Escritor como personagem (4): Woody Allen — A era da mentira, de Cristiano Deveras

26 setembro 2021 às 10h55

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A bem da verdade, atrás de todo fake tem que ter alguém, daí que são corresponsáveis um pelo outro, sacaram? Verdade que a arte da, digamos, fakearia é muito antiga
(O que pode acontecer quando aqueles que escrevem literatura se tornam eles mesmos literatura? Literalmente, tudo. Explorar essas múltiplas possibilidades é a proposta dessa série de contos publicados pelo Jornal Opção, com o apoio do escritor e doutor em História Ademir Luiz, presidente da União Brasileira de Escritores-Seção Goiás. Veremos transformados em personagens escritores e escritoras célebres como Clarice Lispector, Albert Camus, Guimarães Rosa, Machado de Assis, Edgar Allan Poe e muitos outros. Acompanhe a série e espere pela aparição de seu escritor preferido.)
Woody Allen — A era da mentira
Cristiano Deveras
Apesar de vivermos em um mundo onde a informação encontra-se cada vez mais acessível e disponibilizada das mais diversas formas, muitos dos seres humanos que habitam este planetinha perdido na esquina involuntária do Cosmos ainda não sabem bem o que fazer com ela. Explico: em pleno século 21 ainda é possível encontrar indivíduos que não acreditam que a Terra é redonda, o homem foi à Lua ou que as vacinas funcionam… Embora uma parte dessa desinformação geral possa ser atribuída a diferentes pontos de vista, em muitos casos há pessoas que acabam sendo levadas a acreditar em notícias falsas, deliberadamente criadas para se fazer um verdadeiro serviço de contrainformação — pelos mais diversos motivos — nas famigeradas redes sociais. Este Coliseu moderno. E, comumente, os usuários que disseminam essas pérolas acabam por utilizarem-se de perfis fakes, uma representação falsa criada para ludibriar os incautos.
Ponderava exatamente sobre isso enquanto rumava para o boteco, onde tomaria uma ou duas doses de sabedoria, quando topei com uma turba reunida na porta do Bar do Escritor, atrapalhando a entrada: faixas, carros de som e tudo o mais que se pode pensar em um protesto desses.
Havia uma equipe de tevê com uma repórter gostosa, digo famosa, anotando tudo em um bloquinho. Aproveitei para inteirar-me do que ocorria.
Eu, fingindo de bobo: — Que tá rolando?
Ela, meio distante: — É uma manifestação da CUF.
Eu, fingindo interesse: — E o que as centrais sindicais têm a ver com o Bar?
Ela, ainda olhando para o lado: — Em tese, tudo. Bares são lugares perfeitos para discussões políticas, sindicais, trabalhadoras e afins. Mas esses caras aí não são de nenhum sindicato fodão não. São da Central Única dos Fakes.
Eu, querendo ser blasé: — Ah, tá…
Ela, tentando disfarçar a miopia sem óculos: — Peraí, tô te reconhecendo. Fiquei feliz pacas, afinal, ser reconhecido pela famosa, digo, glamorosa da tevê não é para qualquer um. Vai que rola alguma coisa: Você é o Pablo Treuffar, o cara que reorganizou o Bar do Escritor!
Eu, avexado, querendo mandar a real ─ Olha, na verdade, sou o…
Ela, excitada: — Faço qualquer coisa por uma exclusiva contigo!
O sinal ficou verde na hora. Putz, Vanessa Fadinha, a jornalista mais peituda (no sentido corajoso da palavra) e gata da telinha sujeitando-se a “qualquer coisa” comigo mesmo pensando que eu era outra pessoa?
Eu, na pilha: — Sim, claro, por que não?
Ela, só esplendor: — Maravilha, então, por onde começamos, Treuffar?
No meio segundo que perdi para responder, os alto falantes explodiram:
Fake 1 — Todo poder emana dos fakes!
Fake 2 — Os fakes, unidos, serão sempre os mais lidos!
Foi a senha para que centenas de fakes soltarem suas pérolas simultaneamente: de remédio que curava tudo à derrocada da civilização judaico-cristã-ocidental, pareciam ter todas as respostas. Tentei organizar tudo, mas lembrei que organização não é um dos meus fortes.
