Salatiel Soares Correia

Especial para o Jornal Opção                

“Dom Quixote”, obra-prima do escritor espanhol Miguel de Cervantes, talvez o maior livro da literatura mundial, ensina algo que só um espírito de extraordinária grandeza consegue atingir: abraçar grandes causas em torno de um ideal. O espírito quixotesco revela isso nas mais de 800 páginas do livro. Em nome de um ideal de vida, de luta contra as injustiças deste mundo, conseguiu o criador de “Dom Quixote”, por meio do humor, revelar sentimentos nobres de seu grande personagem, que passa a vida a lutar contra imaginários moinhos de vento nos quais via gigantes inimigos que deveria enfrentar. Quixote esqueceu de si mesmo, para se lembrar do outro, defendendo os fracos e oprimidos contra as injustiças do mundo. Homens desse jaez são muito raros. Sua família passa a ser sua causa; seu lar, o mundo; sua travessia, repleta de sofrimento e dor, deixa rastros de grandeza, abnegação e reflexão para todos nós.

São coisas assim que fazem da obra de Miguel de Cervantes um patrimônio da humanidade. Uma obra que resistiu à prova do tempo durante os mais de 400 anos, passados desde que a obra foi concebida. Certamente, é por saber lidar com sentimentos universais, como Cervantes, que o peruano Mario Vargas Llosa, Prêmio Nobel de Literatura de 2010, pode também ser alçado ao panteão dos grandes escritores da humanidade.

Sabe Vargas Llosa (pronuncia-se “Llôssa”) como ninguém construir obras primas em torno de sentimentos do ser humano de qualquer cultura. Este é o caso do romance “O Sonho do Celta” (Alfaguara, 392 páginas, tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman). Nesta obra, de acordo com o jornal espanhol “El País, o autor do romance “Conversa no Catedral” (trata-se de um bar, não de uma igreja) “reconstrói, de forma brilhante, a controversa jornada de um homem que, ao denunciar a barbárie da colonização, acaba se voltando contra seus próprios governantes numa obstinada luta pela liberdade.”

Roger Casement: irlandês que trabalhou como diplomata para a Inglaterra | Foto: Reprodução

Assim como o espanhol Cervantes, o peruano Vargas Llosa também tem o seu Quixote, que sai pelo mundo a denunciar e a lutar contra as injustiças. Uma luta repleta de idealismo, glória, mas, ao mesmo tempo, sofrimento e dor. Saímos da leitura de “Dom Quixote” um tanto diferentes de quando entramos. A sensação é a mesma que se experimenta à leitura de “O Sonho de Celta”, pois algo dentro de nós se transforma. Após lê-la e refletir sobre a sua mensagem, passamos a enxergar a vida de modo mais humanizado. Sentimentos assim só os grandes escritores conseguem despertar em seus leitores, só a grande literatura consegue atingir a meta de mexer com as duas realidades do ser humano — a interior e a exterior.

Conviver com atrocidades que bestializam o ser humano é situação relativamente comum na história da humanidade, lamentavelmente, situação vivenciada por muitos povos. As guerras, os massacres políticos, os atentados terroristas estão aí, registrados pela história, para todo mundo ver. O que torna a verídica história do cônsul britânico Roger Casement (nascido na Irlanda) um clássico é o modo como o escritor a conta.

Esse Quixote de Vargas Llosa viveu por mais de 20 anos no Congo Belga, adicionados a um ano e meio na Amazônia peruana, vendo e denunciando a força do opressor sobre o oprimido. Casement descobriu, no inferno do Congo Belga e, na Amazônia peruana, a face mais cruel do colonialismo encoberto no discurso hipócrita do desenvolvimentismo. A realidade exterior do sofrimento que impôs o opressor sobre o oprimido refletiu-se na realidade interior da personagem e a fez ir ao encontro de suas raízes irlandesas e, em consequência disso, rever sua relação com seu eterno opressor de seu país: a Inglaterra.

Mario Vargas Llosa: resgate de uma figura histórica por meio da ficção | Foto: Reprodução

A autotransformação do ser humano pior intermédio da percepção da barbárie é o combustível que move a cidadania em torno das grandes causas. A partir daí, nasce o sonho do celta: lutar pela independência de sua Irlanda. Casement, que viu e denunciou o inferno da opressão no Congo Belga e na Amazônia peruana, e teve, por isso, seu trabalho reconhecido na Inglaterra, tendo sido laureado com títulos pela coroa, foi capaz de jogar tudo para o alto e defender a causa da independência de sua terra natal do mando inglês. Vivenciou também a desonra, ao ser tachado de traidor. Sentiu o amargor da prisão. Muito mais que um romance histórico, esse livro do mais universal dos escritores peruanos expressa as angústias e os sonhos de alguém que dedicou a vida, como Dom Quixote, a lutar por mudanças na realidade imposta pelo colonialismo, que tanto oprime os seres humanos.

