Lançado pela editora Três Estrelas, ‘Quase Antologia’ reúne textos do jornalista publicados na Folha de São Paulo entre 2005 e 2017. Título, organizado por Bernardo Ajzenberg, teve como principal critério a necessidade de expor a abrangência temática do jornalista, conhecido por seu olhar sagaz e estilo indefectível

Cony: conhecido por seu olhar sagaz e estilo indefectível | Foto: Reprodução

Carlos Heitor Cony foi um operário da palavra. E ao longo de sua vida profissional trabalhou muito. Mas muito mesmo! Foram 50 anos de atividade quase que ininterrupta. Neste período, escrevia uma, duas, três vezes por semana, ou até mesmo diariamente. Cony só pararia de escrever para a página 2 do jornal Folha de S. Paulo poucos dias antes de morrer, em 5 de janeiro de 2018, aos 91 anos. Em meio a tanta coisa escrita, praticamente nenhum assunto ficou fora do radar deste jornalista, conhecido por seu olhar sagaz e estilo indefectível.

Para quem não teve a oportunidade de “conhecer”, a oportunidade chega agora por intermédio do livro Quase Antologia, da Três Estrelas, justamente o selo editorial da sua antiga casa, a Folha. O volume reúne 230 das mais de 1500 crônicas assinadas pelo jornalista (foram 1.700, para ser mais exata). A organização é do escritor e tradutor Bernardo Ajzenberg, que também foi ombudsman e secretário de Redação do jornal. Ele adotou como principal critério de escolha dos textos a necessidade de expor a abrangência temática do jornalista.

Nada escapava ao escrutínio perspicaz de Cony. Desde a tríade que nunca se discute, política-religião-futebol, às frivolidades dos realities shows, passando pelos fatos que ganham os noticiários e historietas típicas do cotidiano carioca. Episódios marcantes da história da humanidade, mas sempre com os pés na atualidade, o que lhe permitia estabelecer paralelos interessantes, como o que ele faz na crônica “De Proust a Agnaldo Timóteo”. Perfis de grandes personalidades também estavam no seu repertório. Sua veia crítica também era bem eclética; Lula, Dilma, Fernando Henrique Cardoso… ninguém passou ileso.

Não tinha bola perdida para Cony. Fosse o assunto que fosse, ele matava no peito e chutava para o gol. Aliás, o Fluminense, time do coração, é mencionado em oito dos textos do livro. Os escritos de Cony são tiros certeiros, pois impressionam pelo poder de síntese, dizendo muito com poucas palavras, que juntas transbordam expressividade.

Com uma diagramação leve, a leitura de Quase Antologia flui agradável e o volume traz ainda um índice remissivo, para que o leitor possa eleger o assunto que mais lhe apraz, tendo a liberdade de estabelecer seu próprio itinerário temático. Curtos, os textos são próprios para ser lidos aleatória e descompromissadamente, degustando um cafezinho após o almoço ou mesmo à espera daquela consulta que certamente vai atrasar. Afinal, Cony também é isso. É uma ótima pedida para que os leitores possam conhecer o imaginário deste cronista, que sagrou-se como um dos grandes escritores de sua geração.

Quem foi Cony?

Jornalista e escritor, Carlos Heitor Cony (1926-2018) é autor de romances como O ventre (1958), Pessach: a travessia (1967), Quase memória (1995) e A casa do poeta trágico (1997), além de livros de crônicas e de contos. Trabalhou em vários veículos de imprensa: Rádio Jornal do Brasil, Correio da Manhã, Rede Manchete, entre outros. Era colunista da Folha de S.Paulo e membro da Academia Brasileira de Letras, da qual recebeu, em 1996, o Prêmio Machado de Assis pelo conjunto de sua obra.

Título: Quase Antologia: As Melhores Crônicas de Carlos Heitor Cony na Folha de S. Paulo
Organizador: Bernardo Ajzenberg
Editora: Três Estrelas
Valor: R$ 43,37

TRECHOS DO LIVRO

COMO TIRAR UM CAVALO DA CHUVA

Ingredientes: um cavalo; uma chuva.

