Dar o Prêmio Camões para Chico Buarque é o mesmo que gritar “ele sim”

16 junho 2019 às 00h00

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Literatura do escritor fica entre o mediano e o bom. O problema é que parece pouco pra alguém que é reconhecido como gênio em outra área de atuação artística, a música
Ademir Luiz
Especial para o Jornal Opção
Se eu tenho inveja do Chico Buarque?
É óbvio que sim. Tenho inveja até do Fábio Júnior. Não vou ter do Chico Buarque?! Eu, você, todo mundo tem inveja do Chico. A única pessoa que não tem inveja do Chico é o Caetano, uma vez que o Caetano não consegue imaginar nada melhor do que ser o Caetano.
Mas inveja não precisa afetar o senso crítico. Nem admiração. Por exemplo: um dos artistas que mais admiro é o cineasta Stanley Kubrick. Nem por isso finjo que “De Olhos Bem Fechados”, seu filme testamento, não é mal escrito, mal editado e meio covarde. “De Olhos Bem Fechados” não se torna bom porque “Laranja Mecânica” e “2001 — Uma Odisseia no Espaço” são geniais. Os gênios não precisam de nossa condescendência.

Sempre fui confesso admirador de Chico Buarque. Meu primeiro disco de vinil foi do Chico. Meu primeiro CD foi do Chico. O primeiro vinil e o primeiro CD a gente nunca esquece. Até hoje os escuto com gosto. Fiquei entusiasmado quando descobri que meu ídolo tinha se aventura na ficção longa. Li “Estorvo” (1991), o primeiro romance da obra chiquiana (obra buarqueana é a do Sérgio — por uma questão de precedência), alguns anos depois do lançamento. Achei fraco, fiquei levemente decepcionado, mas relevei. Não se pode acertar sempre. Lembro-me que na época saiu um ensaio gigantesco sobre o livro na revista “Veja” (assim como uma crítica “positiva” de Roberto Schwarz). Era exageradamente elogioso, apologético. Pareceu-me uma tentativa desesperada de mostrar que o rei estava belamente vestido. Dei uma segunda chance ao livro depois que assisti sua adaptação cinematográfica, lançada em 2000. O tempo não melhorou o romance. Tudo bem, pensei, sempre teremos os discos “Construção”, “Paratodos” e “Francisco” para tirarmos o gosto amargo da boca.
Mas depois vieram os outros romances. “Benjamim” (1995) consegue a façanha de ser pior do que sua fraca adaptação para o cinema. O cenário melhorou com “Budapeste” (2003), que parecia ser “O Alienista” do Chico Buarque, o trabalho de maturidade que abriria as portas para uma séria de obras-primas. Não foi. A coisa mais interessante de “Leite Derramado” (2009) foi ter gerado a campanha “Chico, devolve o Jabuti!”. Mas a gota d’água seria mesmo “O Irmão Alemão” (2014) que, apesar da premissa promissora, chega a ser constrangedor até para os fãs mais fiéis.
Não invejo o Chico Buarque romancista, salvo seus caros amigos nos cadernos culturais. Não que sua literatura seja necessariamente ruim, não é, o conjunto fica entre o mediano e o bom. O problema é que isso parece pouco para alguém que é, com toda justiça, reconhecido como gênio em outra área de atuação artística, a música popular. Chico Buarque escrevendo literatura é como Michael Jordan jogando beisebol ou Usain Bolt jogando futebol.
Literatura amarrada e sem humor
De modo geral, parece-me que a literatura chiquiana é amarrada, levemente anacrônica e sem humor. Não me refiro a piadinhas ou chistes, mas a ausência de ironia. Ou mesmo auto ironia. O texto de Chico Buarque parece carregar o peso do mundo nas costas, leva-se demasiado à sério. Apresenta-se como sendo conscientemente importante, imponente e profunda, ficando apenas pomposo e artificial; como um estereótipo de malandro vestindo um terno branco no calor do Rio de Janeiro do século 21.
Esse é o estado atual da obra chiquiana, que acaba de ser laureada com o Prêmio Camões, o mais importante da literatura de língua portuguesa.
Sei que a justificativa dos membros do júri foi o reconhecimento do alcance do conjunto da obra do multiartista Chico Buarque, que é cantor, compositor, dramaturgo, jogador de futebol, símbolo sexual, entrevistado padrão em documentários diversos e, nas horas vagas, romancista. O que temos aqui é, claramente, um desdobramento do efeito do Prêmio Nobel concedido ao menestrel Bob Dylan, acrescido de certo tempero de manifesto político. Hoje, dar o Prêmio Camões para Chico Buarque é o mesmo que gritar “ele sim”.
Mas, cabe perguntar, Chico Buarque merece o prêmio, levando-se em conta que se trata da exaltação do conjunto da obra e não apenas de sua atuação literária?

