mudam a realidade da sociedade por eles governada. Campos Salles era um homem assim.
O êxito da política econômica de seu governo se deve às qualidades de sua liderança do processo político. Sua fé inabalável na economia de mercado, aliada à consciência que ele teve de que crenças e valores necessitavam ser mudados, foi fundamental para o êxito de seu governo. Além disso, o presidente teve a sabedoria na escolha de auxiliares e a coragem para enfrentar a insatisfação de grupos poderosos como era o caso dos banqueiros e os industriais.
Para garantir a governabilidade, Campos Salles fez um pacto político com os estados. De um lado, esse pacto assegurava que o governo federal aceitaria o poder absoluto dos governadores em seus Estados; de outro, estes se comprometiam a influenciar seus liderados para que votassem favoravelmente nas medidas presidenciais no congresso.
Quanto à governabilidade, não resta dúvida que ela garantiu o necessário apoio político para as medidas impopulares que veriam a ser tomadas; de outro, fomentou o poder das oligarquias regionais que, anos mais tarde, eclodiria no movimento político que mudaria os rumos políticos do país, assim, sepultando de vez a chamada Primeira República; a Revolução de 1930.
Encerramos o que temos a dizer do governo Campos Salles com as palavras de Luiz Felipe D’Ávila: “Campos Salles era um Estadista pragmático, habilidoso articulador político e um homem prático e objetivo. Era um governante realista, que mensurava o êxito de sua administração de acordo com a eficácia de suas políticas públicas e a eficiência do seu governo em implementá-las […] sua preocupação era com o presente e, como presidente, sua atuação deveria se concentrar na busca de soluções para uma nação à beira da falência, com os cofres públicos vazios e incapaz de honrar suas obrigações domésticas e internacionais”.
Rodrigues Alves é o último estadista que encerra o ciclo dos grandes homens públicos da Primeira República. Falemos, então, um pouco dele e de seu governo. O ex-presidente da província de São Paulo foi um dos mais habilitados homens públicos a ocupar o cargo de presidente da República. Seu elevado conhecimento das questões públicas, aliado à sua conhecida habilidade política e competência administrativa, voltou-se para um objetivo só: o de implementar políticas de Estado e fortalecer as instituições.
Para atingir esse objetivo, Rodrigues Alves soube não só mobilizar a sociedade, como também demonstrou sabedoria na escolha de seus auxiliares. Nesse governo, o goiano Leopoldo de Bulhões se constituiu num dos homens públicos mais habilitados a ocupar o cargo de ministro da Fazenda. A dupla Rodrigues Alves — Leopoldo de Bulhões enfrentou pressões da poderosa classe dos cafeicultores no sentido de que o câmbio fosse desvalorizado, mas o câmbio não foi desvalorizado em nome da política de proteção do café porque a sociedade era vista como um todo, pois estadistas governam para o todo da população e não apenas para uma parte dela.
Durante a gestão de Rodrigues Alves foi que o sanitarista Oswaldo Cruz derrotou de vez uma praga que assolava a vida da sociedade carioca: a febre amarela. Foi também no transcorrer de sua gestão que outro auxiliar de grande talento do presidente, Pereira Passos, então prefeito do Rio de Janeiro, edificou grandes obras públicas que mudaram as feições da capital federal. Mas nada disso passou sem despertar a convulsão social. Da mesma forma que Prudente, Rodrigues Alves reprimiu violentamente a oposição da população pobre que se irrompeu contra a forma ditatorial com que o governo transformou a capital do país, e isso também não pode ser esquecido sem faltar com a verdade dos fatos.
No âmbito da política externa, o presidente contou com o talento do maior nome de todos os tempos da política externa brasileira: o barão do Rio Branco. Nesse sentido, a liderança do presidente e do barão foi decisiva na definição das fronteiras com a Bolívia (em 1903). Além disso, foi nos tempos de Rodrigues Alves que os Estados Unidos se tornaram o mais importante parceiro comercial do Brasil. O hoje reconhecido preparo da burocracia do Itamaraty muito se deve aos esforços e vontade política do governo Rodrigues Alves, materializados pelo barão do Rio Branco. Creio que seja desnecessário delinearmos mais fatos a respeito dessa bem-sucedida liderança que governou o país. Liderança cujos princípios e valores que caracterizam verdadeiros homens de Estado se fizeram presentes na figura de Rodrigues Alves, tornando-o um grande homem público. E os grandes homens públicos a história da pátria reconhece.