Modo de preparar: pega-se um cavalo que esteja na chuva e, usando de persuasão ou de força, obriga-se o animal a se dirigir a um lugar seco, onde deverá ficar até que a chuva passe.

Modo de usar: são inúmeras as vantagens de tirar um cavalo da chuva, qualquer cavalo, da chuva, de qualquer chuva. Chuva e cavalo podem se misturar, mas há que tomar cuidado para não prejudicar a natureza dos ingredientes, ficando o cavalo molhado demais e a chuva, que deveria fecundar o solo fazendo nascer o trigo e as flores do campo, molhar inutilmente o cavalo, que não produz flores nem trigo.

Outro mérito de tirar o cavalo da chuva, sobretudo para quem não dispõe de cavalo, mas está sujeito a chuvas e trovoadas, é fazer o que deve ser feito, ou seja, tirar o cavalo da chuva e, se possível, tirar a si mesmo da chuva.

Sabe-se que quem está na chuva é para ser molhado. Recomenda-se tirar o cavalo da chuva em ocasiões especiais, como votações no Congresso, prorrogações de medidas provisórias, reescalonamento de dívidas públicas, cargos e funções.

É preferível tirar o cavalo da chuva, mantendo-o enxuto, a enxugá-lo depois de molhado. Em caso de dúvida, para saber se o cavalo está molhado ou não, aconselha-se um relatório do senador Epitácio Cafeteira.

Convém, contudo, não exagerar e, a pretexto de enxugar o cavalo molhado pela chuva, enxugar os orçamentos da saúde, da educação, dos transportes, da segurança.

Como servir: com o cavalo fora da chuva, pode-se fazer muita coisa ou nada fazer. Em ocasiões mais críticas, o melhor é montá-lo e partir indignado em todas as direções. (Esta crônica é dedicada a todos os cavalos que estão na chuva.)

19.6.2007

UM FILHO SEM MÃE

Tinha de acontecer comigo. Em ida banal a uma repartição para revalidar um documento, preenchi um cadastro que me exigia a filiação. Nunca tive problemas nesse quesito. Escrevi o nome de meus pais como sempre os escrevi.


O funcionário que me atendeu tirou de uma pasta outro documento e engrossou:

– Nesta certidão aqui, o nome da senhora sua mãe é Morais, com “i”. O senhor declara agora que a senhora sua mãe é Moraes, com “e”. Afinal, de quem o senhor é filho?

Respondi, um pouco insultado:

– De Julieta de Moraes Cony. Ou de Julieta de Morais Cony. Para mim, sempre deu na mesma.

– Para o senhor, sim, mas para o Estado, não. Há que decidirmos de quem o senhor é realmente filho para que o documento possa seguir o trâmite legal.

Já tive crises ontológicas a meu respeito e a respeito da humanidade. Quem somos, de onde viemos, para onde vamos, o que estamos fazendo neste mundo etc. Essa me pegou desprevenido, no contrapé. Passei a vida inteira julgando-me filho de minha mãe, de um velho tronco familiar de Três Rios, no norte fluminense.

De repente, o mundo desaba sobre mim. Não posso provar que sou filho de uma Moraes ou de uma Morais. É como se não fosse filho de mãe alguma, nasci de uma proveta que nem existia no tempo em que vim ao mundo.

Outro dia, relendo Machado de Assis, em homenagem ao badalado centenário de sua morte, dei com aquele político que fez um discurso na Câmara, e os anais daquela sessão registraram sua fala trocando a palavra “dúvida” por “dívida”.

O sujeito queria destruir o mundo por causa de um “i” no lugar de um “u”. Ameaçou derrubar o governo, acabar com as instituições. Eu não cheguei a tanto, mas confio no novo acordo ortográfico, que me dará a mãe que não tive.

9.10.2008