Josiane Adorno mostra a conexão entre o artista plástico francês Louis Bernard Tranquilin e Uruaçu
13 junho 2021 às 00h00
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A dissertação de mestrado une o relato histórico, a narrativa biográfica e a memória afetiva em torno do francês que elegeu Uruaçu para morar e desenvolver sua arte
Itaney Campos
Especial para o Jornal Opção
No oceano de superfluidades em que se navega nas redes sociais, deparei-me, há pouco, com um registro interessante, noticiando a existência de uma dissertação de mestrado em História, cujo objeto de pesquisa envolvia a história de Uruaçu, minha cidade natal. E, mais, estabelecia a conexão entre a história da cidade e a obra e a vivência, naquela urbe, de um artista francês que ali se estabelecera por vários anos, de nome Louis Bernard Tranquilin (1934-2006)
O título do trabalho era instigante, provocativo, vazado nos seguintes termos: “Relações cruzadas: cidade e artista — um estudo de caso sobre Uruaçu e a produção artística pública de Louis Bernard Tranquilin”.
O título me soou fascinante, por revelar a proposta de análise de uma produção artística no contexto de uma determinada realidade urbana, a interação entre o produto artístico e os citadinos a quem ele se desvelava. Achei de grande inteligência a escolha do objeto da pesquisa e muito feliz o título aposto ao trabalho. Eu sabia de quem se tratava Louis Bernard. Referiam-se a ele como Louis, e até já vira, sem a devida atenção, alguns trabalhos seus, possivelmente murais.
A se inferir dos comentários, era um arquiteto, que não se esquivava, porém, de ingressar na área das artes plásticas, fazendo-o com aparente desenvoltura.
A autora, Josiane das Graças Adorno, não fazia parte do grupo das minhas relações de amizade. Mas o sobrenome Adorno soava muito familiar, por se tratar de família que, nas gerações anteriores, entrelaçara-se com os Fernandes de Carvalho, meus ancestrais. Fiquei gratamente surpreso ao saber que ela integrava a Academia Uruaçuense de Letras, entidade a que também eu pertencia, ainda que se cuidasse de uma instituição de poucas realizações práticas.
A circunstância de tratar-se de uma mestra em História, pela respectiva faculdade, da Universidade Federal de Goiás, um curso de excelência, determinou meu interesse por ela e seu trabalho acadêmico. Com aquela informalidade própria das comunicações por redes sociais, pedi-lhe permissão para ler a pesquisa, solicitando que enviasse o arquivo por meio eletrônico.
Josiane Adorno não se fez de rogada e, dois dias depois, o arquivo integral estacionava em meu endereço eletrônico. A mestranda apresentava um respeitável currículo de pedagoga, psicóloga e historiadora, dedicada a projetos de educação e ensino público. No mesmo dia, entreguei-me, cada vez mais encantado, à leitura da narrativa, bordada com capricho, rigor e sólido embasamento teórico. Os grandes nomes da historiografia moderna estavam ali presentes, direcionando a linha narrativa, numa perfeita contextualização fática e argumentativa.
O trabalho subdivide-se em três capítulos, a partir de substanciosa apresentação do seu conteúdo, pela pós-graduanda.
O capítulo inicial trata da memória e história na formação da cidade do Norte goiano, apoiando-se a autora nas narrativas constantes do livro do “historiador” oficial da região, Cristovam Francisco de Ávila, a quem é dispensado a qualificação, correta, de memorialista.
Com delicadeza, a autora faz a crítica ao relato memorialístico, sem descuidar dos aspectos da parcialidade da narrativa e do lugar de fala do narrador, membro da tradicional família Fernandes de Carvalho, proprietários originais da fazenda Passa-Três, que deu origem ao aglomerado urbano. Reconstitui-se o relato memorialístico, em seus aspectos principais, com visão crítica, sem refutação, porém, da veracidade dos fatos narrados.
Cuidadosa, a acadêmica não deixa passar sem destaque o tom afetivo e quase poético dos registros de Ávila. Em certos momentos, descrição memorialista transpõe-se para o plano ficcional, com registros de diálogos imaginários, carentes de fontes históricas. O memorialista se reporta à narrativa oral dos seus antepassados. Funciona aí a memória, sujeita a falhas, esquecimento e afetividade. A dissertação acolhe a narrativa, mas o faz nos devidos termos, frisando o caráter objetivo e sistemático da história, em oposição à memória. Entram Jacques Le Goff, Lucien Febvre e Pierre Nora, com seus estudos sobre o papel da memória na historiografia.
