Paraíso Perdido, de John Milton, humaniza, romantiza e poetiza a história bíblica
17 novembro 2024 às 00h00
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Marina Teixeira da Silva Canedo
Especial para o Jornal Opção
Afora a beleza do texto, os versos acima demonstram a erudição de seu autor. Versado na cultura grega e em temas religiosos, menciona a ambrosia e o néctar, alimento e bebida dos deuses do Olimpo grego; o maná, alimento concedido por Deus ao povo hebreu em sua travessia do deserto; e o mel, símbolo da Terra Prometida (“que mana leite e mel”). Nesse sincretismo cultural está envolvida a fusão de diferentes tradições que compõem a cultura holística do poeta. Da mesma forma se fundem o Céu e o Paraíso, comparáveis em beleza e perfeição, antes da Queda. É esse o grandioso tema de John Milton (1608-1674), poeta inglês.
Todos os povos sempre tiveram sua versão cosmogônica, isto é, da origem do universo e da humanidade. A cosmogonia aceita pelos cristãos e judeus está registrada nos primeiros capítulos do livro de Gênesis, cuja visão edênica serviu não só às crenças, mas também como tema para inúmeras manifestações artísticas.
A importância da Bíblia extrapola seu caráter espiritual; ela foi também a maior fonte de inspiração das expressões artísticas desde a Idade Média, como pintura, escultura, literatura, música e arquitetura. Leonardo da Vince, Michelangelo, Rafael, Tintoretto, Portinari, Bach, Haendel, Vivaldi, Aleijadinho, Mestre Ataíde, Dante, Milton, são alguns nomes do imenso panteão de artistas que tiveram a Bíblia como provedora inesgotável de inspiração.
Baseando-se nas narrativas bíblicas, tidas como de inspiração divina, John Milton escreveu “Paraíso Perdido” (Editora 34, 896 páginas, tradução de Daniel Jonas), publicado pela primeira vez em 1667. Milton é um referencial no cânone da literatura ocidental, no qual desfruta de posição privilegiada. Uma singularidade biográfica: ele já estava completamente cego quando produziu esta obra-prima. “Paraíso Perdido” é um poema épico, da escola barroca, e está incorporado à esfera das grandes epopeias, que dignificaram a cultura universal e que deram à literatura um corpus, sobre o qual se ergueu a produção literária do Ocidente.
Falar em “Paraíso Perdido” é incluí-lo no inventário de seus congêneres, como “Ilíada”, “Odisseia”, “Eneida”, “A Divina Comédia”, “Os Lusíadas”, “Fausto”, todos obras poéticas e epopeicas que descreveram fatos históricos, supostamente históricos, fatos de ordem ficcional, mitológica e religiosa, e que representaram o espírito de sua época.
“Paraíso Perdido” e “A Divina Comédia” são textos inspirados nas Escrituras, vistas por duas óticas diferentes. Dante é o poeta católico por excelência, cuja “Comédia” é louvada por estudiosos católicos e constantemente revisitada por eles e pela crítica laica. Já a obra de Milton, considerado o segundo maior poeta inglês – Shakespeare é o primeiro — é tida como representante do pensamento protestante.
Sua leitura nos apresenta um texto formal, com linguagem complexa e apurada. É fato que o gênero epopeico tenha caído em desuso, resultado da própria dialética no campo da literatura, cujas antíteses e sínteses tornam-se cada vez mais representativas da desnecessariedade da complexidade formal e da erudição, em favor do imediatismo da mensagem facilitadora. O assunto, entretanto, longe de ser anacrônico é palpitante e atual, também considerado metafórico e fabular, constituindo-se no cerne das doutrinas cristãs e judaicas, aceitas por muitos, refutadas por outros, e analisadas à luz da ciência, que tenta colocá-las sob o escrutínio das comprovações científicas. A mensagem bíblica é a pedra angular sobre a qual se assenta a civilização judaico-cristã, dividindo com o legado helenístico o lugar de primazia.
A edição de “Paraíso Perdido”, da Editora 34, é exemplar. Conta com tradução e notas do premiado poeta português Daniel Jonas, de 51 anos, e rica e explicativa introdução do crítico norte-americano Harold Bloom. As orelhas do livro são de ninguém menos que Otto Maria Carpeaux.
Foi enriquecida pelas belíssimas ilustrações de Gustave Doré (1833-1883), pintor e artista polivalente francês, feitas a bico-de-pena. Doré especializou-se em ilustrar os clássicos, dentre os quais “A Divina Comédia” e o “Quixote”, de Cervantes. Cinquenta ilustrações foram-lhe encomendadas por uma editora inglesa, das quais detalhes foram utilizados nesta presente edição.
