O mundo dos homens sob o olhar feminino
16 abril 2016 às 16h02
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Adelto Gonçalves*
Especial para o Jornal Opção
“Para Fugir dos Vivos”, recém-lançado livro de Eltânia André, se divide em narrativas íntimas de dois irmãos e de seus distintos universos
A história da rivalidade entre dois irmãos é tão velha quanto a Humanidade. A Bíblia nos conta a história de Caim e Abel, os dois filhos de Adão, criados e educados da mesma maneira, mas com caráter e personalidades diferentes. E a de Esaú e Jacó, história dos filhos de Isaque e Rebeca, que inspirou Machado de Assis (1839-1908) a escrever um romance sobre a rivalidade entre irmãos gêmeos, tendo a mãe no centro da disputa. Recentemente, ainda na literatura brasileira, Milton Hatoum (1952) publicou “Dois irmãos” (2000), excepcional romance que relata um drama familiar, onde no centro estão dois filhos de imigrantes libaneses, os gêmeos Yaqub e Omar.
O tema serve agora para a escritora Eltânia André lançar o seu primeiro romance, “Para fugir dos vivos” (São Paulo, Editora Patuá, 2015). Mas, ao contrário dos romances citados, este se trata de um mundo exclusivamente masculino que é visto detidamente por um olhar feminino. Esta é a grande diferença.
Como se sabe, nos dias de hoje, é difícil encontrar um escritor que, por mais genial que seja, construa imagens insólitas, que não sejam conhecidas. Já as escritoras costumam escrever de maneira distinta, têm imagens completamente novas, constituem janelas para outro mundo, outra sensibilidade e outra forma de ver as coisas. E isto se constata exatamente quando uma autora compõe personagens masculinos. É exatamente o caso de “Para fugir dos vivos”.
Na apresentação do romance, o escritor Ricardo Ramos Filho faz um recorte do enredo e sublinha a principal metáfora do romance de Eltânia, a falta de delicadeza presente naquele universo; falta esta cortante como uma navalha:
“Tanto no Livro Um como no Livro do Miguel entramos na intimidade dos narradores, onde os dois irmãos filhos de Ismália, a Maria Comprida, com suas unhas de arranhar pesadelos, e do coveiro Fonseca e seu chapéu assustador, mergulham no passado às margens do rio Pomba, lugar onde nasceram, e desfilam tristezas que habitam o noturno de suas almas. Ali, de certa forma, morrem um pouco todos os dias, vítimas das rudezas de uma educação em que o silêncio sempre se faz incapaz de trazer ternuras. A falta de delicadeza presente é cortante como a navalha Monserrat Pou, que o filho mais velho ganharia do barbeiro.
E lá crescem vítimas de injustiças, castigos, mãos pesadas. E, quando recordam o sucedido, sentem ainda a mágoa presente, mesmo que distantes, afastados, vivendo fora dali, adultos.
Ao entrarmos em contato com as perspectivas de cada um deles, podemos observar a diversidade psicológica do humano. Os dois recuperando suas dores deslocados e tristes, na rápida visita de despedida.
Nas palavras bem escritas da autora destacam-se algumas preciosidades. Como no momento em que o menino recorda uma surra: arrepios percorreram o meu corpo, os pelos eriçados pela lembrança trazem à tona todo o afeto daquele instante com a eficácia devastadora de um câncer. Metástase na alma.
Nem sempre a nossa arma é o que a memória guarda.”
Irmãos
Com extremo lirismo e uma linguagem, às vezes, crua, nascida das ruas, Eltânia consegue criar dois personagens distintos: um pensador, destinado a escrever romances e contos, e outro ganancioso, intelectualmente limitado, cujo sonho seria o de se tornar um jogador de futebol famoso.
Do primeiro dos filhos, fica-se sabendo que deixou a casa paterna aos 17 anos, voltando apenas durante alguns natais, “mais para cumprir uma obrigação social do que por vontade ou prazer”. Ele foi lutar sozinho pela vida, custeando seus estudos com o suor do próprio rosto. Talvez por isso não tivesse uma leitura do mundo muito agradável: “não acredito nos homens, não acredito nas religiões, nem na política ou na filosofia, sequer no alívio material do consumo”, escreve em seu relato. “Ando assim, envergado, quase genuflexo, submetido à vida e aos seus horrores. Convivo com o vazio”, acrescenta.
