Dois punhais

10 julho 2025 às 17h54

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Foram bem poucos à filha os dias de dor causados pela morte de Cândida. Talvez nem dois, talvez nem um. Todavia a alegria proporcionada pela herança deixada a Dolores durou alguns anos. Essa alegria, cuja origem era podre, foi, portanto, interrompida de modo bem doloroso. No dia de sua morte, a herdeira foi ferida por dois punhais: um que é o normal a ceifar a vida de todos seres vivos e o outro (que ocorre só com o ser humano) que ela mesmo construiu com sua ganância estúpida. Diferente dos adultos, as crianças vão embora da vida apenas pelo primeiro punhal, mas partem sem nenhum tormento psicológico e isso pelo fato de desconhecerem que estão à beira do momento irreversível da vida. Elas apenas choram nos momentos da dor física.
Dolores pulou o muro do bom senso para se chafurdar na lama do desejo insaciável de se apossar dos bens deixados pelos pais. Ela não teve intrepidez para sair pela vida para construir o seu próprio espaço. Deixou que a inércia arrancasse as penas de suas asas. Pôs-se então a rastejar. Acomodou-se à sombra dos pais, que só tinham ela como filha e assim toleraram muitos erros da filha: um deles o pior de todos: o que lhe empurrou para o abismo. Depois que tomou posse da herança (a fazenda deixada, que foi vendida rapidamente), deitou e rolou.
Foram festas e mais festas no apartamento que comprou num bairro nobre da cidade. Festas oferecidas a pessoas que não a viam; mas que viam apenas o que ela lhes proporcionava. Certa vez teve um problema numa festa que promoveu. Havia um policial civil entre os seus convidados, e R$ 100 mil reais impediram que ela fosse presa por uso de cocaína. O policial, que também estava com o nariz metido no pó, passou o esquema a dois colegas também policiais. Na partilha do dinheiro, ficou 50 mil reais para o policial que estava na festa e entregou o serviço e 25 mil para cada um dos dois que deram uma prensa teatral em Dolores, que acabou não sabendo que havia caído numa cilada armada por alguém que era seu convidado e estava bebendo do seu uísque e cheirando de sua cocaína.
Dolores saiu da vida no maior desespero, ela exagerou na quantidade de cocaína que cheirou e junto a isso muitas doses de uísque que ingeriu. Gostava de Old Parr. Dos 13 convidados que estavam em sua festa quando ela passou mal, ficou apenas uma amiga das antigas desde quando fizeram o segundo grau no mesmo colégio. Com medo de ter problema com a polícia devido à quantidade de pó que movia a orgia da festa, o resto foi embora rapidamente. Além do tormento do medo físico da morte, veio também o tormento do remorso a açoitar a sua consciência.
E, no centro dessa dor de alma, os momentos que teve para usufruir da presença dos pais e não usufruiu. Ficou perto deles, mas de alma vazia. Semelhante ao que aconteceu com o Brás Cubas machadiano, Dolores, em conversa com a vida, também chegou a rogar a ela que seus dias de vida fossem alongados. Sua súplica entrou num ouvido da vida e saiu no outro (se que é entra em algum, se é que a vida tem ouvido). Foi assim de Brás Cubas:
“— Viver somente, não te peço mais nada. Quem me pôs no coração este amor da vida, se não tu? e, se eu amo a vida, por que te hás de golpear a ti mesma, matando-me?
— Porque já não preciso de ti. Não importa ao tempo o minuto que passa, mas o minuto que vem.”
Pura ingratidão para com seus pais, que não negaram a amor à filha e até tentaram por tudo arremessá-la para frente a fim de que buscasse uma profissão e pudesse, digamos assim, ser dona do seu nariz. Mas o nariz não foi dela, ele fugiu da dona e se perdeu na poeira branca levantada pelos cascos das patas do demônio. O vício em cocaína enferrujou a sua bússola de se buscar enquanto pessoa. Passou a viver como uma pessoa oca, sem espírito. Era apenas um corpo indo por ir sem sentir nenhum prazer existencial.
Cândida poderia ter vivido mais tempo. Seu problema cardíaco era algo que poderia ser contornado com os medicamentos que lhe foram receitados. Uma desilusão profunda, no entanto, afugentou o seu entusiasmo de viver. Na sua volta para casa, isso numa sexta-feira, após receber alta no hospital onde ficou 13 dias, sua alegria por ter retornado à fazenda foi esmagada. A fazenda de que tanto gostava por dar sentido à sua vida, principalmente enquanto cuidava de suas plantas, e também por conter doces lembranças do marido, estava em negociação. Manter a fazenda foi a maneira que Cândida encontrou para perpetuar a presença do esposo ao seu lado. Estava viúva há cinco anos. Aprendeu com o marido a lidar com todos os afazeres da fazenda. Eles tinham um bom gerente, que muito auxiliou Cândida no período de sua viuvez.
Jurema, uma antiga empregada da fazenda, não conteve a língua e contou à patroa que a propriedade tinha sido visitada por um comprador trazido pela filha. Dolores, que não chegou a visitar a mãe no hospital, achou que esta não sairia com vida do hospital. Até Jurema e o gerente foram oferecidos ao comprador para continuar na fazenda para cuidar dos afazeres pertinentes a cada um. Até sobre isso Cândida ficou sabendo. Isso foi o fato que desencadeou a trama que poria fim à vida de Cândida. Uma tristeza que começou grande e foi se alongando gerou-lhe sérios danos à sua saúde física e mental. Por fim, mal se alimentava
Treze dias depois de sua volta, Cândida morreu. Na noite anterior, teve uma conversa franca com a filha, chegou a dizer-lhe que ela esperasse primeiro a sua morte para depois então vender a fazenda. Não vendo a patroa molhando as plantas como de costume, mesmo estando doente, Jurema foi ao quarto de Cândida e a encontrou morta.
Sinésio Dioliveira é jornalista, poeta e fotógrafo da natureza
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