O estadista das convicções
Oswaldo Aranha foi um político incomum. Oriundo do interior do Rio Grande do Sul, Aranha fez seus primeiros estudos em São Leopoldo, posteriormente se graduou em Direito no Rio de Janeiro. Após a graduação, fez estágio em Paris.
Sua imersão na política se deu quando ele voltou para o Rio Grande do Sul e aproximou-se do maior líder regional de seu estado: Borges de Medeiros. Nas lutas entre chimangos (partidários de Borges de Medeiros) e maragatos (contra o líder gaúcho), Oswaldo Aranha, homem de coragem que era, foi baleado. Nessa época, nasceu uma amizade entre ele e uma personalidade que fez história no Brasil Republicano: Getúlio Vargas.
O movimento que levou Getúlio Vargas ao poder — a Revolução de 1930 — teve na figura de Oswaldo Aranha seu grande arquiteto. Aranha seguiu Getúlio por toda sua a vida. Foi fiel à raposa dos pampas, sem jamais ser a ele submisso. Dele discordou várias vezes e, quando discordava, o caminho para ele era um só: entregar o cargo. Aliás, ocupar cargos era algo que Oswaldo Aranha não se preocupava. Encarava as opções políticas como resultado dos princípios. O arquiteto da Revolução de 1930 era tido como um interlocutor confiável tanto pelos aliados tenentistas quanto pelos adversários liberais. Sua habilidade foi extremamente útil a Getúlio nas articulações políticas e na resolução de conflitos.
Seu caráter mostrou solidez em momentos de muita tensão na vida política do país: na defesa pela democracia num país que rumava para a ditadura do Estado Novo, na defesa do alinhamento com os Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial, num momento em que os militares flertavam com o fascismo e o nazismo; nos conflitos em São Paulo, que eclodiram na Revolução de 1932.
Próximo do presidente Roosevelt, Oswaldo Aranha foi um homem público muito respeitado nos Estados Unidos e nos quatro cantos do planeta. Muito disso se deve ao fato de ele ter sido escolhido para ocupar um cargo jamais ocupado por um brasileiro em âmbito internacional: o de presidente da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) que criou o Estado de Israel.
Encerro estas linhas a respeito desse grande estadista com as justificativas de Luiz Fernando D’Ávila de porque seus estudos colocam Oswaldo Aranha nesse patamar e Getúlio não. “O episódio[pedido de demissão de Oswaldo Aranha no momento em que o Estado Novo mandou fechar uma sociedade que defendia a democracia: a Sociedade Amigos da América] revela a diferença entre o estadista e o caudilho. Para Aranha, a política era um meio de colaborar com a construção de uma nação livre e soberana, na qual imperasse a democracia. Para Vargas, a política era um meio de se manter no poder a qualquer custo, não importava se fosse preciso sacrificar os princípios, manipular as instituições e trair os amigos. Aranha acreditava nas virtudes do livre arbítrio, do indivíduo e das instituições; Vargas considerava legítima a manipulação de indivíduos e das instituições para atingir o que considerava ser o ‘bem comum’. Aranha acreditava no Estado de Direito; Vargas entendia que o presidente da República tinha o direito de estar acima das leis por saber o que era o melhor para o país. Aranha era um estadista de convicções; Vargas era um político de conveniências. Aranha pensava na nação; Vargas pensava em objetivos imediatistas e eleitoreiros que garantissem sua popularidade e sua perpetuação no poder.”
Falemos agora de outro grande estadista de nossa história política: Ulisses Guimarães. Ulysses Guimarães foi o Moisés dos estadistas brasileiros. Assim como o personagem bíblico que conduziu seu povo à terra prometida, mas morreu quando a avistou, Ulysses foi o grande timoneiro que liderou o país rumo à abertura democrática, mas que nunca chegou onde certamente merecia chegar: na Presidência da República. O comandante das Diretas-já gostava mesmo era da atividade política, sem ter apego pelos cargos públicos.
