Eu, camelô de poesia?

06 julho 2020 às 18h15

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Ser poeta, nesta congelada aldeia de computadores, é ser resto de faúlha, que escapou-se, solitária, do incêndio. Ou um louco na corrente
Gabriel Nascente
Especial para o Jornal Opção
A poesia é a biografia da minha emoção. Por ela, e para ela, eu nasci. É a ternura do meu calvário. E o farol das lamparinas que iluminam a jornada dos meus poemas. O que abrolha de mim são criações: gomos de luz que se explodem em palavras; este fruto inexprimível da árvore dos mistérios, e que se perdura como minas de negro amianto.
À esta coisa de desgrenhado sentido da desconstrução do efêmero, eu me agarrei semelhante a um louco marujo se debatendo entre os destroços do naufrágio. Embora o melhor de todos os naufrágios fosse restarmos vivos.
O exórdio que encabeça a abertura deste minitexto norteia o que vou narrar: comi lagartos e engoli sopas de treva para alimentar o meu ofício de ser poeta, com forças de ciclope. E durante mais de cinquenta e cinco anos eu me vejo um homem de livros sobraçados à labutação de minha vida. E isto sendo é paixão obrigatória da minha alma, entre o pão e a luz.
E ser poeta, nesta congelada aldeia de computadores, é ser resto de faúlha, que escapou-se, solitária, do incêndio. Ou um louco na corrente.

Numa certa quadra das minhas peregrinações de poeta cervejeiro, camelô da poesia (lá pelos estridores dos anos 70) — quando adotei a prática de democratizar o livro de poesia, no corpo a corpo, junto ao povo, vendendo — o, pessoalmente; fui surpreendido, covardemente, por um gesto de maldade sórdida. Vivia eu de bar em bar vendendo poesia, durante as esticadas noites goianas. Geralmente eu me recorreria ao criativo silêncio da astúcia para amortecer o freguês e dar o golpe.

Primeiramente, esperava o infeliz ficar bêbado, depois eu o enchia de elogios, e ele, como paga de retribuição, me comprava logo uma cacetada de livros para distribuir à mulherada acampada à mesa. Só que, numa dessas, eu me estrepei, feio. O cidadão que me comprou os livros, e ainda me pediu para autografá-los, um a um, á galera feminina; ao pagar a conta, assinou um cheque, e acenou-me para eu recebe-lo, enfiando a minha mão por debaixo da mesa, o modo de ninguém perceber tão generosa paga por meus suores literários. Peguei-o, e logo senti, ao tocá-lo, que algo estava ilógico. Ele me entregou o cheque inteiramente empapado de escarro.
Que humilhação emética eu sofri por amor à poesia. Em compensação, o todo poderoso senhor biltre, ao invés de escrever vinte reais, lavrou dois mil reais, sem perceber. No dia seguinte, derrubado pela ressaca e azedo, me telefonou: cadê meu cheque? Cadê meu cheque.
— Já foi pro brejo, meu senhor; comprei tudo em passagens de avião.
Gabriel Nascente, poeta e cronista, é colaborador do Jornal Opção. E-mail: [email protected]