À procura dos fantasmas que somos

17 janeiro 2015 às 13h14

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No estupendo “Enquanto Deus não está olhando”, Débora Ferraz retrata a busca de uma jovem pelo pai, que acaba por desvendar os anseios e os vazios de uma geração

Sérgio Tavares
Especial para o Jornal Opção
Lá pela metade do romance autobiográfico “A morte do pai”, o escritor norueguês Karl Ove Knausgård avança pelos veios da literatura ante o insucesso de lidar com a vida, sem o subterfúgio que apenas a ficção oferta. “Por muitos anos, eu tentara escrever sobre meu pai, mas jamais conseguira, decerto porque o tema era próximo demais da minha vida e, portanto, nada fácil de transpor para outra forma, o que, naturalmente, é um pré-requisito da literatura. É sua única lei: tudo deve se sujeitar à forma. Se qualquer um dos outros elementos literários for mais forte que a forma, como o estilo, a trama, o tema, se algum deles prevalecer sobre a forma, o resultado será insatisfatório. (…) A força do tema e do estilo deve ser destruída para que possa surgir literatura. É a essa destruição que chamamos ‘escrever’. Escrever é mais destruir do que criar”.
Knausgård já era um autor consagrado, quando chegou a esse raciocínio no primeiro volume da série “Minha luta”, em que remonta, com fúria romanesca, um tempo incinerado. Trocando em miúdos, o que o escritor afirma é que, tal qual a vida, a boa literatura carece de astúcia e de técnica. Agora a literatura de alta qualidade cobra coragem, portanto desmantelar o passado é a única forma de decifrá-lo.
Isso, percebido nos andaimes da construção humana, chama-se maturidade. Fitar sobre os ombros a dor pretérita e ter força para significá-la por meio da escrita. Não é para qualquer um, como atenta Knausgård, o narrador-personagem. E que causaria, no mínimo, espanto, caso associado a uma autora jovem em seu primeiro romance. Contudo, findada a leitura de “Enquanto Deus não está olhando”, não resta dúvida de que a jornalista pernambucana Débora Ferraz é uma escritora de muita coragem.
Seu livro é uma experiência demolidora de escoras internas e externas do universo que torneia. Rompe o ciclo de novos autores que visitam autores que visitam autores clássicos, a fim de gestar um subproduto dessa operação. Não se filia a nenhum gênero literário específico, fragmentando a própria estrutura narrativa. Detona o papel passivo do leitor, cobrando-lhe participação na montagem de um puzzle movido por idas e voltas temporais. E é dessa composição, desse “mosaico embaçado de água e sombras coloridas”, que surge um dos melhores títulos lançados em 2014, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura na categoria romance.
A trama acompanha Érica, uma jovem com uma mão dada à adolescência e a outra à vida adulta, com talento para as artes plásticas, mas que trabalha, em “piloto automático”, numa agência de publicidade. Ela está à procura do pai, tentando desvendar seu paradeiro. E, para tanto, conta com a companhia de Vinícius, um amigo que retornou há pouco a sua vida, cuja lealdade insinua um interesse além da zona de amizade.
Ambos, então, tomam um ônibus rumo ao sertão nordestino, o cenário que deslinda os universos geográfico e íntimo do desaparecido e, de relatos que trazem à luz recortes antigos, descobrem uma família marcada por desaparições e orfandades, que por trás dessa ausência não há “uma árvore genealógica, mas uma imensa linhagem de vácuos”. Buscar o pai é avançar numa desclaridade povoada por fantasmas.
Narrada em primeira pessoa, a história é composta por fragmentos de observação fincados em saltos temporais, encontrando em trechos de um diário a voz que humaniza as angústias e os devaneios não só da protagonista, mas daqueles afetados pelo sumiço. A mãe “que parece ter emagrecido uns cinco quilos e envelhecido uns dez anos”, o irmão caçula inerte, aferrado à programação da tevê. Todos tomados pela falta absurda de um patriarca austero, doente por conta do alcoolismo e resistente ao tratamento médico. “Eu observava, pelo retrovisor, os olhos impacientes dele ao volante, sentada no banco de trás. Um cartum: Família sai de férias. Ele é o pai impaciente. Eu sou a filha rebelde. Seria isso, não fosse por um detalhe: uma névoa de fios do meu cabelo nos envolvia e revoava entre nós. Porcaria de cabelos voando! (…) Tenho ódio desses cabelos, ele gritou”.
Sendo assim, o que legitima essa fratura do arranjo familiar, o silêncio imperioso? O que é esse liame que faz com que uma filha saia à caça de um pai rude que a abandonou, que abandonou a todos misteriosamente?
O suspense é mantido até o fim da primeira parte, quando uma revelação reconfigura completamente a estrutura do livro. Porém é posta com tamanha destreza que converte um risco tremendo numa instigante virada de enredo. Érica, e diretamente o leitor, percebe que nem toda busca ocorre da falta de despedida, mas da tentativa inútil de compreender um adeus não quisto. E, a partir daí, a história se revela um romance de formação.
Tal como a viagem atrás do pai que a conecta a um espectro, a cacos do que esse homem foi, a protagonista se mostra emperrada a um passado recente, incapaz de lidar com situações e decisões que cobram um passo adiante. Seja na solução de um vazamento de água, no destino do ateliê que montou na garagem da casa ou nas relações de trabalho, o apoio de Vinícius é cada vez mais conectado aos seus conflitos concretos e subjetivos.
Ele é quem a acompanha nos bares, nas festas, integra-a ao seu círculo de amigos. Érica não está só, afinal. Ali está uma geração acometida por uma miopia existencial. Jovens presos a uma ideia de plenitude, vislumbrados pelo cenário de um futuro que lhes parece real, porém que não passa de um quadro abstrato. “Eu não conseguiria viver assim. Projetando ilusões para um intervalo tão longe e tão curto. Me parecia bem mais adequado permanecer exatamente onde estava. Que minha vida era exatamente aquela”.
Nesse ponto, ganha relevo um dos tantos méritos da autora: a construção de diálogos críveis, capazes de significar um personagem por meio de suas falas. A prosa de Débora é lapidada, rica, calcada numa linguagem coloquial que, fortuitamente, ao dar voz a jovens diletantes não se reduz. Ao contrário da protagonista que criou, a maturidade de Débora é evidente.
O vazio provocado pelo sumiço imprevisto do pai, aos poucos, vai sendo substituído por outro abandono, desta vez anunciado. Como abraçar um corpo de sentimentos, como tê-lo apertado contra si sabendo que logo irá se desvanecer, é a maneira que a vida se mostra cíclica para Érica; que passado e futuro se reprisam e se anulam, que o que resta é o presente; vivê-lo. Desaparecer nem sempre é uma fuga, pode ser um recomeço.
Avançando além do bloqueio de Knausgård, Débora encontra a forma perfeita de transpor o espírito de uma geração para as angústias de uma personagem que, ao se aproximar do pai, também se aproxima de si. É desse processo que brota sua literatura. Maiúscula, em curso sobre uma linha estreita que separa realidade e ficção, evidenciando o talento de uma grande narradora.
Sérgio Tavares é escritor
Enquanto Deus não está olhando