Mostrou seu amor às grandes causas, descompromissado de cargos. No momento do falecimento de Tancredo Neves, naquela ocasião, todos o viam e o queriam na presidência. Todos, menos ele, que acabou optando por José Sarney em nome de algo maior que era o respeito pelas instituições e pela normalidade democrática do país. “Ulysses não estava na arena política para conquistar cargos políticos nem para desfrutar das regalias do poder. Estava na política para resgatar a democracia e a liberdade que haviam sido sufocadas pelo regime autoritário”, enfatiza Luiz Felipe D’Ávila.
Estadistas se embevecem de valores para enfrentar mares turbulentos. Além de paciente, corajoso e resistente com os adversários do regime democrático, Ulysses Guimarães sempre foi um homem aberto ao diálogo. Na condição de grande estrategista, encarava a política como um jogo de xadrez para assim lidar com os adversários. Como um Dom Quixote, percorreu o país com sua anticandidatura à presidência da República, num momento em que só a coragem e o poder das convicções enfrentariam de peito aberto o autoritarismo dos militares.
Num desses momentos, nosso Dom Quixote enfrentou, em Salvador, toda a arbitrariedade do regime quando tentaram impedir sua entrada na sede do partido. “Vou entrar de qualquer jeito. É uma arbitrariedade sem limites”, disse ele. Luiz Felipe d’ Ávila nos conta que “Ulysses, seguido de Tancredo Neves, Freitas Nobre e mais uma dezena de membros do MDB, entrou na praça, em frente ao teatro Castro Alves, onde havia 500 policiais armados de fuzis e cachorros da PM. Começaram a caminhada em direção ao diretório do MDB, quando foram interrompidos por um oficial e soldados com cachorros, que ordenaram que parassem imediatamente”. Ante ao ocorrido, Ulysses não se conteve e esbravejou: “Respeitem o líder da oposição!”. Fez isso removendo as mãos do fuzil que o oficial lhe apontava.
E assim era Ulysses Guimarães. Olhava sempre adiante, nunca pensando no oportunismo em curto prazo, sempre, voltado para si mesmo, mas no futuro do país. As virtudes e o caráter do líder da oposição à ditadura o colocam no patamar dos estadistas brasileiros. A coragem e a persistência na luta pela redemocratização do país, a anticandidatura de 1973 à presidência da República, as Diretas-já, o apoio à posse de José Sarney e a escolha de Tancredo Neves, num momento em que ele era o candidato natural a chefe maior da nação brasileira, denotam o caráter e a grandeza do modo de fazer política de Ulysses Guimarães.
O estadista da globalização
Fernando Henrique Cardoso é o último homem público que o olhar de Luiz Felipe D’Ávila alça à condição de estadista. Vejamos o porquê. A chegada de Fernando Henrique Cardoso ao Ministério da Fazenda se deu nos exuberantes anos de 1990, num momento histórico em que se impunha nova realidade que colocava em xeque os valores do Estado patrimonialista brasileiro: a globalização.
A situação de desordem das contas públicas brasileiras se expressava na inflação que sinalizava ultrapassar a espantosa taxa de 2.000% ao ano. Vale ressaltar que Fernando Henrique Cardoso já havia percebido o início dessa nova ordem mundial no início dos anos de 1960. Nessa época, ele desenvolveu uma pesquisa que se materializou num livro que impulsionaria sua carreira acadêmica. Falo do clássico “Desenvolvimento e Dependência da América Latina”.
Portanto, tinha plena consciência dos enormes desafios que deveria enfrentar, como também era consciente dos dividendos políticos que teria caso sua epopeia em torno da estabilização da economia fosse coroada com êxito.
Enfrentar desafios dessa natureza requer qualidades típicas de estadistas. São em momentos como esses que a coragem se faz necessária para contrapor-se aos poderosos grupos detentores de privilégios. Além da coragem é fundamental, num processo de estabilização, que um ator envolvido no sucesso do Plano Real fosse convencido: a sociedade. Quanto a isso nos diz o próprio FHC que “abrigava só uma fundamental certeza, de que só um programa que pudesse ser explicado e compreendido pelas pessoas seria capaz de derrubar a inflação de forma duradoura e colocar em marcha a reorganização do Estado brasileiro”.
