O presidente que iniciou a política do café com leite e o presidente que amava cachorros
27 outubro 2019 às 00h00
COMPARTILHAR
Afonso Pena patrocinou o Convênio de Taubaté, beneficiando os cafeicultores. Nilo Peçanha foi o primeiro presidente mestiço e popular do Brasil
O livro “Afonso Pena e Nilo Peçanha — A Política do Café do Leite” (Folha de S. Paulo, 58 páginas), do historiador Pietro Sant’Anna, não contém uma pesquisa alentada, mas é uma síntese excelente para se compreender a política nacional entre 1906 e 1910.
É provável que a maioria dos brasileiros desconheça os presidentes Afonso Pena e Nilo Peçanha. Mas, informa Pietro Sant’Anna, “sem eles, políticas importantes como a valorização do café ou o incentivo à imigração japonesa nunca teriam saído do papel. Também foi sob Pena que vingou a ‘política do café com leite’”.
Prudente de Morais, Campos Salles e Rodrigues Alves, os três primeiros presidentes civis do Brasil, eleitos pelo voto popular, eram de São Paulo — a locomotiva do país. Eram representantes da elite do café e pertenciam ao Partido Republicano Paulista (PRP). Em 1906, quando seria eleito o sexto presidente, São Paulo adiantou-se e mais uma vez bancou um de seus representantes — Bernardino de Campos. As elites de outros Estados insurgiram-se e o senador Pinheiro Machado, do Rio Grande do Sul, decidiu liderar uma frente política para bancar outro candidato. Criticava-se o “exclusivismo paulista”.
Políticos de Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Bahia e Rio de Janeiro uniram-se, articularam “O Bloco” e decidiram lançar um candidato. O líder da nova coalizão política era Pinheiro Machado, mas o carro-chefe do movimento era — como sempre — Minas Gerais. Por isso, o nome mais cotado era Afonso Pena, vice-presidente da República e, claro, mineiro.
Formado em Direito (estudou no famoso Colégio do Caraça, em Minas, e na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em São Paulo. Dizia do Estado de Mário de Andrade: “São Paulo não é o Brasil, é um trapo do polo pregado à goma arábica na falda da América”), advogado atuante (defendeu escravos e “recusava casos que envolviam a ‘reintegração’ de negros fugitivos aos seus senhores”), tido como intelectual (foi colega de Joaquim Nabuco e Castro Alves), havia sido presidente (governador) de Minas Gerais e trabalhara com afinco para construir Belo Horizonte, a nova capital do Estado, e para a fundação da Faculdade de Direito. Ocupou a presidência do Banco da República (Banco do Brasil), em 1895. Foi deputado, senador, presidente de Minas e vice-presidente da República. Ao aceitar que seu nome fosse colocado para presidente, Afonso Pena atritou-se com o presidente Rodrigues Alves, que apoiava Bernardino de Campos.
Sem se abalar com a resistência de Rodrigues Alves, Afonso Pena atacou a concentração de poder em São Paulo: a “pretensão dos chefes paulistas de monopolizarem para seu Estado a Presidência da República” era “profundamente impolítica” e “prejudicial à boa memória e harmonia brasileira”. Frisou que os oligarcas paulistas “iludem redondamente se pensam que esse fato é indiferente aos outros Estados: consideram-no como ofensivo de seu legítimo amor-próprio. É essa a linguagem que se ouve por toda parte nas rodas políticas e particulares”.
Em 1930, vinte e quatro anos depois, São Paulo não recuou e bancou Júlio Prestes para presidente — contrariando Minas Gerais. Em 2006, percebendo que poderiam ganhar, mas teriam de administrar um país fracionado, os paulistas recuaram e decidiram apoiar Afonso Pena para presidente.
O mineiro recebeu 97,9% dos votos, em março de 1906. O Brasil tinha 20 milhões de habitantes, mas Afonso Pena “tornou-se presidente com pouco mais de 288 mil votos”, registra Pietro Sant’Anna. Mas o país se tornou mais “inclusivo”. “A partir de 1906, a política passou a ser a dos grandes Estados, não somente a de São Paulo”, assinala o historiador. “Aquilo a que hoje chamamos ‘política do café com leite’ [aliança pra possibilitar o rodízio na Presidência da República de políticos de São Paulo e Minas Gerais] só ganhou uma forma acabada com a vitória de Afonso Pena.”