Leia um trecho do livro:
O fim do mundo chegou cedo desta vez. Subo a ladeira. A rua de paralelepípedos está deserta apesar de não passar das oito da noite, e à minha volta só as casas, pequenas e imóveis, é que, vez por outra, dão qualquer sinal de vida humana. Casa sim, casa não, há uma janela aberta com uma luz acesa. Eu diminuo o passo. Procuro campainhas com a vista. Mas foi muito cedo dessa vez. E eu já vinha suficientemente dilacerada para ainda me incomodar com o fim do mundo ou com qualquer coisa.
— Érica!
Continuo subindo. As poças d’água se espalham pelo pavimento. Elas molham a barra da minha calça jeans e meus coturnos chiam soltando pequenos jatos toda vez que piso. É impossível não pensar que o couro nunca mais voltará a ser o mesmo. Impossível não considerar a hipótese de desistir logo de uma vez dessa operação toda. Os músculos da coxa, fadigados do esforço, se retesam contra o percurso íngreme. Dilacerada demais… repito pra mim. E já nem me refiro à dor de cabeça, aos cortes, nem aos calos em sangue. Paro de pé no meio da rua, no centro da ladeira. Falo de algo muito maior. Algo como um cansaço tão supremo que me impede de responder aos chamados dele ecoando pela rua.
— Érica!
Ele ainda não havia dobrado a esquina, mas já era possível ouvir seus passos ecoando pelo quarteirão.
(…)
Eu era incapaz de chegar a um lugar e dizer o que queria. Sempre envolvida pelas possibilidades de estar querendo — ou acreditando querer — a coisa errada. Sempre que eu ia a uma lanchonete com meu pai, eu precisava ver o cardápio inteiro, todas as vitrines de bolos, ponderando, desesperadamente, sobre as opções. Ele sempre se impacientava com isso. Em lanchonetes, ele caminhava decidido ao balcão e, sem perguntar o que serviam, sem ter em mãos o cardápio, pedia: Um misto quente e um café. Ele não se preocupava com as opções. E por que deveria? Eu é que tive opções demais na vida. Ele, não. Ele sabia o que queria. Adaptou-se ao fato de que qualquer birosca ofereceria misto quente e café. Ele teve uma só possibilidade.
— Tem que ser simples — ele dizia.
— Mas com o senhor vai saber se eles não têm algo muito melhor a oferecer que o misto quente?
— Ora, por que eu deveria me preocupar? Misto quente está ótimo. A pessoa tem que ter decisão na vida. Tem que chegar já sabendo o que quer. — Ele parecia ter listas definidas: cerveja em bares, misto quente e café nas lanchonetes, churrasco de picanha em restaurantes. Fim de papo. Enquanto eu lia detalhadamente as descrições de cada prato, atravessando labirintos e vagando, eternamente, entre uma e outra opção, na névoa delas, rezando para topar, por acaso, com a coisa que eu queria sem saber.
Pessoas assim nunca vão crescer, de fato. Pensei, desanimada, sobre minha própria incompetência para uma vida adulta.