Octo Marques, o “Van Gogh do Cerrado”
19 março 2023 às 00h37
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Nonatto Coelho
Especial para o Jornal Opção
Octo Marques nasceu no dia 8 de outubro de 1915 na então capital do Estado de Goiás, Vila Boa — que recebeu esse nome em 1739, cognominada inadvertidamente, após 1933, “Goiás Velho” —, uma cidade incrustada e estacionada no tempo, emoldurada por serras, vales e veredas cerratenses.
Além do artista-pintor Octo Marques, que marcou a cidade com seus registros pictóricos, de lá surgiram alguns dos sobrenomes carimbados por lexicógrafos na historiografia dos antropos que colonizaram, e ainda hoje, atuam no sistema político e econômico deste Estado, um dos principais polos do “agrobusiness” brasileiro.
Depois que a nova capital, Goiânia, foi construída (sua pedra fundamental foi lançada no dia 24 de outubro de 1933) por iniciativa de Pedro Ludovico Teixeira, a velha capital enrijeceu-se, calcificou-se entre as pedras, tendo como mirante panorâmico o cume da mítica Serra Dourada. Mas os costumes, os conceitos cloróticos e suas aplicações na vida cotidiana, ainda hoje estão presentes na sociedade local, aumentando, e se multiplicando, nos usos e costumes de parcela da burguesia pulverizada e dispersa em todo o Estado de Goiás.
Hoje a cidade é patrimônio mundial da Unesco e atrai turistas nostálgicos de um passado colonial puído, por vezes caquéticos. Não obstante repleto de poesia e de viés romântico.
“Vila Boa de Goiás”, a antiga capital, hoje é apenas Cidade de Goiás, e tem um cadinho de arte e cultura que já gerou grandes nomes nacionais, e até internacionais. Os dois maiores, sem dúvida, são a saudosa Cora Coralina e o inquieto Siron Franco, este último o mais importante artista visual da ainda jovem história da arte goiana.
Aquela idílica cidade colonial conta ainda, no arcabouço da arte visual, com muitos importantes nomes, como a mítica e saudosa Goiandira do Couto; a “zíngara” maravilhosa, Marly Mendanha; Auriovane D’avila e sua primorosa técnica da pintura com areia colorida; Di Magalhães (radicado, atualmente, em Curitiba, PR) e o quase esquecido e transparente aos olhos da comunidade local: Josélio do Maranhão — este, grande desenhista, que ao lado de Di Magalhães são praticantes da arte do bico de pena, uma técnica de desenho já praticamente extinta no amálgama do desenho brasileiro.
Mas falemos de Octo Marques. Seu sobrenome não despertava atenção em uma sociedade conservadora, zelosa e orgulhosa de suas origens e descendências. Mas, felizmente, a arte independe de sobrenomes tradicionais para se manifestar. Ela é gerada em um campo neutro, misterioso, e às vezes deve sua fecundidade aos desafios e adversidades que o autor, ou autora, possam se deparar pelo caminho. E Octo Marques encontrou muitas barreiras para produzir sua obra. Primeiramente de ordem econômica; depois, de ordem social; o que redundam na mesma linha de percepção coletiva na sociedade capitalista. A burguesia local nunca o viu com bons olhos, e sua vida boêmia, sua inadequação às etiquetas da sociedade vilaboense, aprofundaram sua minguada importância perante os conterrâneos da bela Vila Boa.
O escritor José Mendonça Teles (1936-2018) — responsável pela inclusão do nome de Octo Marques no Centro Cultural que funciona no Edifício Parthenon Center, situado na rua 4, n° 515, centro de Goiânia — escreveu que, certa ocasião, tentou apresentar o pintor Octo Marques à pessoas de uma família que ele descreve como “quatrocentona” da Cidade de Goiás. O artista teria sido “mal-recebido, olhado com desprezo”. José Mendonça Teles relatou: “A situação ficou tão embaraçosa, que resolvi me despedir”.
Em minha visão, os traços nervosos e as cores em tonalidades pastéis da pintura figurativa do artista — resguardadas as proporções — sugerem analogia com alguns desenhos pintados por Van Gogh (1853-1890), especialmente quando o artista holandês esteve internado no hospital de Saint-Remy, na França. Os motivos pictóricos do mestre da Cidade de Goiás é baseado no que seus olhos divisavam diariamente, e ele pintava as paisagens e a gente de sua época na labuta do dia a dia.
O olhar e os motivos da arte do mestre holandês em seu período de internato, eram também as paisagens e as pessoas comuns de Saint Remy; também, ambos foram dependentes do álcool e marginalizados por seus contemporâneos.
Octo Marques pintava seus quadros e os vendiam por uns poucos trocados para mitigar sua fome e saciar sua sede da bebida etílica. Quando faleceu, no dia 22 de abril de 1988, embriagado e na solidão, o saudoso Gontran da Veiga Jardim teria escrito, do Rio de Janeiro, uma carta endereçada ao escritor José Mendonça Teles, onde dizia: “Octo Marques partiu, sem alarde, sem ‘Jornal Nacional’, apenas a notícia correndo de boca em boca, trazendo aquele misto de compaixão e tristeza”.
Na jovem história da arte goiana, o legado desse artista é marcante por sua originalidade, por uma iconografia verdadeira, pela simplicidade e universalidade no contexto local.
Nonatto Coelho é artista e pesquisador, sócio-titular do Instituto Cultural Bernardo Élis Para os Povos do Cerrado (Icebe), e ex-presidente da Associação Goiana de Artes Visuais (Agav).