Eu, foda: — Aê, cambada! Vamo baixando a bolinha! Deixa ver o que tá rolando nessa bagaça primeiro!
Reuniu-se então um grupo para representar os fakes (que na verdade foram criados para representarem os outros, mas vá lá…).
Fake 1: — Mas peraí, tu não é o…
Eu, fodão: — A parada não é sobre fakes? Então, no momento “estou” Treuffar. ─ E apontei a gata.
Fakes reunidos, sacando a dica: — Ah, tá…
Eu, mais fodão ainda ─ Então, o que tá pegando?
Fakes reunidos: — Bom, é que apesar de todo o bafafá que fazemos nas redes, nos grupos de uaitizap e nas conversas de botequim, todo mundo só se lembra das fake news e se esquecem de nós, os fakes, que acabam fazendo tudo acontecer.
Eu, fodíssimo, voz de Clint Eastwood: — Sei e daí?
Fakeaiada: ─ Daí que queremos mais reconhecimento, entende?
Eu, pica das galáxias: — A parada é a seguinte: para ter reconhecimento, tem que ser, bem… Reconhecível; a bem da verdade, atrás de todo fake tem que ter alguém, daí que são corresponsáveis um pelo outro, sacaram? Verdade que a arte da, digamos, fakearia é muito antiga, vindo de muito antes do mundo virtual; entrelaça-se com a ordem dos pseudônimos, estes seres espetaculares que tanto já ajudaram escritores nas mais diversas eras da escrita. Tomás Antônio Gonzaga, para citar um exemplo, transvestiu-se de “Critilo” para poder elaborar suas Cartas Chilenas; Samuel Langhorne Clemens conseguiu levar uma vida sossegada, enquanto “Mark Twain” aprontava; “George Orwell” criticou meio mundo, representando o pacato Eric Arthur Blair; pô, Fernando Pessoa foi ainda além e chegou a criar não só um, mas três heterônimos famosos: “Ricardo Reis”, “Álvaro de Campos” e “Alberto Caieiro”, fora uma cambada de outros menos conhecidos. Enfim, meus amigos, o problema não é se passar por outro personagem, mas o que este personagem faz, o que ele tem a dizer, para que existir.
A massa pipocava igual carnaval na Bahia. Tivesse eleições agora dava até para descolar uma boquinha de vereador, quem sabe até deputado… Nisso lembrei que a gata ainda estava ali, de bobeira. Ia mandar a letra quando um baixinho com maneiras esquisitas se intrometeu, atrapalhando mais uma investida:
Baixinho com maneiras esquisitas: — Aê, cês vão ter que desocupar o logradouro. O engraçado é que podia jurar que ele estava sendo dublado.
Eu, invocado: — E quem é você, cara-pálida?
Baixinho com maneiras ainda mais esquisitas: — Alvarenga Peixoto, agente de fiscalização de fakes, pseudônimos, heterônimos, praças, ruas e logradouros.
Vanessa Fadinha, curiosa: — O que tem a ver os fakes e afins com praças e ruas?
Alvarenga Peixoto, voz de Hardy HarHar, suspirando: — Ó, vida, ó azar: corte de verbas, misturaram os departamentos e deu nisso, de virar babá de fake maluco.
Eu, empombando: — Ô, meia-sola, não vai rolar de liberar a via não, parceiro: gastei o maior latim para fazer essa galera acalmar. Deixa abrir o boteco e eles tomarem uns goles primeiro, caramba.
Alvarenga Peixoto, suspiro: — Então serei obrigado a usar a força.
Eu, defenestrador de impérios: — Você e qual exército, gnomo?
Alvarenga Peixoto: — Dois batalhões do Choque respondem sua pergunta?
E apontou os camburões.
Eu, conjugando o verbo amarelar: — Queisso, cara. A gente é da paz, mano.
Alvarenga Peixoto, puxando o bloco: — Já esperava por isso. Então, agora é a hora em que terei que deixar algumas pequenas autuações com vocês…
Eu, reencontrando um dos colhões: — Peraí, devagar com a passarela; tu tá falando de multar quem?
