Godard antecipou os movimentos de maio de 1968

25 novembro 2018 às 00h00

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Clássico “Bando à Parte” (Bande à part) reflete sobre os caminhos tomados pela juventude francesa que desembocariam no conflito entre educação tradicional e educação moderna, colocado em destaque durante as rebeliões estudantis do período

Gabriel Costa Pereira
Especial para o Jornal Opção
Algumas vezes a sensibilidade artística permite antecipar, ou mesmo anunciar, desdobramentos de complexos processos históricos. Podemos considerar que foi isso que aconteceu com o cineasta francês Jean-Luc Godard ao lançar o clássico “Bando à Parte” (“Bande à part”, no original) em 1964. Seu filme reflete sobre os caminhos tomados pela juventude francesa que desembocariam no conflito entre educação tradicional e educação moderna, colocado em destaque durante as rebeliões estudantis de maio de 1968, que nascem no incidente na Université Paris Nanterre. Cinquenta anos se passaram e é interessante refletir sobre esse tema à luz do tempo.
Godard se define como um Terrorista Conservador, ou seja, sua visão de mundo é por natureza contestadora, mas realista. Já em 1968, ele se pergunta se a juventude francesa realmente tinha seriedade para protagonizar magistrais acontecimentos? Godard é cético com relação aos reais ideais da juventude parisiense. Os personagens de “Bande à Part” estão mais preocupados com diversão e velocidade do que com questões políticas e sociais. Tudo acontece, literalmente, depois das aulas. Seus problemas com a justiça ocorrem mais devido a irresponsabilidade do trio de protagonistas do que necessariamente em função de questionamentos ao status quo da sociedade burguesa. Ainda assim eles são uma espécie de “heróis imperfeitos”, a vanguarda de uma nova juventude que nascia e teria sua apoteose quatro anos depois, em 1968.
Para Godard, a modernidade venceu e, antropologicamente falando, montou uma força de resistência contra os reacionários. A educação moderna perpetrará por outros meandros e esses garantiram a modificação da estrutura social. “Pois que, a verdadeira civilização do nosso tempo não é a reacionária de direita, encarnada pelo Express ou pelas peças de Sartre, caracterizadas pela negação daquilo que existe, pelo intelectualismo melancólico, mas sim a revolucionárias, e de esquerda, representada entre outras coisas por estas famosas faixas desenhadas. É por isso que, a pretexto de que são os maiores artistas franco-suíços, cometeríamos um erro se aproximássemos Godard de Rousseau. Se Jean Jacques propõe-nos a natureza contra o artificial, Jean Luc reivindica integralmente a civilização moderna, a cidade e o artificial” (BARBOSA, 1968. p. 37).
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Jean-Luc Godard, ainda na década de 1960, defende que o cinema está cada vez mais preocupado com sua evolução técnica e se tornando apenas um espaço de aperfeiçoamento de estilo. Isso faz com que as produções cinematográficas se tornem superficiais, inconsistentes e frívolas. Ele entende que estas estão cobertas de argumentos herméticos e rasos, que não vislumbram a sua sensibilidade, que não permite entender a desordem proposital que caracteriza em suas obras. Nesse sentido, Godard se propõe a produzir filmes que não tem obrigatoriedade com o tempo – isto é, o tempo diegético – como também suas estruturas. Dentro da estrutura da sua filmografia, é nítido que Godard elabora algumas nuances que remetem à própria lógica propedêutica, com a linguagem literária e histórica se ligando à cinematografia. Logo, se faz necessário elencar os arcabouços utilizados para fundamentar essas prerrogativas no cinema.
Assim, o tempo histórico para Reinhart Koselleck está imbuído de duas categorias do tempo humano como: experiência e expectativa, para que se tenha um esclarecimento (Aufklärung) da própria história. Para isso, ele consagra a análise metodológica via linguagem, que é responsável por compreender as expressões culturais e temporais da sociedade. “Com isso chego à minha tese: experiência e expectativa são duas categorias adequadas para nos ocuparmos com o tempo histórico, pois elas entrelaçam passado e futuro. São adequadas também para se tentar descobrir o tempo histórico, pois, enriquecidas em seu conteúdo, elas dirigem as ações concretas no movimento social e político” (KOSELLECK, 2006, p. 308).
E como isso aparece nos filmes do Godard? Com a própria leitura do âmago da sociedade, o descaso com o tempo cronológico e do calendário, ou seja, o tempo natural, até mesmo a presença do preto-branco no auge do círculo cromático, representada justamente nos enquadramentos das questões sociais. Godard abre precedentes desde 1964 para a sucessão dos fatídicos eventos da juventude em 1968 em um autêntico frenesi. “Mas, entre a Revolução Inglesa passada e a Revolução Francesa futura foi possível descobrir e experimentar uma relação temporal que ia além da mera cronologia. A história concreta amadurece em meio a determinadas experiências e determinadas expectativas” (KOSELLECK, 2006, p. 309).