O poema é constituído por doze livros e 10.565 versos. Foi estruturado nos moldes clássicos e em verso heroico, dentro dos padrões homéricos, o que representa certas dificuldades à tradução, que tem que se conformar à estrutura formal e fixa; isso acarreta, na maioria dos versos, inversão da ordem direta frasal e utilização de um léxico por vezes arcaico.
“Paraíso Perdido” reveste-se de roupagens poéticas de grande beleza e de livre interpretação. A partir das Escrituras o autor transporta-se à Criação e à Queda, enxergando através dos olhos do Criador, de Satã, de Adão e Eva e dos seres angelicais, dando-lhes voz e ação, em uma sucessiva polifonia dialógica. O Paraíso é reconstruído em detalhes, numa pressuposição conjectural do poeta que enxerga, com as lentes policromáticas da imaginação, as circunstâncias bíblicas.
A proposta do autor é a perda do Paraíso pela desobediência do Homem. Ao ser expulso do paradisíaco Jardim do Eden, ele perde as prerrogativas e delícias de que desfrutava, como também a imortalidade.
Mas a expulsão de Lúcifer e de sua legião de anjos caídos antecede à Queda do Homem. Sentindo-se envaidecido por sua enorme beleza, Lúcifer desafia o Criador ao querer comandar o reino celestial, tendo como paga de sua arrogância a expulsão para os confins dos abismos. A vaidade é um veneno corrosivo, entranhado na gênese de todos os males, assim parece ser o pensamento de Salomão no livro de Eclesiastes: vanitas vanitatum et omnia vanitas. Textos sobre a queda do anjo dicotômico, belo e mau (Lúcifer), são encontrados nos livros dos profetas Isaías e Ezequiel, e no livro de Apocalipse, do apóstolo João.
Lúcifer passa a ser conhecido como Satã ou Satanás, e tem em seu entorno uma falange de demônios, entre os quais Belial, Belzebu e Mefistófeles. Reúnem-se todos para tomar uma decisão drástica: invadir e reconquistar suas posições nos átrios célicos ou corromper o novo ser recém-criado — o Homem. A última hipótese prevalece.
A criatividade e o fervor religioso miltonianos revelam-se intensamente. O diálogo estabelecido entre o Pai e o Filho, no Livro III, reveste-se de grande beleza poética e de profunda espiritualidade, esclarecendo os destinos de Satã e da humanidade: a Satã é dada a condenação eterna e ao homem a possibilidade de redenção, concedida pela graça divina, visto que seus erros são induzidos pela tentação diabólica. O Filho será encarnado e seu sangue dará ao homem o perdão e a redenção, e a promessa da vida eterna. Ao mencionar o livre-arbítrio Milton admite o arminianismo, interpretação do teólogo Jacobus Arminius, contrária à teoria calvinista da predestinação.
O texto miltoniano chega ao apogeu dramático e lírico com os colóquios entre o arcanjo Rafael e Adão, e o supremo e divinal colóquio entre Deus e Adão.
Rafael responde ao nosso pai original sobre seus questionamentos a respeito do funcionamento do mundo e por qual razão ele, Adão, foi criado. As teorias antropocêntricas e heliocêntricas desfilam nesse diálogo. Deus disse que “…e de um mundo novo farei e já, de um homem uma raça infinda que há de ali morar.” Mas os questionamentos do Eterno Adão continuam a ecoar, e a filosofia, a religião e a ciência há séculos se ocupam em respondê-los. O grande poeta Milton expõe, de maneira perfeita e sensacional, nos dois diálogos, o eterno não-saber, a eterna interrogação que une o Adão original ao Eterno Adão, que somos nós.
Depois, com Deus, Adão solicita-Lhe uma companheira, tal como os animais tinham as suas. Feita Eva, Adão exclama: “carne da minha carne, ossos de ossos meus, meu eu, ante mim, mulher se chama.” E, ao admirá-la extasiado, proclama com fervor: “toda a ciência maior soçobra ante ela.” Estava criado o amor romântico e erótico.
Inveja, ódio e despeito movem Satã. Incorpora-se na serpente e induz Eva a cometer o pecado original. Em suma, a paz e a felicidade eterna caem por terra e instalam-se a mentira, a discórdia, o sofrimento e a morte. A esperança virá com o Filho Redentor.
Ao final o anjo Miguel, compassivo, toma o casal pelas mãos e os leva para fora do magnífico jardim. Estava perdido o Paraíso.
A história bíblica foi humanizada, romantizada e poetizada por John Milton. Não faltou à fidelidade às Escrituras, mas conferiu-lhes o calor e a concretude das relações entre o homem e a mulher e entre estes, o Criador e as criaturas celestiais.
A grandiosidade de “Paraíso Perdido” parece não ter similitude na literatura. O maior fato da história da humanidade, que é a sua gênese, não poderia ter tido uma versão mais humanística, gloriosa e fantástica do que esta.
Marina Teixeira da Silva Canedo é poeta, cronista e crítica literária. É colaboradora do Jornal Opção.