Para não faltar uma pitada de galhofa na tinta da melancolia que esta crônica pretende dizer (espero ela que não seja construída de palavras mudas), arrisco a dizer que a primeira fake news aconteceu no momento em que o mandachuva de Roma era o tirano, cruel e orgíaco Nero. Ele se tornou imperador aos 17 anos, isso no ano 54, após a morte de Cláudio, seu pai adotivo, cuja esposa, Agripina, pode ter sido a assassina para que seu rebento assumisse o pod(r)er. Não se sabe ao certo se foi mesmo Nero que mandou incendiar Roma para embelezar parte da cidade que ele não gostava ou para que ele fosse reconhecido com devoção religiosa. Os imperadores se sentiam divindades. Hoje há um resquício disso: existem mitos na esquerda e na direita sendo carregados nas costas por seus adoradores, que se tornam soldados numa guerra psicológica e física que não visa “revelar a coerência natural do mundo social”, como bem disse Henry S. Kariel em seu livro “Aspectos do Pensamento Político Moderno”.

O certo é que a culpa do incêndio foi atribuída aos cristãos, fato que fez o bicho pegar para o lado deles: quando não eram devorados por animais dentro dos coliseus, morriam nas mãos dos gladiadores. Esse espetáculo de sangue era o circo oferecido ao povo. Minha amiga Ângela Lobo, uma poeta sem eira nem beira e cuja poesia sofre de “lirismo comedido, (…) lirismo funcionário público com livro de ponto”, diz que a primeira fake news está no xaveco que a serpente (primeiro nome do diabo) deu em Eva para que ela comesse o fruto da árvore no meio jardim, alegando que, após a ingestão, seus olhos se abririam e ela seria como Deus. (Lógico que não se tornou, mas se faz necessário dizer que há deusas e mais deusas demais por aí…) Acho que a galhofa já está indo longe demais, vou puxar suas rédeas para que a tinta da melancolia entre em cena.

Nesta semana, foi divulgado o nome dos cientistas vencedores do Prêmio Nobel de Medicina de 2023: a bioquímica húngara Katalin Karikó e o pesquisador americano Drew Weissman. Na justificativa da premiação, o júri argumentou que os dois, responsáveis fundamentais para o desenvolvimento das vacinas contra covid-19, “contribuíram para o desenvolvimento a um ritmo sem precedentes de uma vacina durante uma das maiores ameaças para a saúde da humanidade nos tempos modernos”. Além de diplomas, os dois vão abocanhar uma bagatela de aproximadamente um milhão de dólares, o que acontecerá dia 10 de dezembro, data da morte do sueco Alfred Nobel (1833-1896), que foi um inventor, cientista, filantropo e criador do Prêmio Nobel, que teve a sua primeira edição realizada em 1901.

Essa premiação me transportou a dois ex-presidentes da República: Rodrigues Alves e Jair Bolsonaro. Alves, em seu governo, que foi de 1902 a 1906, teve uma postura séria no combate às epidemias de varíola, febre amarela e peste bubônica, que faziam milhares de vítimas no Rio de Janeiro. Em vez de oferecer cloroquina a emas como deboche à necessidade de se vacinar contra a covid-19 e a esta chamar de “gripezinha”, Alves contratou o médico sanitarista Oswaldo Cruz para assumir a Diretoria Geral de Saúde, cargo correspondente ao de ministro da Saúde. Diante de sua responsabilidade, Cruz viu a necessidade de tornar obrigatória vacinação contra a varíola. O cenário político e social de então era de grande turbulência, e a obrigatoriedade vacinal foi o estopim que fez explodir a Revolta da Vacina, desencadeada por políticos, militares de oposição a Rodrigues Alves. Parte da população também entrou na contestação.

Charge satirizando Oswaldo Cruz

Houve um rastro gigante de destruição na cidade, o que resultou numa ação do governo contra os amotinados, gerando repressão policial severa, que resultou em 30 mortos, 110 feridos e centenas de presos. Os humoristas da época centraram fogo em Oswaldo Cruz, satirizando a eficácia da vacina. Até o jurista, advogado, político, diplomata, escritor, filólogo, jornalista e tradutor Rui Barbosa fez discurso inflamado contra a vacinação, mas, alguns anos depois, ele caiu na real: mudou de opinião e enalteceu a batalha de Oswaldo Cruz contra a varíola.

Naquela época, circulou a fake news de que os vacinados poderiam adquirir características bovinas (chifres muitos já tinham como agora), e isso pelo fato de a palavra vacina ter origem latina: vaccinae, vacca, que significa “da vaca” ou “relativo à vaca”. E mais: a maneira como o médico inglês Edward Jenner (1749-1823) criou a vacina após constatar que mulheres que tiravam leite de vacas não tinham o rosto marcado pela varíola. Ele percebeu que as vacas tinham nas tetas uma outra espécie de varíola, que as mulheres contraíam nas mãos, mas com sintomas mais leves, e nada de terem a varíola normal, a perigosa, a letal, que matou milhões de pessoas antes de ser erradicada mundialmente em 1978. Jenner pegou o pus retirado da mão de uma ordenhadora com varíola bovina e o inoculou num garoto de oito anos, que não adquiriu a varíola humana. Disso surgiu a cura.

A ciência não é uma maçã sem nenhuma podridão; o seu segmento voltado ao mundo bélico é a banda podre. Sobre o mito Bolsonaro, a respeito dele vou usar suas próprias palavras, ditas sorridentemente (ainda sem lentes de contato dental colocadas pelo odontólogo goiano Rildo Lasmar), no dia 17 de maio de 2021 na porta Palácio Alvorada: “sou imbrochável, imorrível e incomível”. O poder tem esse veneno sedutor e perigoso de fazer os governos se sentirem divinos. Nas democracias, isso fácil de resolver: com urnas é possível derrubar os santos de pés de barro do andor. Sobre a imortalidade, vale citar que o bigodudo Josef Stalin era o “homem de aço” que governou por 30 anos a União Soviética, mas que sucumbiu aos 74 anos com um derrame, mais precisamente um acidente vascular cerebral, vulgo AVC.

*Sinésio Dioliveira é jornalista