Os livros que Alice deixou para mim no Bosque dos Buritis
26 setembro 2023 às 18h30
COMPARTILHAR
Na verdade, nem sei quem é a Alice. Tomei conhecimento dela pelo texto que deixou num pedaço de papel dentro de dezenas de livros deixados em bancos e mesas do Bosque dos Buritis. Em cada livro, havia o mesmo texto, e no título constava em caixa-alta: “PROJETO DOS LIVROS-PÁSSAROS”. Meu “encontro” com ela se deu justamente dia 21 de setembro, Dia da Árvore. Fui ao parque para fotografar os filhotes de um casal de bem-te-vi-rajado que fez ninho no Monumento à Paz Mundial, do icônico artista Siron Franco. A obra, em formato de uma ampulheta, tem, no meio das duas âmbulas, uma pequena porção de terra de 101 países. Foi justamente nesse local que o casal escolheu para se aninhar. Só escutei os piados dos filhotes, vi apenas os pais no entra e sai do processo de alimentação. No início da construção do ninho, consegui registrar alguns momentos da chegada de algum dos dois com um galhinho seco no bico.
Ao contrário do que consta no título, a Alice não deixou livros exatamente para mim, mas sim àqueles que os encontrassem (e gostassem, óbvio). “Você, que encontrou este livro: eu o deixei para você!” Esta é a frase inicial. Um pouco abaixo, ela conta, metaforicamente, que “Livros guardados, sem ser lidos, são como pássaros engaiolados, entristecidos, impedidos de cumprir seu destino”. E mais: “decidi dar asas a alguns exemplares do meu acervo e compartilhá-los com pessoas que também gostam de ler”. Alice inclusive faz uma observação para a hipótese de a pessoa não gostar do assunto do livro levado para casa: “peço a gentileza de encaminhá-lo a outra pessoa a quem ele possa interessar”. “O Poder Simbólico” e “Sociologia da Fotografia e da Imagem”, respectivamente de autoria de Pierre Bordieu e José de Souza Martins, são os livros que pousaram em mim. Ainda não dei início à leitura deles.
Eu já fiz uma ação um tanto semelhante à de Alice: doei centenas de livros a uma amiga, que os levou para a biblioteca de uma escola estadual de Mairipotaba. Estou preparando uma nova doação e é provável que eu siga o voo de Alice. Tenho alguns livros que não vão ruflar as asas de minha modesta biblioteca, vão ficar comigo até que vida, em seu gesto imperativo, faça comigo o que faz com todos os seres viventes… Um deles é “Ensaios”, do filósofo, escritor e humanista francês Michel de Montaigne, que me foi presenteado pelo amigo jornalista Euler Belém no dia 29 de novembro de 2000. Meu primeiro “Ensaios” foi para Mairipotaba.
Ele é um livro que se enquadra na definição dos ilustres Franz Kafka e Henry David Thoreau. Os dois respectivamente dizem: “Um livro deve ser o machado que quebra o mar gelado em nós”; “Muitos homens iniciaram uma nova era na sua vida a partir da leitura de um livro”. Montaigne inclusive observa que “as letras são um agradável passatempo”, no entanto adverte sobre o perigo das pessoas que mergulham de cabeça na leitura de determinados assuntos. Para ele, deve se renunciar à leitura que gera a perda da “alegria e a saúde”, aspectos que define como “mais preciosos”. Segundo Kafka, não se deve prosseguir na leitura de um livro que “não nos desperta com um soco no crânio”. Já encerrei a leitura de muitos livros após passar o olho nas primeiras páginas, e eles nem cofiarem meus cabelos.
Ocorre também de certas pessoas mergulharem na leitura de um determinado livro (leia-se Bíblia) para, com raposice, enfiar a mão no bolso dos fiéis, muitos destes a comer o pão amassado pelo rabo sujo do diabo, mas escravos da entrega do dízimo, cujo destino é o bolso dos salteadores de templos para compra de mansões, carrões, aviões. Há também aqueles que leem muito e até se orgasmam em externar tal coisa, muitas vezes de modo pedante, contudo sem perceber que estão sendo ridículos ao alardear sua proeminência erudita. Montaigne não poupou o lombo dos pedantes. Erudição, para ele, não deve ser uma ação “doutoral, imperativa e inoportuna”, recomenda usá-la apenas “quando porventura surge no decorrer de uma conversação”.
No capítulo X – Dos livros, o filósofo francês, que fez parte dos autores lidos pelo nosso grandioso Machado de Assis, fala do seu objetivo na relação com os livros: “Não busco nos livros senão o prazer de um honesto passatempo; e nesse estudo não me prendo a não ser ao que possa desenvolver em mim o conhecimento de mim mesmo e me auxilie viver e morrer bem”. Bendito o momento em que me envolvi com “Ensaios”. Ele se enquadra perfeitamente no que disse Thoreau, que é autor do magistral “Walden ou A Vida nos Bosques”: obra também muito preciosa para mim, que me fez iniciar uma nova era existencial. Há outros, mas o texto pede ponto final.
*Sinésio Dioliveira é jornalista