Dos tempos de estudante, ainda em sua pequena cidade, não carregava boas lembranças: “Fiz parte do Grêmio Literário Machado de Assis e do Centro Acadêmico, mas, com o tempo, percebi que eram associações inócuas, sem força política, meras instâncias para organizar festinhas para estudantes e mimeografar um jornalzinho medíocre”.
Deste tempo de adolescente, tinha melhores lembranças da barbearia do Dário, onde lia os principais jornais do País. “Foi nesse mar de informações que recebi os primeiros bafejos intelectuais, lendo as colunas de Clarice Lispector, as crônicas de Carlos Drummond de Andrade e Carlinhos Oliveira, os textos de Manuel Bandeira, a coluna Incrível, Fantástico, Extraordinário, assinada por Almirante”.
Depois, já escritor conhecido, mas não consagrado, admite que seu maior prazer vem da literatura, e que uma resenha com crítica positiva de sua obra num diário de circulação nacional equivale a “uma descarga de libido superior a uma boa trepada”.
Já Miguel, depois de fracassar como jogador de futebol, carrega um misto de admiração e inveja pela carreira literária do irmão e não perde uma entrevista ou reportagem em que ele é citado. “Ele sempre diz a mesma lengalenga, que a literatura é a sua sobrevivência”, diz. Mas não deixa de ridicularizá-lo, ao lembrar que ele não subiu na vida, “continua com aquele salariozinho de merda”. E que “a literatura não salva ninguém nem muda o mundo nem paga as contas do mês”.
Ao contrário dele, que fez cursos de Economia e MBAs, seguiu carreira num banco, conseguiu ganhar dinheiro e garantir um patrimônio, o irmão mais velho continua na pobreza.
Acrescenta: “No Brasil, os escritores são menosprezados até pelos editores, ele me contou, numa entrevista, que tem uma coleção de nãos. (…) Pior, ganha apenas 10% sobre as vendas, num país de poucos leitores, isso é uma ninharia, são ignorados pelo grande público que só quer saber de linguagens frouxas, celebridades da televisão, duplas sertanejas, conjuntos eletrizantes ou de ritmos da Bahia”. Só faltou acrescentar: recebe 10% sobre as vendas dos livros, quando não ganha um calote do editor, o que é comum no mundo das pequenas editoras.
Por aqui se vê a maturidade literária que Eltânia já alcançou e que o leitor não perderá seu tempo em conhecer a sua obra, a não ser que seja adepto de duplas sertanejas ou de conjuntos eletrizantes.
Autora
Nascida em Cataguases, pequena cidade do interior do Estado de Minas Gerais que constituiu extraordinário celeiro de artistas da mais alta relevância para o País ao longo do século 20, Eltânia, formada em Administração e Psicologia, tem uma obra que já se destaca entre os autores da Literatura Brasileira.
É autora de “Meu nome agora é Jaque” (Belo Horizonte, Editora Rona, 2007), seu livro de estréia, e de “Manhãs adiadas” (São Paulo, Editora Dobra, 2012), ambos de contos, onde se destaca uma linguagem coloquial permeada de muito lirismo. Mantêm inéditos dois romances, um dos quais em parceria com seu marido, o poeta, contista e crítico literário Ronaldo Cagiano, que tem por título “Diolindas”, e “Desde o ventre”, romance juvenil. Tem ainda outro romance em elaboração, “Da varanda vejo o mundo”.
Um de seus contos, “Pedir pode, roubar não”, foi selecionado para integrar uma antologia que reunirá textos de autores brasileiros a ser publicada em edição bilíngue russo-portuguesa pelo Centro Lusófono Camões da Universidade Estatal Pedagógica Hertzen, de São Petersburgo, sob os cuidados do professor Vadim Kopyl, diretor da instituição, com o apoio da Embaixada do Brasil em Moscou. l
*Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de diversas obras.