No capítulo dois, a autora se curva sobre o temário: o intelectual e a cidade, descrevendo a chegada e o encontro de Louis Bernard Tranquilin com a pequena urbe onde ele veio a fixar-se, em meados da década de 1970, já tendo se radicado no Brasil desde o ano de 1960.
O que se tem aqui, até a conclusão do estudo, é uma perspectiva amorosa do biografado, sem desapreço, porém, à realidade dos fatos. Produzindo com invulgar tessitura a micro-história, focada na rica personalidade do artista francês, Josiane não perde de vista as lições da historiografia contemporânea, com as quais vai urdindo o relato da vida, de certa forma dramática, do multiartista.
A pesquisadora registra que em Nice, Côte d’Azur, Louis Bernard Tranquilin teria feito o curso de Belas Artes, além de Arquitetura. Esteve no Senegal, na África, onde foi paraquedista e, por fim, emigrou em 1961 para o Brasil, radicando-se em Brasília, a nova capital. Ele teria exercido e estudado vários ramos de atividades profissionais, tornando-se enfim horticultor, pintor, arquiteto, escultor e professor de belas artes.
Visitando as fontes primárias, colhendo depoimentos dos que conviveram proximamente a Louis, deixando falar o próprio Louis, por intermédio da transcrição de trechos de seus depoimentos e entrevistas, Josiane, conhecida como Jô, consegue traçar um esboço vigoroso do perfil psicológico do artista em sua teia de relações humanas na cidade, incluídos aí os alunos, que tiveram maior proximidade com ele, autoridades, religiosos e comerciantes, para os quais ele realizou obras escultóricas e artísticas.
No capítulo 3, a pesquisadora avança corajosamente por um terreno movediço, de difícil abordagem, adotando como título a proposta de encontrar a narrativa da cidade nas imanências do olhar estético do artista. E é assim que designa o texto desse capítulo, em cuja sequência se abre, sem clausura, um fecho dissertativo: “O artista e a cidade nas imanências dos olhares”.
Na parte conclusiva do seu trabalho, Josiane Adorno, advertindo tratar-se de uma conclusão em aberto, procura apontar a imanência do olhar do artista sobre a cidade utilizando-se do conceito dialético do criador que vai se conformando na medida do ato de criação, e enumera as obras do dublê de arquiteto e escultor na cidade e na região, com destaque para o monumento do pássaro, com as asas abertas, a alçar o seu voo. Originariamente, a ave levava nas garras um animal, similar a um veado, abatido. O intuito do artista teria sido indicar o poderio do pássaro. Com a repercussão negativa da imagem escultórica, motivo de chacota no meio popular, o prefeito solicitou a retirada da presa, remanescendo apenas a gigantesca ave. O escultor lamentou a incompreensão da comunidade, mas nada pôde fazer senão supervisionar a retirada de parte do grupo escultórico.
Cabe observar aqui que, apesar de haver ilustrado o trabalho com fotos de dezenas de telas do artista, a autora não se deteve na análise técnica da produção artística e arquitetônica de Louis Bernard. Descreve, en passant, os temas e paisagens retratadas, mas não avalia a qualidade artística desse acervo. Não se demora nessa tarefa, mas sugere e até parece comprometer-se a um estudo mais profundo da obra do francês.
A impressão que se tem é de que Louis é um pintor acadêmico, com telas de boa composição pictórica, mormente no temário paisagístico, floral e natureza morta. Como já dito, a pesquisa impressiona pela trama tecida pela autora, ao conjugar a história pessoal do artista, a evolução histórica da cidade e a interação entre o artista estrangeiro e o provinciano núcleo urbano em que produziu sua obra.
Merece destaque, ainda, a riqueza dos depoimentos colacionados pela dissertante nos anexos do trabalho. Depoimentos e entrevistas realizados com contemporâneos e alunos do artista ajudam a compor, com detalhes, o seu perfil humano, dando-lhe o colorido que a narrativa técnica não consegue. Acrescem-se a isso excertos de depoimentos e confidências feitas pelo próprio personagem, possibilitando entrever-se uma espécie de autorretrato psicológico do arquiteto, cujos dois últimos anos de vida foram de grandes tormentos, deflagrados por um tumor maligno e incapacitante. A dissertação de Josiane Adorno é uma primorosa manifestação historiográfica em que se entrelaçam o relato histórico, a narrativa biográfica e a memória afetiva em torno do trabalho desse francês que elegeu a cidade de Uruacu para morar, e ali expandiu a sua extraordinária capacidade criativa, como botânico, arquiteto, pintor e escultor. E se não bastasse o alto interesse do tema, o relato é de saborosa leitura. Vale muito ser lido.
Itaney Campos, escritor e crítico, é colaborador do Jornal Opção.