Inferno do colonialismo no Congo belga

Descobrir os horrores do colonialismo na vida de um povo oprimido exigiu do cônsul britânico Roger Casement uma longa travessia de mais de duas décadas convivendo cotidianamente com o flagelo e a barbárie, o inferno aqui mesmo na terra. O nascimento do Congo como nação nada mais foi que uma invenção das superpotências — Grã-Bretanha, Estados Unidos, França e Alemanha. Na verdade, esse enorme país africano, com cerca de 2,5 milhões de quilômetros quadrados, habitado por cerca de 20 milhões de habitantes, surgiu como uma espécie de dádiva de um rei da Bélgica, Leopoldo II, para que ele “abrisse o comércio, abolisse a escravidão e cristianizasse os pagãos.” O país como nação resultou de um acordo entre as grandes potências, em um encontro em que todos os interessados estiveram presentes, menos o povo congolês.

Roger Casement: defendeu os direitos humanos e foi executado pelos ingleses | Foto: Reprodução

Para lá foi enviado o cônsul britânico, nascido irlandês, Roger Casement. Lá ele se poria em contato com o poder do opressor sobre o oprimido. Um poder que transforma seres humanos em bestas. Começaria ele a vivenciar o inferno aqui mesmo na terra. Lá, pôde ele sentir a face cruel do colonialismo, que impunha seus valores e explorava economicamente todo um povo. “A praga que tinha volatilizado boa parte dos congoleses do médio e alto Congo era a cobiça, a crueldade, a borracha, a desumanidade do sistema, a exploração dos africanos pelos colonos europeus.”

Quem de nós, após testemunhar durante 20 anos as atrocidades contra um povo oprimido, não mudaria a forma de encarar a vida? Não mudaria conceitos? Assim, deu-se a autotransformação do cônsul britânico em busca de uma nova maneira de encarar o que ele realmente era. Em terras africanas, ele testemunhou a força do colonialismo numa terra em que o Estado inexistia como ente jurídico. Em vez disso, um Estado opressor, fomentador da barbárie contra uma população indefesa. Mãos trituradas, pênis decepados, mulheres chicoteadas, obrigadas a “engolir seu próprio excremento ou o dos guardas (da força pública)”. O mundo dourado de Leopoldo II, das nações europeias, distantes a milhares de quilômetros de tudo aquilo, desconhecia ou fingia desconhecer. Era preciso denunciar, elaborar relatórios, para revelar todo aquele inferno ao mundo. Foi o que Casement fez.

À medida que os anos iam passando, o cônsul se humanizava cada vez mais ante todas as atrocidades que testemunhava. O chicote nas costas dos nativos os fazia morrer ensanguentados; mães se viam obrigadas a vender seus próprios filhos. Se existia o inferno, ele ficava ali. A hipocrisia da abertura comercial escondia no fundo a exploração do homem pelo homem. De um lado, saíam da colônia belga navios repletos de borracha, marfim, azeite e peles; de outro, lá chegavam fuzis, chicotes e caixas de vidrinhos coloridos.

Atrocidades cometidas pelo governo da Bélgica no Congo | Foto: Reprodução

Tudo o que Casement vivenciou em sua longa travessia contribuiu para que se mostrasse sua mais nobre face, ao promover sua autotransformação: aquela que é capaz de elevar nosso espírito ao ponto de abraçarmos o ideal de pensarmos mais nos outros do que em nós mesmos. E aqui faço um parêntese: narrar essa busca em torno da grandeza de sentimentos perante a barbárie imposta por uma perversa estrutura de poder é o fez de Mario Vargas Llosa o que ele merecidamente é: um escritor universal.

Posto isso, voltemos ao Congo. Todas essas atrocidades tocaram fundo na alma de Casement, a ponto de ele descobrir algo muito importante para sua própria vida: sua identidade irlandesa. Deixemos que o próprio personagem nos conte sua autotransformação: “Você pode achar que é outro sistema de loucura, mas esta viagem às profundezas do Congo me serviu para descobrir o meu próprio país. Para entender sua situação, seu destino, sua realidade. Nestas selvas não encontrei somente a verdadeira face de Leopoldo II. Também encontrei o meu verdadeiro eu: o irlandês incorrigível”. Sim. A alma do protagonista dessa história não era inglesa, mas de outra nacionalidade. Nosso herói nascera em um país que, embora vivesse em outras condições, também enfrentava a força do colonialismo imposto pelo mais forte: a Irlanda. De repente, Casement se viu como ele de fato era: um celta.