Leia um trecho do livro “Para Fugir dos Vivos”, de Eltânia André
Hoje estou de volta, mas minha chegada não significa reconciliação.
O velho sitiante, no sentido contrário, prossegue em sua charrete com os latões de leite para a distribuição matinal. Os moradores do bairro, no recesso do final de semana, espalham-se pelas esquinas, alheios aos dramas do mundo, absortos nas tarefas cotidianas. Como se viver fosse tão banal quanto o futebol — pensei ao observar o grupo que jogava pelada, próximo a uma várzea. A mulher varria a calçada, como se nada mais fosse urgente e o mundo não fosse também um cenário de horror, guerras, fanatismo, abandono, miséria, terror. Outros pedalavam suas bicicletas, movidos pela calma de chegar (em algum lugar! Ou lugar algum!).
Fui me alimentando do que via à frente, e, por um descuido, sem resistência alguma, deixei que a saudade me tomasse. Pelo mundo mágico e fantasioso, ele veio em minha direção, correndo, com a alegria própria de quem está prestes a alcançar o pódio. E num impulso atlético, mergulhou em mim, deu-me um abraço longo e etéreo (ele, o menino, que eu deixei trancafiado no porão quando saí para nunca mais voltar), como se eu fosse seu oásis. Ele sedento de mim, temendo o apartheid, insultou-me com o seu desempenho. Surpreso, eu não tive chances de esquivar-me dele. Ele, novamente, colado em mim, habitando-me, como se fosse dar-se por inteiro: o menino que fui, fluía. Esse menino-eu, bem mais forte que o homem, fez-se alicerce, e eu o escalei para olhar o horizonte. Mas ele, soterrado pelo tempo com pesadas patas, quase nunca emerge por inteiro, mas os seus olhos rastreiam-me, tentando alcançar-me. Sempre sou contaminado por ele, não o esqueço, mas não o absorvo por inteiro, assim permaneço entre ele e eu — esses dois países. O território fértil da infância e o deserto que sobrou de mim. Pensei que havia sepultado o passado, mas o menino aponta para o ontem e ainda carrega desejos incontidos.
(…)
O tempo presente enfrentando o caos insistia em demorar-se, enquanto meus pensamentos, num acelerado percurso íntimo, iam vasculhando a nossa história, tentando fazer a melhor colheita dos dias de nossa convivência (e agora finito — Será?), insistindo em vir à tona a gratidão do filho pela mãe, mas o que submergiu foi piedade e culpa. Era chegado o momento da constatação de que o novelo que desfia a trajetória humana está condenado a um fim, sempre. Há um momento em que não há mais labirinto a percorrer. A sensação de que as paredes estreitavam-se provocaram a sensação de que o ar contaminado não me deixava respirar. Amparei-me na ilusão, na expectativa de que houvesse um engano; talvez Ela ainda respire. Posso pedir ajuda ou gritar por socorro. O som da melodia ultrapassando, com sutileza, o gradil de madeira da janela, foi sendo substituído por ecos imaginários, tambores reverberavam, sinalizando o encontro com o real, implacável duelo com o imponderável. Fui tomado por uma forte vertigem, apoiei-me num móvel, ali fiquei na esperança de que fosse mais um dos meus pesadelos, mas tudo estava lá, da mesma forma fria. Precisava agir.
Aproximei-me da cama. Acho que murmurava algo. Fui reaprendendo a palavra. Mãe!? Minhas mãos, em gestos autômatos, sacudiram levemente o seu ombro, repousando no corpo imóvel. Ainda estava quente, distante da rigidez glacial — estaria dormindo? O espinho da garganta soltou-se e a palavra, por tantos anos impronunciável, censurada, veio como uma explosão. Mãe! Mãe! Mãe! Mãe! Mãe! Mãe! Mãe! Mãe! Mãe! Acorda! Mãe, por quê? O pote de veneno esvaziou-se e sobrou o que não reconheço em mim.
Eltânia André