Antes de assumir o mandato, Afonso Pena viajou pelo país, para conhecer o gigante que não estava mas parecia adormecido. “Visitou ao todo dezoito capitais. Foi a primeira vez que um presidente se dedicou a uma espécie de ‘curso intensivo’ sobre a realidade nacional antes de assumir o cargo. Ao todo foram percorridos mais de 21 mil quilômetros — 16 mil por mares e rios e o restante por estradas de ferro.”
Em 2019, o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, decidiu montar uma equipe mais técnica do que política. Cento e treze anos antes, em 1906, Afonso Pena fez o mesmo. O presidente convocou advogados (alguns deles, formados na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, eram, no geral, positivistas), engenheiros e, como na escolha recente do presidente Jair Bolsonaro, militares. O que importava era a competência, não a indicação política. Irritados, políticos tradicionais apelidaram a equipe de “Jardim da Infância”. O ministro da Indústria, Viação e Obras Públicas, Miguel Calmon, era um engenheiro de 26 anos. Das reuniões do grupo “modernizador” participavam Euclides da Cunha, autor de “Os Sertões”, e João do Rio, celebrado cronista carioca.
Um dos objetivos de Afonso Pena era integrar o país. Por isso, em 1907, convocou o marechal Cândido Mariano da Silva Rondon para “expandir a rede telegráfica para a região Norte. A nova linha teria pelo menos 1.600 quilômetros, saindo de Cuiabá (MT) em direção ao Rio Madeira (AM) e depois até o Acre”.
Pietro Sant’Anna assinala que os objetivos da missão de Rondon “incluíam mapear a região ainda bastante desconhecida da bacia do Amazonas, inspecionar as fronteiras da Bolívia e do Peru e estabelecer contato com as populações indígenas locais. Era uma missão de integração nacional e de reconhecimento dos povos ‘primitivos’”.
Com sua equipe de jovens não fisiológicos, “estrangeiros” à política, Afonso Pena “também investiu pesado na expansão das ferrovias”. O ministro Miguel Calmon, ainda um garoto, comandou a operação de “atualização” do país. “O governo autorizou a construção das estradas de ferro do Noroeste do Brasil (ligando Bauru, no centro do Estado de São Paulo, a Corumbá, Mato Grosso, na fronteira com a Bolívia) e Madeira-Mamoré (em Rondônia), começou a expansão da Estrada de Ferro Central do Brasil até a região do Rio São Francisco e conectou as ferrovias de São Paulo e Paraná, finalizando a ligação por trem entre os Estados do Sudeste e do extremo sul.”
Por não ser neófito, Afonso Pena não geriu o país tão-somente com os jovens modernizadores, pois precisava do apoio dos políticos tradicionais. Os oligarcas do café, que pensavam o Estado como representante deles e não da sociedade, pressionaram e o presidente seguiu à risca o firmado pelo Convênio de Taubaté, de fevereiro de 1906. O objetivo desse “acordo” era “garantir o lucro dos cafeicultores”, que, afinal, “eram” mais “brasileiros” do que “os” (demais) brasileiros.
“O ‘Convênio de Taubaté’ previa a compra, por parte do governo, do excedente das safras de café, mantendo o preço do produto estável. Como essa aquisição seria financiada com empréstimos externos, era necessário adotar um regime de câmbio fixo, evitando que a avalanche de moeda estrangeira nos cofres do governo provocasse uma valorização excessiva da moeda nacional e prejudicasse os exportadores. Consequentemente, devia-se criar uma ‘Caixa de Conversão’ (espécie de ‘currency board’, ou ‘comitê monetário’), uma instituição pública responsável por fixar a taxa de câmbio e converter a um preço estável os recursos destinados à compra e à estocagem do café”, explica Pietro Sant’Anna. Em linguagem mais chã, o presidente, para avançar em determinadas áreas, subordinou-se à hegemonia econômica dos cafeicultores.
O governo conseguiu estabilizar o câmbio. Pietro Sant’Anna observa que “as ações do Banco do Brasil se valorizaram mais de 70% em um ano e as maiores oligarquias do país, especialmente as de São Paulo, estavam satisfeitas com o presidente cuja política econômica garantia seus lucros”.
