Mirandês é a segunda língua de Portugal

21 janeiro 2021 às 16h20

COMPARTILHAR
Cerca de 10 mil pessoas da terra de Camões, Eça de Queiroz e Fernando Pessoa falam a língua

Portugal sempre nos surpreende com um fato histórico ou cultural. Fico sabendo que existe uma segunda língua oficial em terras lusas: o Mirandês.
Não é propriamente uma língua; seria mais um dialeto, falado por um número restrito de pessoas na localidade de Miranda do Douro, distrito de Bragança, na fronteira com a Espanha, não muito longe de Valladolid. Tem correspondente espanhol: o dialeto astúro-leonês, falado do outro lado da fronteira.
Embora falado por apenas cerca de 10.000 pessoas em Portugal, o Mirandês tem todo o tratamento de língua oficial, e no concelho de Miranda do Douro existe o ensino da língua nas escolas, fazem-se saraus literários, publicam-se livros e as placas da cidade ostentam as duas línguas, o Português e o Mirandês.
Na Europa Latina, ao contrário do que acontece nas Américas, existe uma diversidade linguística de base romana. São pegadas da passagem do Império Romano pelo continente europeu afora. Na Itália contam-se cerca de trinta dialetos, como o Veneziano, o Sardo, o Piemontês e outros; na Espanha são conhecidos vários, como o Basco e o Catalão; na França, o Occitano, o Provençal e muitos mais. O mesmo acontece na Romênia. Em Portugal surge o Mirandês, com seus cultores, como Francisco Niebro, pseudônimo do poeta Amadeu José Ferreira (1950-2015), também professor, que, entre outras façanhas, traduziu para o Mirandês “Os Lusíadas”, partes da Bíblia, poetas gregos e até a revista em quadrinhos francesa Asterix. Ou como outra poeta, Adelaide Monteiro Alves, nascida em 1949, e em plena atividade.
Portugal sempre foi terra de poetas. Eles também existem em Mirandês. E são bons.
Seguem algumas amostras, no original e em tradução livre, como esta, de Adelaide Monteiro:
Um Mirar Um Olhar
Era fin de tarde ne l miu mirar Era fim de tarde em meu olhar
Mirar de ouserbaçon i spera. Olhar de contemplação e espera
Fin de tarde de dias largos, Fim de tarde de dias longos
De sol abatido, De sol lânguido
De çponer debagaroso i atiradiço. De pôr de sol lento e sedutor
Bundare um liebe piçtanhar Bastaria um leve pestanejar
Para que las fuolhas se alborotassem nel miu mirar. Para que as folhas se agitassem em meu olhar
Spreito la medorra i entro nielha. Espreito a quietude e entro nela
L antardecer abraça ls mius pensares, O entardecer abraça meus pensamentos
La nuite a deixarse cair a pouco A noite deixa-se cair lentamente
Beisa las mias chocheiras. Beija minhas loucuras
Era fin de tarde ne l miu mirar Era fim de tarde no meu olhar
E fui nel que me ambaí E foi assim que em ti me detive
Abaixei del debagarico cumu quien quiere ber Desci lentamente como quem quer ver
De mais acerca, suberti, i, De mais perto, planei e
Assi que bi cun clareza ls lhemitis, Assim que vi com nitidez os contornos
De l tuo corpo, cumo an bollo relistro, De seu corpo, como em voo picado
I águila certeira a la caça, A águia, com golpe certeiro à caça
Botei-me subre ls tuos cheiros, Lancei-me sobre teus perfumes,
I, cun un stremeçon, E, com um estremecimento,
Ls pensares adonde m´habie ambarado spertaron, Os pensamentos em que me tinha detido
acordaram,
I alhá staba you ancandillada a mirar-te, E ali estava eu a olhar-te com enlevo,
a sorber sfregante a sfregante. A sorver cada momento
Fui assi que bi em l miu mirar Até sentir que no meu olhar
Ya num moraba el fin de tarde. Já não morava o fim da tarde
Cumo huorta regada, era manhana. Como horta regada, era manhã
Ou estes versos, também de Adelaide Monteiro, numa homenagem a Amadeu Ferreira.
Tirei-os de um opúsculo, cujo titalo (título) é “Cadernico de Poemas na Mirandês” (Caderninho de Poemas em Mirandês), no qual aparecem poemas traduzidos do Português para Mirandês, e cujo outor (autor) é o grande poeta luso Antonio Salvado:
Hei-de poner le tou nome a um jardin, Hei de dar teu nome a um jardim,
Manuel Ferreira Manuel Ferreira
Bi la tue risa Vi o teu riso
Quien sticará l die madrugada afuora, Quem prolongará o dia madrugada afora,
Quando l silêncio mora na cidade? Quando o silêncio mora na cidade?
Quien será farol na aldê Quem será farol na aldeia
Apuis que las bumbielhas de la ruga Depois que as lâmpadas da rua
S´apáguen? Se apaguem?
Quien será cumpanha Quem será companhia
Apuis que ls delores apérten? Depois que as dores chegarem?
… …
Hoije a la pormanhica Hoje de manhãzinha
Quando bi ua flor acabada d´abrir Quando vi uma flor recém-aberta
I a mirar para mi cun ua risa aberta, E a me olhar com um riso aberto,
Bi nessa flor la tue risa. Vi nessa flor o teu riso.
E para terminar, uns versinhos de Antonio Salvado:
Enquanto houver lua
Dormirei sossegado
Nas meninas de teus olhos
Que em mirandês seriam:
Anquanto houbir lhuna
Drumirei assossegado
Nas meninas de ls tous uolhos