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Meu pai era crente. Pagava o dízimo religiosamente, mas sem confiar (talvez de modo inconsciente) que isso o faria receber as bênçãos do céu. Fato que, como bem sabemos (você — altaneiro leitor — e eu) não funciona. Já o pastor dono da igreja, astuto que era, começou a trabalhar o campo vagarosamente, semeando palavras aliciantes, e o rebanho de dizimistas foi crescendo, crescendo… O homem bamburrou com a burrice dos fiéis. Enfim enriqueceu muito. Muito. Ele morreu, mas os filhos prosseguem na celestial missão cristã de salvar almas…

Meu pai cortou um dobrado, melhor dizendo, ralou bastante para sustentar os cinco filhos que ficaram com ele (por sua escolha) após se separar de minha mãe e deixá-la em Belo Horizonte e vir com o time de filhos para Goiânia: eu (o mais velho e com 14 anos) e mais quatro irmãs. No entendimento religioso de meu pai, o Reino do Céu “vem com aparência exterior”. Jesus
contou isso aos fariseus dizendo o contrário.

Ele, que era semianalfabeto, tinha o hábito de ensaiar suas pregações em nossa casa, ou melhor, em nosso barracão, que era de aluguel. Às vezes nos cultos, davam-lhe a palavra, e ele, a seu modo peculiar, tropeçando na concordância verbal e nominal e na pronúncia exata das palavras, caía matando nos pecadores em seus sermões. Nunca o presenciei citando nada relacionado ao que disse Jesus de que o reino do céu está dentro das pessoas.

Certa vez, eu o ouvi dando uma explicação jocosa a um irmão de igreja que, num domingo após a escola dominical, foi almoçar em nossa casa (nessa época já era casa mesmo e comprada por meu pai com muito suor). Esse irmão, que gostava de pegar o rango com a gente no 0800 aos domingos, visto que não faltava um frango caipira com angu de milho verde, perguntou a meu pai como era o purgatório. Ele respondeu, na lata e com convicção, que o purgartório “era um lugar ruim, cheio de purga igual num chiqueiro”. Por ter comido o pão que o diabo amassou com rabo no convívio com sua madrasta, meu pai não se casou novamente nem juntou os trapos após pegar um rumo (veio de Belo Horizonte para Goiânia) e mãe outro. E assim acabei ganhando uma meia-irmã.

Meu pai acreditava na existência de tesouros terrenos (“muro era de jaspe e a cidade de ouro puro”) em sua eternidade como cristão. E isso ele sorveu no livro Apocalipse, de autoria de João Batista. Tal discípulo… Pobre discípulo! Chegou a mutamba em Herodias por ela, levando consigo a filha Salomé, abandonar seu marido, Herodes Felipe, para ficar com o cunhado Herodes Antipa. Herodes, ao ver Salomé dançando, não segurou o tcham e assim deu o que sobrinha lhe pediu pela dança. Heredias, então num gesto peçonhento, orientou a filha a pedir a cabeça de João Batista numa bandeja. Assim foi feito.

Reli recentemente, via pdf, “Pálido Ponto Azul”, de autoria do astrônomo americano Carl Segan. Foi isso que me fez tocar no assunto sobre “a aparência exterior do reino do céu”, conforme acreditou meu pai por muitos anos até que morreu em 2012, em discordância com as palavras de Jesus. Segan e a também astrônoma Carolyn Porco tiveram êxito no convencimento dos diretores da Nasa de que as câmeras da espaçonave Voyager I fossem viradas para a Terra. Lançada ao espaço em setembro de 1977, em fevereiro de 1990, quando estava a seis bilhões de quilômetros da Terra, veio então a imagem mais icônica da astronomia, que Segan chamou de “pálido ponto azul”. Cor esta, segundo o livro, provinda “em parte do mar, em parte do céu”.

Imagem da Terra feita pela espaçonave Voyager 1 em 1990 a seis bilhões de quilômetros do “pálido ponto azul”, termo que o astrônomo americano Carl Segan deu à Terra | Foto: Reprodução

Há 47 anos, a espaçonave não tripulada está vagando pelas profundezas do sistema solar, a uma distância de 24 bilhões de quilômetros do “pálido ponto azul”, onde viveu meu pai, que morreu acreditando que iria para um paraíso cheio de ouro. Meu pai só leu a “bibra” (era assim que ele pronunciava), não leu Segan: “A Terra é um palco muito pequeno em uma imensa arena cósmica. Pensem nos rios de sangue derramados por todos os generais e imperadores para que, na glória do triunfo, pudessem ser os senhores momentâneos de uma fração desse ponto”. Não importa meu pai não ter lido, pois foi meu pai e viu muitos aspectos podres dentro do “pálido ponto azul”, que questionou em suas pregações.

Sinésio Dioliveira é jornalista, poeta e fotógrafo da natureza