Perceber sua alma irlandesa num inferno repleto de injustiça e violência era antes de tudo perceber a grande mentira em que se apoiava o colonialismo — “que a Europa vinha à África para salvar vidas e almas, civilizar os selvagens”. Transportar essa percepção para a condição de sua pátria-mãe era sentir-se ao mesmo tempo ligado à situação de opressor e oprimido de uma nação sobre a outra. No caso, a opressora Inglaterra contra a oprimida Irlanda. 

Atrocidades cometidas pelo governo do rei Leopoldo I no Congo | Foto: Reprodução

Vale aqui um adendo: as semelhanças entre o personagem real de Vargas Llosa e o imaginado por Cervantes encontram-se em torno da grandeza: o mesmo idealismo, a mesma busca incessante por justiça, a mesma revolta contra os males do mundo, o mesmo esquecer-se de si mesmo para se lembrar do outro.

As denúncias corajosas do cônsul inglês, agora se sentido irlandês, ecoaram. A partir delas, jornais denunciavam os horrores vividos por Casement no Congo. Glórias lhe chegaram pelos seus serviços prestados. Da Inglaterra, recebeu condecorações, títulos de nobreza. Após 20 anos vividos naquele inferno, teve a coragem denunciar ao mundo toda aquela barbárie contra um povo. Todo esse reconhecimento britânico não preenchia seu ser, que agora se voltava para outro sonho: o da libertação de sua Irlanda. Os vinte anos vividos no Congo consolidaram sua identidade; deram-lhe uma certeza que antes ele não tinha.

Casement já era um homem de certa idade quando recebera uma nova missão em sua vida — a de novamente voltar ao inferno em outra região do mundo: a Amazônia peruana, para onde foi na condição de observador do governo inglês, para relatar outra situação de opressão. O opressor agora era um novo ator: a poderosa empresa Peruvian Amazon Company. Os oprimidos, os índios da região.

Leopoldo I, rei da Bélgica: um dos governantes mais cruéis da história | Foto: Reprodução

“O escândalo em relação aos crimes do Putumayo atingiu limites intoleráveis. A opinião pública exige que o governo faça alguma coisa. Ninguém melhor que o senhor para viajar para lá. Também irá uma comissão investigadora, de gente independente, que a própria Peruvian Amazon Company decidiu enviar. Mas quero que o senhor, embora viaje com eles, faça um relatório pessoal para o governo. O senhor tem muito prestígio pelo que fez no Congo. É um especialista em atrocidades, não se pode negar.” Assim se expressou o ministro das Relações Exteriores da Inglaterra, sir Edward Grey, ao convidar Casement para essa nova e difícil missão rumo aos confins do inferno. 

Colonialismo na Amazônia peruana

A nova missão do cônsul Roger Casement o conduziu a um novo inferno, onde a exploração do homem pelo homem o reduzia à reles condição de besta humana. Nesse contexto o colonialismo voltava a se repetir, a milhares de quilômetros do Congo Belga, de outra forma, mas sem com isso alterar a face cruel da barbárie, da exploração do opressor sobre o oprimido, durante tantos anos combatida pelo Quixote de Vargas Llosa em terras africanas. Eram outros os atores, mas a situação de sofrimento era exatamente a mesma.

A face opressora só mudava de cara. De um lado, a poderosa empresa Peruvian Amazon Company e seu proprietário Júlio C. Arana; de outro, os povos indígenas, submetidos aos horrores da barbárie em nome da exploração econômica de um produto abundante na região: a borracha. Assim, “o sistema de exploração da borracha baseado no trabalho escravo e nos maus-tratos aos indígenas, causados pela cobiça dos chefes, que, como trabalhavam por uma porcentagem da borracha recolhida, lançavam mão de castigos físicos, mutilações e assassinatos para aumentar a produção”.

Roger Casement no Brasil por volta de 1906 | Foto: Reprodução

Na condição de besta humana, o ser humano se transformava em mercadoria, como gado, que recebe a marca de seus donos no lombo. No caso dos índios do Putumayo, a marca era uma só: CA (Casa Arana), “para que não fujam nem sejam roubados por seringueiros colombianos”. As marcas eram feitas ora a faca, ora a fogo. 