Por conseguinte, o cinema transcende a capacidade de experimentar, considerando-o uma versão fictícia do próprio tempo-espaço. O cineasta faz da própria câmera seu laboratório social, possibilitando discussões que estão no horizonte da sociedade e que está pautado em expectativas responsáveis por representar esse tempo histórico. Godard faz isso formidavelmente: o tempo histórico, juntamente com a linguagem do cinema, são composições da própria mise-en-scène godardiana. “A possibilidade de se descobrir o futuro, apesar de os prognósticos serem possíveis, se depara com um limite absoluto, pois ela não pode ser experimentada.” (KOSELLECK, 2006, p. 311).
Muito embora não se possa afirmar que o próprio Godard tivesse tido acesso a esse tipo específico de leitura, uma vez que a própria obra do Koselleck é publicada em alemão quase uma década depois das narrativas de Godard, como é possível que isso tenha acontecido? Talvez a sagacidade de Godard em antecipar os debates seja respondida por Hegel, que no século XIX acreditava na existência de um ‘espírito do tempo’. “Zeitgeist” é a resposta para o chamado espírito da época; ou seja, a arte e a filosofia são retratos da própria cultura no tempo, em meio ao qual ela se empenha em analisar. É a reverberação do tempo em sua mais genuína expressão, como se o artista ou o intelectual carregassem essa cultura no qual estavam mergulhados, mesmo que inconscientemente. Por isso que, Koselleck na filosofia da História e Godard no cinema, produzem quase que concomitantemente; o artista e o historiador fazem uma verdadeira dança com o tempo.

Nessas vicissitudes, Godard fez do seu trabalho uma ode a sagacidade, no sentido de que a liberdade de produção é fundamental para que a própria natureza da análise dos meandros sociais apareça. Na vanguarda do cinema novo francês, Godard representava a era da desbanalização do cinema; era o recuo para o retorno da arte e do que ele chama de cinema clássico. É a função natural do cinema, ser engajado. Godard não sabe onde as Artes Plásticas se perderam e onde tudo se tornou tão plástico. Paradoxalmente, a historiografia não consegue acompanhar os debates das Artes, especialmente a Literatura, uma vez que a escolha da narrativa é fundamental para a compreensão do leitor e do desenvolvimento das ideias.
Nesse sentido, a produção histórica perde a capacidade de alcançar o interlocutor em virtude de a sua narrativa ser hermeticamente fechada, principalmente no que tange à escrita de marcos e fatos importantes para a sociedade ocidental. Contrapartida, Godard se torna um exímio ilustrador do tempo, pois, suas personagens são colocadas no tempo, representam um pano de fundo histórico que é anterior a elas e tem um fim que é inexpugnável a eles. O tempo se torna parte da narrativa, pois depois do próprio filme, ele nos dá uma noção de continuidade. É a Nouvelle vague, a “Nova Onda” que foi se fortalecendo desde o final dos anos 1950 e se tornou tsunami em 1968. A juventude afogou o mundo e se afogou no processo. Godard avisou.
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REFERÊNCIAS
BARBOSA, Haroldo Marinho. Jean-Luc Godard. Rio de Janeiro/Guanabara: Gráfica Record Editôra, 1968.
DELEUZE, Gilles. Cinema a imagem-movimento. Editora Brasiliense, 1983.
DUBOYS, Phillipi. Cinema, vídeo, Godard. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/Editora PUC- Rio, 2006.
TIRARD, Laurent. Grandes diretores de cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
Gabriel Costa Pereira é acadêmico de História da Universidade Estadual de Goiás (UEG)