Os livros choram por ti, Antônio
26 agosto 2020 às 10h18
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À memória do editor e amigo Antônio Almeida, que morreu num dia de agosto, quando o inverno já havia despetalado o folhame do mogno
Gabriel Nascente
I
Empreiteiro de sonhos
não morre, Antônio.
E tu foste torrente plural
de livros, às fartas, Antônio.
Enlaçavas no ar
os peixes da poesia.
Tu, pescador de autores.
Juntos, abiscoitamos louros-prêmios
literários, por certames de Brasil a fora.
Tu, o moço-mecenas da Kelps,
distendias o arco de tua coesa
solidariedade, e imprimias, de graça,
escritos marginais de mim e de outrens
como plaquetes de poemas, convites e
cartazes de difusão de eventos. Juntos,
o editor e tua brava plêiade de irmãos.
Assim o foste, Antônio,
na política de teu suor
de gráfico diuturno:
paga ou não paga, a carga ia
(a peito) para o forno, e de lá,
pronta, saía, em fornadas de múltiplos
impressos.
Para nós, grandes mentirosos do universo,
(a poesia é a quimera das palavras) – a morte
é a travessia do sangue para o espírito,
indo de encontro às luzernas da luz,
lá onde o céu é um braseiro de estrelas.
II
Tu sabes (e sabias) que o inferno flagelante
da pandemia, nos privou de acenar-lhe
um só murmúrio de adeus. E morrer, Antônio,
“não era o sonho que sonhavas.” A noite da
morte é miseravelmente fria e longa.
Olvidemo-la em teu fosso de mistérios.
E já nos primeiros instantes de tua
“iluminada ausência”, uma dor horrível
veio vindo escavando criptas de prantos
em nossas faces. Antônio! Antônio,
que miragem é esta, tempestade de
areias em meus olhos? Estou de pé? Trêmulo?
Escorado pelos flancos de algum livro?
Sim. Agouros de agosto silenciaram
provisoriamente o grito de metal de
tuas máquinas, às duas da tarde daquele
fatídico vinte e um de agosto, de
inverno, sexta-feira.
Mas ainda o vejo, ó meu irmão!
no onírico de tuas empreitadas, empacotando livros,
fleumático, às vezes apressurado, discutindo,
dando ordens, imiscuído
à ruidosa labuta da oficina,
entre rumas de papel, suor
e graxa.
III
De tua lavra, doces frutos da
virtude perpetuarão na linguagem
daqueles que o conheceram,
editorando sonhos. Porque eras
o ativista cultural, o altruísta, o pai
e o maquinista de solidária recepção
ao comboio editorial da Kelps.
Prestimoso e solícito, o amigo.
Eras atroz. Eras menino, trivial e ardil
no gatilho de teus negócios. Homem de muitas
águas, sem temer os chifres do rinoceronte:
É pra fazer! Vamos fazer! – bradava.
IV
Antônio,
isto me dói doloroso
de acordar a poesia
para prantear
a tua morte,
na ferida
dos meus vazios,
de incessantes
adeuses.
Tu entras agora
no mortuório desta estatística
funérea de morrer sem fim
de amigos morrendo.
E calo-me, perplexo, abafado,
a engolir o negro vinagre
dessas lágrimas de luto.
Doravante,
desfrutaremos certamente
da indelével fortuna
de tuas alegrias,
partilhadas com
o morno pão das amizades.
Sei que querias o cimo,
o brasão e a glória; mas
a pinha do pinheiro
cobriu-se de terra.
V
Esta é a minha ode
de voz arrepiada,
o eco trêmulo e
condoído
pelas nênias
do adeus.
O choro dos órfãos.
O luto das palavras.
O vazio da cadeira.
A mágoa. A condolência.
O vento no cipreste.
O frio no sepulcrário.
Antônio, fui reduzido
a pó de gesso
para tanger o hino
triste deste gongo,
em repiques de exéquias.
E gabar tudo o que
foste / na paixão
de esculpir livros
para os olhos do
mundo.
Oh, quanta gnose em
tuas mãos, Antônio!
Antônio de liça, monólito.
Antônio de alma: adjutório.
De igual para igual: democrático,
farol da Kelps, eras. De régua
em punho malhando o teu ofício.
Voavas alto, ó
afã desesperado!
VI
Que golpe terrível tua viagem
para o adro dos mortos. Tão depressa
ido, partido, para o portus corporis.
Cipo de enigmas: luto. Silêncio pétreo,
de ausência que descontrola o eixo
do viver em nós, teu rebanho de
fregueses, com fome de livros. Estes
tentames de obras que nos prendem
ao tempo e à vida, nesta busca
do perdurável.
VII
Voavas intrépido buscando
a crina dos apanágios. Tu,
pássaro de barro, albatroz de
papel – andorinha de piruetas
a rasantes, desafiando as
insídias de teus projetos.
Por telefone ouvi a dor gritando.
Por telefone ouvi o luto das paredes.
Por telefone ouvi as letras saindo
das páginas dos livros. O ladrido
das ruas, e a pressa de teus sonhos
de largo rio, entre as pugnas da vida.
VIII
Da turva órbita do orbe, já então
o dia inclinava a sua cabeça
em direção ao colo da noite.
Saí correndo para derramar
este cibório de lágrimas sobre
o teu leito sepulcral.
Ventava triste nos meus ossos.
O dardo de tua ausência seguiu-me
trespassando o peito. Esfreguei os
olhos e vi (trôpego de mim) na
altíssima solidão da abóbada, uma
crescente fatia de lua menina
jazindo, requieta, pelos raios
de frio da soturna noite. E era
flava e luzia (cor de fogo) a ínsua,
congelando a minha alma.
IX
Convidei os relógios, os peixes,
os meninos e as árvores
para chorarem comigo o tombo inesperado
deste usineiro de livros.
Chispas de sol renascerão
do hipogeu, onde dormes.
Esta ode, Antônio, é biográfica,
manual, e apógrafa do meu pranto.
Nela choram todos os poemas
que editaste.
Os gráficos, impressores,
digitadores e designers
manterão acessa a força rubra
de teu ofício.
Quão grande ficará o sofrimento de
teus meninos nos olhos da recordação,
toda madrugada quebrando portas à procura
de tua voz, Antônio, feita de fibras e
de tambor de auroras.
Que angústia! Que calvário!
Eu morri em pedaços de mim
na tua morta. E boa tarde, amigo.
Logo mais à noite ouvirás o barulho
das estrelas imprimindo a nova chusma
de teus inéditos. Sinal explícito
que o ipê amarelo de teus sonhos
continuará florejando. Agora durmas,
ave de páginas. O óleo da luz vai
funcionar no coração de tuas máquinas.
Que missão! Que ferroada de alfinetes
falar do amigo morto. Adeus.
O luto engoliu o verbo da minha lira.
(Sala Albert Camus, madrugada de 21, 22, 23 e 24 de agosto de 2020, durante o infausto sinistro da Covid-19).