Das cavalhadas de Pirenópolis ou de como a flor do Cerrado pertence ao carcará
22 dezembro 2019 às 00h00
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O livro todo, do começo ao fim, mexe com o imaginário popular e traz à tona memórias e histórias vividas por todos nós, sobretudo da nossa infância
Soninha dos Santos
Especial para o Jornal Opção
“Arlindo veio buscar flor no mato. Flor de levar pra Lucinda. Carcará se encrespou e de fato fez voo rasante, de morte. Mas morte não veio ainda.” Com essas palavras, Roger Mello, no livro “Cavalhadas de Pirenópolis” (1998), dá início à saga de Arlindo, moço simples e tímido da cidade de Pirenópolis que, apaixonado, tenta buscar uma flor no Cerrado para oferecer a Lucinda, o seu amor.
A história por si só seria uma simples história de amor, mas seu desenrolar é, no mínimo, dos mais originais já descritos nas narrativas literárias, principalmente para crianças e jovens. O cenário, a festa das Cavalhadas de Pirenópolis, dá o tom poético das palavras traçadas por Roger e a ilustração, também dele, é magistral e riquíssima de imagens. De um colorido revelador das cores da festa e das cores do cerrado, bioma rico em variedade de fauna e de flora, a história acontece magicamente, unindo versos traçados e coloridos. Arlindo, nosso personagem, busca uma flor para dar de presente ao seu amor, até então platônico. Devido a sua grande timidez, não quer se revelar a menos que a presenteie antes. O que não sabe é que carcará, ave de rapina dos sertões, reina absoluto no cerrado e protege seus domínios, ameaçador e hostil. Não será fácil para Arlindo, pegar esse presente. Ele afirma que “carcará tem fama, tem porte e é dono da flor do cerrado”. Dessa forma, a busca de Arlindo, nosso herói, tem um obstáculo a vencer antes de ter na mão, tal flor.
O livro todo, do começo ao fim, mexe com o imaginário popular e traz à tona memórias e histórias vividas por todos nós, sobretudo da nossa infância. A tradição cavalhadas remonta do período medieval, quando cristãos da Europa foram lutar na “Guerra Santa”, contra os mouros. As cores, vermelha dos mouros, e azul dos cristãos, se tornam versos no traçado de Roger Mello. Com mãos habilidosas conta a história de amor de Arlindo usando cavaleiros mascarados, ruas de pedra, quadra de cavalhadas e figurantes, tudo com as mais lindas cores que a poesia consegue descrever.
Um cavaleiro aparece e ajuda Arlindo lhe dando uma máscara de onça que, de acordo com o texto, lhe cabe perfeitamente e o torna irreconhecível. Vendo a “onça”, carcará foge de medo e Arlindo pega a flor.
Contudo, carcará descobre o engodo e, violentamente, provoca o caos na cidade, arranca a máscara de Arlindo e arranca a flor de suas mãos. Arlindo, desconsolado, não consegue se revelar. O que era coragem, vai embora com a máscara e ele se afasta novamente de Lucinda.
Além da história, empolgante do começo ao fim, em meio às cavalhadas, há que se mencionar que todo o texto é escrito em versos, fazendo justiça aos cancioneiros e cordéis conhecidos de todos. Vale a pena ainda passar os olhos pela delicadeza dos minuciosos desenhos retratando a diversidade das máscaras, dos cavaleiros e seus enfeites e da arquitetura colonial da cidade que mostra em destaque a igreja matriz. Características do cerrado também são notadas no traço tortuoso das árvores e no colorido das folhas e flores. Até o Rio das Almas com sua velha ponte tem lugar de destaque na obra. Cada página parece um quadro em exposição. Tudo isso confere detalhes que um olhar não dispensa, principalmente o olhar curioso das crianças e jovens. É para crianças? É para jovens? Para adultos? Leia, e verá que a resposta é bastante simples: é para quem gosta de literatura boa e para isso, não fica preso a fronteiras delimitadas. A capa é um atrativo à parte. Pare, veja com olhos atentos, toque e abra o livro. As surpresas começam na página seguinte e só vão parar na última.
Soninha Santos, professora de literatura infantil e juvenil e crítica literária, é colaboradora do Jornal Opção.