O governo de Afonso Pena incentivou a imigração, tendo como lema “governar é povoar”. Em 1908, “o navio Kasato Maru trouxe 781 japoneses com destino às lavouras do interior paulista”. Na época, os japoneses eram considerados “melhores” do que os chineses. Dizia-se que os chineses “seriam pouco civilizados, ladrões, viciados, supersticiosos, sujos e indolentes; já os nipônicos eram altivos, higiênicos, trabalhadores”.
O governo não ia mal, mas Afonso Pena morreu, em 14 de junho de 1909, de pneumonia (ainda não havia antibióticos), logo depois de perder o filho Álvaro Pena. Ele tinha 61 anos. “Foi o primeiro presidente brasileiro a morrer no exercício do cargo.”
O primeiro político populista do Brasil
Nilo Procópio Peçanha assumiu a Presidência e governou o país por 17 meses. O novo gestor apoiava o Convênio de Taubaré, mas, sublinha Pietro Sant’Anna, “não era defensor convicto dos cafeicultores”, pois “estava mais interessado em diversificar a economia”. Não queria que o país dependesse exclusivamente do café, mas entendia que se tratava do produto decisivo naquele momento — como soja e carne são cruciais hoje tanto na pauta interna quanto na pauta das exportações.
Seguindo o projeto de Afonso Pena, Nilo Peçanha manteve “o processo de ampliação da malha ferroviária, concentrando esforços na conexão de estradas de ferro com regiões portuárias, especialmente no Nordeste. Modernizou o cais do porto do Rio de Janeiro para permitir o trânsito de navios maiores. Melhorou o fornecimento de eletricidade do Rio de Janeiro e intensificou a construção de linhas telegráficas”. O presidente criou, em 1910, o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) — precursor da Funai.
A indústria estava se fortalecendo, mas a mão de obra era desqualificada. Por isso, em 1909, Nilo Peçanha “criou a Escola de Aprendizes e Artífices, a primeira instituição não militar de ensino técnico do país”. Era um precursor do Senac e do Senai.
O Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio era, na gestão de Afonso Pena, um projeto. Nilo Peçanha colocou-o em prática. Seu objetivo era modernizar a economia do país, incentivando as áreas produtivas para além do café — fossem elas rurais ou industriais.
O Estado era visto, sob Nilo Peçanha, como indutor do crescimento e do desenvolvimento. A diversificação da economia, mesmo aceitando-se que o café era seu núcleo, passou a ser incentivada. Num primeiro momento, com a desvalorização da moeda, banqueiros, apoiadores dos produtores do café, ficaram contra. Mas a medida, ao final, deu certo, contribuindo para a ampliação das atividades econômicas do país.
A política do ódio não combinava com Nilo Peçanha. O presidente disse à imprensa que o mote de seu governo seria “paz e amor”. “Onde existe afeto, existe compreensão”, frisou. Ele governou sem dividir o país.
Até ali, o Brasil havia sido governado, fora os dois primeiros presidentes, os militares Deodoro da Fonseca (por sinal, monarquista) e Floriano Peixoto (nosso primeiro Costa e Silva, o general da década de 1960), por políticos que, mesmo não sendo, se queriam aristocratas. Nilo Peçanha passou a rezar por outra cartilha, pois gostava de se misturar com o povão. “Foi o primeiro presidente brasileiro de caráter mais popular — ou ‘populista’”, repara Pietro Sant’Anna. “As fotografias dele fazendo campanha a pé, rodeado por apoiadores, parecem cenas de um Brasil muito mais contemporâneo.”
Nilo Peçanha andava pelas ruas do Rio de Janeiro, conversava com comerciantes e discursava em praça pública. “Amava a arraia-miúda”, informa um biógrafo. Era conhecido como “o democratíssimo Nilo”. O presidente apreciava uma frase de Abraham Lincoln, presidente dos Estados Unidos: “Deus ama, sem dúvida, o povo simples; do contrário, não o faria tão numeroso”. A frase não saía da boca do caudaloso Nilo.
Pietro Sant’Anna caracteriza Nilo Peçanha, dada sua aproximação com a sociedade civil, não só com as elites, como “o primeiro político ‘moderno’ da nossa República”.