Essa questão deve ser abordada a partir de dois aspectos. Se seus concorrentes fossem Jô Soares e Paulo Coelho, talvez sim. Mas não podemos esquecer que apenas entre brasileiros, sem colocar portugueses e africanos no páreo, no mínimo Marina Colasanti, Reinaldo Moraes, Cristovão Tezza, Luiz Ruffato, Ana Miranda, Marcelo Mirisola, Heleno Godoy, Miguel Jorge e Milton Hatoum seriam candidatos mais qualificados em se tratando de uma láurea literária. Se a disputa fosse circunscrita aos medalhões da MPB não hesito em defender que o próprio Caetano Veloso seria uma escolha melhor, uma vez que seu livro conceitual de memórias “Verdade Tropical” possui um estilo muito mais saboroso, dinâmico e espontâneo que a narrativa onanista das tramas chiquianas. Esse ponto leva a questão para seu segundo nível. A literatura possui poucos espaços para ser festejada ao passo que a música popular está integrada a uma indústria onipresente e bilionária. É justo que a literatura seja sacrificada nas migalhas que possui dentro do cenário cultural somente para alguém fazer política?
Medão da patrulha ideológica
Muitos estão se sentindo ofendidos com os questionamentos sobre a premiação de Chico, como se seu nome fosse sagrado. Mas considerando que a escolha de Rachel de Queiroz em 1993 foi polêmica, as críticas à Chico estão até tímidas. Talvez seja o bom e velho medo da patrulha ideológica, estética e social. “Como assim, você não gosta dos livros maaaaaaaaravilhosos do Chico?!”.
Intriga-me que muitos escritores estejam festejando essa premiação. De modo geral, estão pensando como fãs do compositor e do militante político. Muitos deles, sem perceber a ironia da situação, afirmam que foram ouvir músicas do Chico para comemorar. Curiosamente, o aspecto passional da situação impede que equacionem as perdas profissionais e simbólicas que essa premiação representa.
Pelo menos ninguém pode acusar Bob Dylan de compactuar com a farsa. Dylan, ciente de que a Academia Sueca queria capitalizar sua fama, esnobou-os solenemente. Sua atitude blasé explicitou o óbvio: o Nobel precisava de Dylan, Dylan não precisava do Nobel.
Chico foi um homem mais cordial. Assim que tomou conhecimento do prêmio, sua primeira reação foi declarar que se sentia muito feliz e honrado por seguir os passos de Raduan Nassar, vencedor em 2016. Tenho certeza que sim. Só me parece curioso que o grande escritor Raduan Nassar, que merecia um Nobel, após décadas de silêncio, aproveitou a cerimônia de entrega do Camões para fazer um discurso digno de coordenador de DCE de Ciências Sociais. Salinger teria vergonha. Será que Chico Buarque vai seguir literalmente os passos de Raduan Nassar e continuar seu discurso de onde o velho eremita parou, anexando os fatos novos do cenário político? O tempo dirá. Em todo caso, apostaria meu exemplar de “Fazenda Modelo” que sim.
Ademir Luiz é professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG) e presidente da União Brasileira de Escritores-seção Goiás (UBE-GO).