À memória do editor e amigo Antônio Almeida, que morreu num dia de agosto, quando o inverno já havia despetalado o folhame do mogno

Gabriel Nascente

Antônio Almeida: fundador da Editora Kelps | Foto: reprodução
I

Empreiteiro de sonhos

não morre, Antônio.

E tu foste torrente plural

de livros, às fartas, Antônio.

 

Enlaçavas no ar

os peixes da poesia.

Tu, pescador de autores.

Juntos, abiscoitamos louros-prêmios

literários, por certames de Brasil a fora.

 

Tu, o moço-mecenas da Kelps,

distendias o arco de tua coesa

solidariedade, e imprimias, de graça,

escritos marginais de mim e de outrens

como plaquetes de poemas, convites e

cartazes de difusão de eventos. Juntos,

o editor e tua brava plêiade de irmãos.

 

Assim o foste, Antônio,

na política de teu suor

de gráfico diuturno:

paga ou não paga, a carga ia

(a peito) para o forno, e de lá,

pronta, saía, em fornadas de múltiplos

impressos.

 

Para nós, grandes mentirosos do universo,

(a poesia é a quimera das palavras) – a morte

é a travessia do sangue para o espírito,

indo de encontro às luzernas da luz,

lá onde o céu é um braseiro de estrelas.

Arte do húngaro Dániel Taylor
II

Tu sabes (e sabias) que o inferno flagelante

da pandemia, nos privou de acenar-lhe

um só murmúrio de adeus. E morrer, Antônio,

“não era o sonho que sonhavas.” A noite da

morte é miseravelmente fria e longa.

Olvidemo-la em teu fosso de mistérios.

 

E já nos primeiros instantes de tua

“iluminada ausência”, uma dor horrível

veio vindo escavando criptas de prantos

em nossas faces. Antônio! Antônio,

que miragem é esta, tempestade de

areias em meus olhos? Estou de pé? Trêmulo?

Escorado pelos flancos de algum livro?

 

Sim. Agouros de agosto silenciaram

provisoriamente o grito de metal de

tuas máquinas, às duas da tarde daquele

fatídico vinte e um de agosto, de

inverno, sexta-feira.

 

Mas ainda o vejo, ó meu irmão!

no onírico de tuas empreitadas, empacotando livros,

fleumático, às vezes apressurado, discutindo,

dando ordens, imiscuído

à ruidosa labuta da oficina,

entre rumas de papel, suor

e graxa.

III

De tua lavra, doces frutos da

virtude perpetuarão na linguagem

daqueles que o conheceram,

editorando sonhos. Porque eras

o ativista cultural, o altruísta, o pai

e o maquinista de solidária recepção

ao comboio editorial da Kelps.

 

Prestimoso e solícito, o amigo.

 

Eras atroz. Eras menino, trivial e ardil

no gatilho de teus negócios. Homem de muitas

águas, sem temer os chifres do rinoceronte:

É pra fazer! Vamos fazer! – bradava.

Pintura de Tommy Ingberg
IV

Antônio,

isto me dói doloroso

de acordar a poesia

para prantear

a tua morte,

na ferida

dos meus vazios,

de incessantes

adeuses.

 

Tu entras agora

no mortuório desta estatística

funérea de morrer sem fim

de amigos morrendo.

 

E calo-me, perplexo, abafado,

a engolir o negro vinagre

dessas lágrimas de luto.

 

Doravante,

desfrutaremos certamente

da indelével fortuna

de tuas alegrias,

partilhadas com

o morno pão das amizades.

 

Sei que querias o cimo,

o brasão e a glória; mas

a pinha do pinheiro

cobriu-se de terra.

V

Esta é a minha ode

de voz arrepiada,

o eco trêmulo e

condoído

pelas nênias

do adeus.

O choro dos órfãos.

O luto das palavras.

O vazio da cadeira.

A mágoa. A condolência.

O vento no cipreste.

O frio no sepulcrário.

Antônio, fui reduzido

a pó de gesso

para tanger o hino

triste deste gongo,

em repiques de exéquias.

 

E gabar tudo o que

foste / na paixão

de esculpir livros

para os olhos do

mundo.

 

Oh, quanta gnose em

tuas mãos, Antônio!

 

Antônio de liça, monólito.

Antônio de alma: adjutório.

De igual para igual: democrático,

farol da Kelps, eras. De régua

em punho malhando o teu ofício.

 

Voavas alto, ó

afã desesperado!

Pintura de Tommy Ingberg
VI

Que golpe terrível tua viagem

para o adro dos mortos. Tão depressa

ido, partido, para o portus corporis.

Cipo de enigmas: luto. Silêncio pétreo,

de ausência que descontrola o eixo

do viver em nós, teu rebanho de

fregueses, com fome de livros. Estes

tentames de obras que nos prendem

ao tempo e à vida, nesta busca

do perdurável.

Pintura de Rafal Olbinski
VII

Voavas intrépido buscando

a crina dos apanágios. Tu,

pássaro de barro, albatroz de

papel – andorinha de piruetas

a rasantes, desafiando as

insídias de teus projetos.

 

Por telefone ouvi a dor gritando.

Por telefone ouvi o luto das paredes.

Por telefone ouvi as letras saindo

das páginas dos livros. O ladrido

das ruas, e a pressa de teus sonhos

de largo rio, entre as pugnas da vida.

Pintura de Rafal Olbinski
VIII

Da turva órbita do orbe, já então

o dia inclinava a sua cabeça

em direção ao colo da noite.

Saí correndo para derramar

este cibório de lágrimas sobre

o teu leito sepulcral.

 

Ventava triste nos meus ossos.

O dardo de tua ausência seguiu-me

trespassando o peito. Esfreguei os

olhos e vi (trôpego de mim) na

altíssima solidão da abóbada, uma

crescente fatia de lua menina

jazindo, requieta, pelos raios

de frio da soturna noite. E era

flava e luzia (cor de fogo) a ínsua,

congelando a minha alma.

Pintura de Igor Morski | Foto: Reprodução
IX

Convidei os relógios, os peixes,

os meninos e as árvores

para chorarem comigo o tombo inesperado

deste usineiro de livros.

 

Chispas de sol renascerão

do hipogeu, onde dormes.

 

Esta ode, Antônio, é biográfica,

manual, e apógrafa do meu pranto.

Nela choram todos os poemas

que editaste.

 

Os gráficos, impressores,

digitadores e designers

manterão acessa a força rubra

de teu ofício.

 

Quão grande ficará o sofrimento de

teus meninos nos olhos da recordação,

toda madrugada quebrando portas à procura

de tua voz, Antônio, feita de fibras e

de tambor de auroras.

 

Que angústia! Que calvário!

Eu morri em pedaços de mim

na tua morta. E boa tarde, amigo.

Logo mais à noite ouvirás o barulho

das estrelas imprimindo a nova chusma

de teus inéditos. Sinal explícito

que o ipê amarelo de teus sonhos

continuará florejando. Agora durmas,

ave de páginas. O óleo da luz vai

funcionar no coração de tuas máquinas.

 

Que missão! Que ferroada de alfinetes

falar do amigo morto. Adeus.

 

O luto engoliu o verbo da minha lira.

(Sala Albert Camus, madrugada de 21, 22, 23 e 24 de agosto de 2020, durante o infausto sinistro da Covid-19).