O sociólogo Gilberto Freyre publicou uma crônica, “Futebol mulato”, em 1938, na qual comparou a seleção brasileira ao estilo político de Nilo Peçanha. “Alguma coisa de dança e de capoeiragem marcam o estilo brasileiro de jogar o foot-ball, que arredonda e adoça o jogo inventado pelos ingleses”, escreveu o autor de “Casa Grande & Senzala”. O intelectual pernambucano ressaltou que o “mulatismo brasileiro” está cristalizado no modo de o presidente fazer política — que era marcado “pela flexão, pela surpresa, pelo floreio”. O político e os jogadores patropis eram, por assim dizer, malemolentes.
Em 1910, Nilo Peçanha, ao lado do condestável Pinheiro Machado, apoiou para presidente o militar Hermes da Fonseca, que derrotou Ruy Barbosa, o organizador da “campanha civilista”. A turma da política “café com leite” optou pelo marechal, deixando o jurista de lado.
Como ministro das Relações Exteriores do governo de Wenceslau Braz, Nilo Peçanha “assinou a declaração de guerra do Brasil à Alemanha”, em 26 de outubro de 1917, “colocando o país na Primeira Guerra Mundial”.
Em 1922, embora popular, Nilo Peçanha não foi eleito para presidente da República. O mineiro Arthur Bernardes o derrotou por 466 mil a 317 mil votos. Os currais eleitorais foram decisivos para a vitória de Bernardes. Nilo Peçanha morreu no dia 30 de março de 1923 (o Google aponta 31 de março de 1924), com problemas de vesícula. Tinha 56 anos. 50 mil pessoas foram ao seu enterro.
O presidente “mestiço” que amava cachorros
Fotografias sugerem que Nilo Peçanha era “branco” e seu cabelo preto seria “liso”. Na verdade, era “moreninho como o pai”. Pietro Sant’Anna pontua que “foi o único presidente mestiço da história brasileira e, como tal, precisou enfrentar o racismo de sua época” (o pesquisador certamente está tratando só do período).
A imprensa “branquificava” Nilo Peçanha, mas algumas publicações realçava seus “traços de negros”, conectando-o à África. A revista “Dom Quixote” não descurava de apontar sua ascendência.
Mulato e filho de padeiro, Nilo Peçanha apaixonou-se por Anita (Ana) de Castro Belissário Soares de Sousa. Mas o pai da jovem, o oligarca João Belissário Soares de Sousa, proibiu o relacionamento. O político e advogado tinha dois “defeitos”: era pobre e “mulato”.
Anita desafiou a família. Ela e o maçom Nilo Peçanha passaram “a procurar padres que aceitassem realizar o matrimônio em segredo”. Os dois se casaram, mas os pais não compareceram à cerimônia. O historiador Pietro Sant’Anna aponta que o “mestiço” não era bem-vindo à família de brancos “aristocráticos”.
O casamento entre Anita e Nilo Peçanha foi feliz, mas os quatro filhos do casal “nasceram mortos ou viveram apenas algumas horas”.
Sem filhos, Nilo Peçanha cercou-se de cachorros, que amava. Uma vez, em Nice, na França, resgatou um vira-lata, Niçois, da sarjeta e o trouxe para o Brasil.
Quando criança, Nilo Peçanha destruiu um ninho de pássaros e levou uma bronca de sua mãe. Era “pecado”, afinal, disse, “o ninho é o lar dos passarinhos. Foi construído por Deus”.
Nilo Peçanha apreciava sobretudo cachorros. Ele criou vários e alguns colhia nas ruas — tendo sido, possivelmente, um dos primeiros “protetores” da história do Brasil.
Numa carta ao seu pai, Nilo Peçanha anotou: “Aquele meu cão, tão belo, tão forte, tão meigo, tão meu amigo — o Beijo — morreu! Morreu de um mal de cadeiras, o pobre! A sua agonia tão lenta, tão dolorosa — e em meio dela, tão sugestiva a minha amizade e de Anita —, ainda nos traz tristes e inconsoláveis. Por um filho, quem sabe, eu não sofreria tanto”.
Talvez seja lenda, mas um político contou que o presidente Juscelino Kubitschek tinha um método infalível para descobrir se uma pessoa era “boa”. Acompanhava-a à sua casa e ficava observando se, ao chegar, seu cachorro fazia festa para ele. Se não fizesse, o indivíduo até poderia ser um político eficiente, mas não era boa pessoa.