Alvarenga, didático: — O responsável serve.
Eu, pensativo: — Responsável? Difícil cê achar isso por aqui, chapa.
Alvarenga, apontando: — Então terá que ser o senhor mesmo, Seu Treuffar.
Eu, tentando escapar do olhar da gata, no salgado momento da verdade — …
Alvarenga, inquiridor: — Não entendi, senhor.
Eu, eloquente: — Não sou o Treuffar.
Alvarenga Peixoto, anasalando: — De qualquer forma, terei que autuá-lo senhor. Há uma série de irregularidades aqui: excesso de fakes atrapalhando a via pública; auto prosa lotada de referências ao Bar do Escritor e o pior, uma série de autoironias não autorizadas.
Eu, no mato sem cachorro: — Queisso, chefia! Somos o grupo mais autoirônico do pedaço. Temos até autorização para isso.
Alvarenga Peixoto, impassível: — Negativo, essa primazia é dos judeus. Igual àquela piada:
— E aí, Jacó. Como vai?
— Vou muito mal!
— Mas o que foi que aconteceu?
— Minha mãe morreu.
— Não me diga! Meus sentimentos. E o que é que a sua mãe tinha?
— Infelizmente, pouca coisa. Uma casa, duas lojinhas no centro da cidade e um terreninho no interior.
Alvarenga Peixoto, assinalando a vitória: — Então, faço a multa em nome de quem?
Agora eu tava ferrado. Se entregava quem era, não pegava a gata; se me deduro a mim mesmo, auto alcaguetando-me, tomava uma puta multa. A solução veio na forma de uma assistente de direção, dessas que se vê aos montes nos estúdios, chegando correndo com um descafeinado e duas rosquinhas:
Assistente, coadjuvando: — Mister Allen, sorry sir, but could not find pretzels[1]!
Foi aí que me dei conta que havia um cara atrás do tal mister:
Eu, acabando de achar o outro colhão: — Mas que merda é essa?
Saiu um fulaninho ainda mais mirrado, detrás do outro, com exatamente a mesma voz.
Fulaninho mirrado: — Er… Hehe. Sou o dublador oficial dele.
Foi aí que saquei tudo. Bem que devia ter desconfiado daqueles óculos de Groucho Marx que o tal fiscal tava usando.
Eu, poliglota, falando inglês farofa: — Deveria saber que em se tratando de pseudônimos você apareceria, Mister Allen Steward Konigsberg, ou melhor dizendo, Woody Allen!
Woody, novamente dublado: — Hehehe, tava por aqui, procurando umas locações novas, quando fiquei sabendo dessa manifestação de fakes, resolvi dar uma passadinha e fazer um laboratório para um próximo filme.
Vanessa Fadinha, saltando para o lado do gringo: — Ai, Woody, sou louca por uma exclusiva contigo!
Woody, que não é bobo nem nada: — Só se for agora, baby.
Eu, tentando salvar o Titanic: — Pô, Fadinha e nossa exclusiva?
Vanessa Fadinha, contabilizando: — Aí, tu teve roteiro filmado?
Eu, na pendura: — Não.
Vanessa Fadinha, aumentando o estrago: — Ganhou algum Oscar?
Eu, minguando: — Também não.
Vanessa Fadinha, mandando mata-leão: — É diretor de cinema reconhecido mundialmente?
Eu, pegando a toalha: — Negativo.
Vanessa Fadinha, mandando o fatality: — Então, querido, porque ia querer alguma coisa com você?
Eu, cara do coyote do Papaléguas: — Pena?
Uma limosine sinistra abriu caminho entre a multidão de fakes, pegou todo o staff do gringo, que saiu com a maior-delícia-do-pedaço a tiracolo. E eu ali, babando vontades…
Fakeaiada: — E agora, o que faremos?
Eu, anotando mais um prejuízo na carteira: — O que fazemos sempre: vamos tomar um porre e escrever. Quando estiver bêbado o suficiente, decido se monto a Igreja Espacial do Reino dos Filisteus ou vou para o Nepal, tirar onda de monge kaoísta…
[1] Senhor Allen, desculpe senhor, mas não achamos pretzels.