Miguel Jorge, autor de todos os gêneros: pra toda a vida

02 julho 2023 às 00h00


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Luiz de Aquino
Era um domingo, 1977 (acho que outubro), quando um grupo de amigos apaixonados por contos e poemas formou-se nas imediações do BEG, na Praça do Bandeirante. Éramos Taylor Oriente (recém-chegado de Paris, onde concluíra o mestrado), Roberto Fleury Curado (que naquele ano estreara com o livro “Cemitério de Gritos” — contos), Miguel Jorge e outros. Acho que o artista plástico Gomes de Sousa estava nesse grupo; e havia também um jovem mal chegado à mocidade, isto é, pouco mais que adolescente, chamado Carlos DaCruz (ele, então, já emendava assim as partículas de seu nome e já se fazia conhecido, o DaCruz).
A conversa era muito, muito animada. Miguel revolucionava o meio artístico da cidade; ele vinha de ser o secretário-geral da UBE — a nossa União Brasileira de Escritores em Goiás, quando o presidente era o jornalista (e poderoso empresário de comunicação) Jaime Câmara. Os impedimentos na agenda do presidente exigiam de Miguel muita dedicação e trabalho; ao término do mandato de “seu Jaime”, Miguel foi eleito presidente.
A entidade dos escritores de Goiás viveu, então, um rico período em sua existência. Miguel Jorge, farmacêutico, advogado e licenciado em Letras, vivia, como é de sua personalidade, tempos de muitas atividades: professor de Farmácia e de Letras, gestor cultural e autor — nós o temos na conta de um “autor de todos os gêneros”, considerando seu trânsito do teatro ao conto, da poesia ao romance, a ocorrência de obras suas levadas para o cinema e até mesmo para a ópera. Na década anterior (a de 1960), integrou o Grupo de Escritores Novos (GEN) e foi, por duas vezes, seu presidente. Esse grupo marca a entrada definitiva das letras de Goiás nos tempos modernos — com um indiscutível atraso de 40 anos.


Como se não bastasse, registro também a elevada competência de Miguel Jorge como crítico literário e artes, com projeção — e o equivalente respeito — de que desfruta nos maiores centros de letras e de artes do país.
O presidente da UBE, como era de se esperar, sabia obter espaços na mídia, na época, constante de alguns jornais impressos: “Folha de Goiás”, “O Popular” e “Cinco de Março”, os principais, pela ordem cronológica de seus surgimentos.
O quadro de associados da UBE cresceu bastante, com o despontar de novos autores, especialmente contistas e poetas. E Miguel assustou a cidade, então com cerca de 400 mil ou 500 mil habitantes, com a realização de vários eventos. Dignos de maiores registros estão as exposições de poemas-cartazes e a criação do Troféu Tiokô. A palavra tiokô, da linguagem dos carajás, quer dizer “boneca”, e Miguel recorreu à artista italiana Dina Cogolli, radicada em Goiânia, que esculpiu a estatueta. O troféu passou a ser entregue a personalidades que se destacassem nas artes e na comunicação em Goiás.
Quanto às exposições de poemas-cartazes, o poeta aliava-se a um artista plástico e a dupla oferecia seu trabalho; o poema era transcrito no cartão, com a interpretação plástica do artista (esclareço, antes que me cobrem: não sou adepto do “português ideológico”, ou seja, aplico aqui o masculino como genérico).
Foi no tal domingo do inesquecível encontro que mostrei ao Miguel uma folha datilografada e lhe ofereci, indagando: “O que acha disto?”. O hiperativo presidente respondeu-me: “Um belo poema”. E, ato contínuo, passou-o ao jovem pintor: “Veja aqui, DaCruz, vocês podem fazer essa parceria” — foi o modo como ele nos inscreveu, a mim e ao moço artista, para a exposição que aconteceria dali a poucos dias num bar da Avenida 24 de Outubro, em Campinas.
Nessa exposição, recordo-me, o poeta Ademir Hamu também estreou em eventos da UBE; e nos dias seguintes, Miguel nos ofereceu o formulário para que nos inscrevêssemos como escritores filiados à entidade. Desse mesmo evento, e estou quase certo de que sim, Ubirajara Galli também participou, posto que estreara, como Roberto Fleury, com livro em 1977 — Roberto com contos e Galli com poemas. No comecinho da década de 1990, Ubirajara Galli presidiu a UBE por dois períodos; hoje, preside a Academia Goiana de Letras.
No biênio 1996-98, sucedi Galli na presidência da UBE. Resgatei a outorga do Tiokô, interrompida por dificuldades financeiras que inviabilizavam quase tudo na esfera cultural, e, ao fazê-lo, tive o zelo de propor à diretoria dois contemplados: Eli Brasiliense, então já com limitações locomotoras, pelo Conjunto da Obra; e ao Miguel Jorge (que já fora contemplado com uma boneca carajá), mais um troféu do mesmo feitio, e justamente por ter sido o criador do que ele mesmo apelidou “o Oscar do cerrado”.
Miguel Jorge: sempre atualizado
Conversando com a escritora — e confreira acadêmica da AGL — Maria Helena Chein, pedi-lhe uma referência ao Miguel. Lena (como gosto de chamá-la) foi — como bem cabe a uma autora talentosa — sucinta e ampla, neste texto: “Miguel foi professor na Faculdade de Farmácia da UFG. De manhã mexia com cremes, pomadas, remédios e, à tarde, com poesia, prosa, livros. Depois que se aposentou, intensificou o trabalho nos vários segmentos da criatividade. Viajava a São Paulo e ao Rio de Janeiro, pelo menos duas vezes ao ano, para assistir a peças de teatro, ver exposições de artes plásticas e encontrar-se com escritores. Ainda hoje, mantém-se sempre atualizado no mundo cultural”.
Sim, é isso mesmo. Somos, todos nós, os que tivemos o privilégio de conhecê-lo naqueles primórdios, testemunhas capazes de corroborar essa descrição da nossa amada Lena. Atrele-se a isso, ainda, as inegáveis, sempre, palavras de estímulo — e correção, quando necessário — que Miguel proporciona aos principiantes; ou mesmo a companheiros tradicionais, sempre que necessário.
Depois dele, e na ordem do tempo, presidiram a UBE Aidenor Aires, Luiz Fernando Valladares, Kleber Adorno, Brasigóis Felício, Coelho Vaz, Iuri Rincon Godinho, Ubirajara Galli, eu próprio, Coelho Vaz novamente, Maria Luísa Ribeiro, Edival Lourenço e o atual, Ademir Luiz. Acredito que estes (espero não ter pulado ninguém) concordem com o que proponho agora ao presidente Ademir, que certamente exporá o tema à Diretoria: acompanho os feitos de Miguel há exatas seis décadas continuadas de atividades literárias (sei que há alguns aninhos mais, pois estou falando do período em que o conheço) e pelo tanto que já proporcionou às letras e às artes de Goiás, uma homenagem especial: o título de Presidente Ad Vitam, da UBE de Goiás, ao incansável Miguel Jorge.
Luiz de Aquino, membro da Academia Goiana de Letras e ex-presidente da UBE Goiás.