No Putumayo, Casement via o Congo em toda a parte: cicatrizes nas costas, nas nádegas e coxas dos índios, que só poderiam ser resultantes de um instrumento muito usado na época em que viveu no Congo: o chicote, que sangrava as costas deles caso não cumprissem a meta estabelecida para cada um: 30 quilos de borracha a cada três meses.

O trabalho escravo fazia dos índios eternos devedores dos patrões. Para isso “recebiam do armazém os instrumentos para a coleta — facas para incisões nas árvores, latas para o látex, cestas para juntar as tiras ou bolas de borracha —, além de objetos domésticos como sementes, roupas, lampiões e alguns mantimentos. Os preços eram determinados pela companhia de maneira tal que o indígena sempre estivesse devendo e trabalhasse o resto da vida para amortizar a dívida”.

Roger Casement com huitotos, na Colômbia | Foto: Reprodução

Testemunhando aquele mundo de atrocidades nas profundezas do inferno, o celta sentia intensificar-se cada vez mais o seu sonho: ver sua Irlanda liberta da opressão inglesa.  Casement manifestava essa convicção, assim expressa no seu diário: “Nós, irlandeses, somos como os huitotos, os borás, os andoques e os muinanes do Putumayo, explorados e condenados a ficar assim para sempre se continuarmos confiando nas leis, nas instituições e nos governos da Inglaterra para alcançar a liberdade. Eles nunca a darão. Por que o Império que nos coloniza faria isso sem uma pressão irresistível que o force? Essa pressão só pode vir das armas.”  

Casement não se sentia mais um representante de seu postiço país. Duas décadas de Congo e os quase dois anos vivenciados na Amazônia peruana intensificaram sua autotransformação em torno da causa que evidenciava suas verdadeiras raízes e que passaria a ser a razão do seu viver: a luta pela independência da Irlanda do colonialismo inglês.

Da glória à desgraça

Até que ponto somos capazes de, em nome de um sonho, jogar nossas vidas no abismo? Até que ponto nosso interior é capaz de suportar uma mudança tão brusca de realidade sem nos desesperarmos? Até que ponto somos enfim capazes de, mesmo sabendo do muito que temos a perder, seguir outro rumo em nome de nossos sonhos, convicções e ideais?  Creio que esses sentimentos em torno da grandeza são reservados a um tipo muito especial de pessoa: os humanistas.

Roger Casement foi capaz de, a partir da autotransformação, praticar atos de imenso amor ao país em que nascera e vivera os primeiros anos: a Irlanda. Foi acusado de se aliar aos alemães contra os interesses britânicos em plena guerra mundial, o que lhe custou elevado preço. O sonho de uma Irlanda livre do colonialismo inglês falava mais alto. Isso provocou uma reviravolta em sua vida. De herói condecorado e reconhecido pelo império inglês, o Quixote de Llosa foi acusado de traição, foi preso e condenado à morte. “traidor, pelego, rato, vendido” era o que mais se ouvia do povo que um dia lhe havia concedido honrarias e reconhecimento. Tudo isso viria a acontecer com Roger Casement por ter sido ele coerente consigo mesmo, por ter ele ousado, por puro idealismo, acalentar o sonho de ver sua verdadeira nação, a Irlanda, liberta das amarras do colonialismo Britânico.

Antes de morrer, buscou nos labirintos de sua memória as mais ternas lembranças de sua terra natal: da mãe, dos seus primeiros anos em Dublin, das primeiras expedições à África, dos horrores vividos no inferno da Amazônia peruana. A vida passava como um filme naqueles instantes que lhe restavam. Após a bênção do padre, ouve-se um último sussurro em sua voz: “Irlanda.”   

O livro de Vargas Llosa é alçado ao patamar de obra prima exatamente por esta razão: sua narrativa desperta sentimentos que nos tornam mais humanos. Coisas íntimas, inerentes ao ser humano, tão feito “de contradições e contrastes, fraquezas e grandezas” são apresentadas com maestria pelo mago peruano das letras. As fraquezas do Quixote de Vargas Llosa se tornam menores aos olhos do autor ante os sentimentos de nobreza desse herói em torno do que ele se propôs durante toda sua vida: lutar por causas de quem não tem esperança. Comover-se com elas, tornar-se um ativista respeitado e ser capaz de pagar um elevado preço pessoal por seus sonhos, suas convicções em torno da liberdade de seu povo.  

Salatiel Soares Correia é engenheiro, bacharel em Administração de Empresas e mestre em Planejamento. É autor, entre outros, do livro “A Construção de Goiás”. É colaborador do Jornal Opção.