São os valores pessoais dos estadistas que se tornam o verdadeiro cimento e lhes impedem de fraquejar num momento em que as medidas impopulares se tornam um obstáculo a ser enfrentado. Sem firmeza de propósitos, o governante fica fadado a atender demandas em curto prazo e em detrimento daquelas em longo prazo.
Luiz Felipe D’Ávila nos aponta, em seus escritos, algumas qualidades de FHC que creio serem importantes para entender porque o Plano Real não se tornou mais um fracasso anunciado. São suas palavras: “Ele [FHC] foi um dos ministros que conquistaram a confiança do presidente da República, e foi quem o persuadiu a apoiar o Plano Real. Fernando Henrique possui a virtude de saber escutar e compreender rapidamente a questão que aflige seu interlocutor. Encontra sempre uma brecha para dizer uma frase espirituosa ou fazer um comentário inteligente, seguido de um sorriso amigável. O interlocutor se sente à vontade e logo se estabelece uma empatia. Quando precisa ser mais contundente ou assertivo, prefere recorrer às sutilezas do humor e da ironia, mas raramente apela para a imposição ou ultimato”.
Acrescento, ao que nos diz o autor, algo fundamental que muito assemelha FHC a outro grande presidente que, infelizmente, o olhar de Luiz Felipe D’Ávila não contempla na sua lista de estadistas: Juscelino Kubitschek. Ambos criaram uma estrutura paralela repleta de cérebros para implementar seus projetos. Para isso, JK contou, entre outros, com nomes do quilate de Roberto Campos, Celso Furtado, Lucas Lopes. FHC teve no seu time de cérebros muitos dos mais renomados economistas do país: Pedro Malan, Edmar Bacha, Gustavo Franco, Armínio Fraga, Pérsio Arida, entre outros, que construíram e gerenciaram a mudança de patamar de uma economia inflacionária para uma economia estabilizada.
Estou certo de que sem um comandante com qualidades de estadista que conhecia e compreendia os efeitos de uma economia globalizada, dificilmente teríamos chegado a um porto seguro como chegamos. A grande mudança cultural que veio a ocorrer foi de sairmos de um Estado patrimonialista e caminharmos para um Estado mais eficiente, como assim exigia a nova ordem de uma economia globalizada.
A criação de instituições mais voltadas para a regulação do que para a produção foram fundamentais para a concepção de outro tipo de Estado na era FHC. Não custa lembrar que foi durante seus dois mandatos que o país obteve consideráveis avanços na saúde e numa área muito pouco atendida por vários governos que lhe antecederam: o ensino fundamental.
Estadistas se conhecem nos momentos de crise, em que parcela substancial da sociedade volta sua ira contra governos. Nesse sentido, o possível apagão de energia elétrica que não ocorreu se deveu à maneira competente como o governo gerenciou a crise. Quanto a isso, valeu não só o poder de comunicação com a sociedade, como a tomada de medidas objetivas como a redução em 20% do consumo de eletricidade. A sociedade soube responder a esse chamamento do governo de redução do consumo.
Enfim, creio que o olhar de Luiz Felipe D’Ávila acerta ao colocar FHC na lista dos grandes estadistas brasileiros. Sua liderança teve capacidade de diagnosticar um momento histórico e coragem para mudar valores culturais que sempre contrariam privilégios. Além disso, é inegável a capacidade que teve Fernando Henrique Cardoso de liderar gente competente rumo à construção de uma nova realidade mais condizente com uma nova ordem mundial.
Ao encerrar estes escritos, deixo mais uma vez expresso meu único lamento: Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek têm história e realizações para estarem no patamar de grandes estadistas do país. Entretanto, ante a metodologia que explicita o autor, pela qual não vale a máxima de que os fins justificam os meios, entendo a exclusão, mesmo que esse entendimento não signifique, pelo menos de minha parte, uma concordância com seu ponto de vista.
Salatiel Soares Correia é crítico literário e mestre em Planejamento Energético pela Unicamp.