A mulher só se compadeceu dos bichos que morreram no incêndio; das árvores não
24 setembro 2024 às 16h21
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Vi o diabo de novo fazendo uma festa funesta no meio da mata do Parque Estadual Parque Estadual Altamiro de Moura Pacheco. Isso se deu no último sábado à tarde, quando me dirigia à Ecovila Santa Branca, em Terezópolis de Goiás, para gravação de um vídeo específico sobre a enorme quantidade de pássaros-pretos que há por lá. Dei sorte: registrei até um casal cruzando. Não é uma rapidinha de um galo, nem uma longa como a das araras e outros psitacídeos. A área foi adquirida pelo ex-governador Iris Rezende pela metade do preço, mas o dono – o farmacêutico, médico, agropecuarista e empresário Altamiro de Moura Pacheco – condicionou a venda da área em sua transformação num parque. Graças a essa aquisição de Iris, foi possível o ex-governador Marconi Perillo iniciar a construção da Barragem do João Leite, que hoje é uma gigantesca caixa-de-água que armazena bilhões de litros de água do Ribeirão João Leite. Água esta que está sendo usada neste momento de crise hídrica por que passa Goiânia. Outras cidades brasileiras também estão sofrendo com esse problema.
Ao ver fogo, parei meu carro no acostamento da BR-153. E registrei a cena. A fumaça funérea se misturou ao sol, formando uma paisagem nefasta. Atrás de mim, parou também um veículo: um casal com um casal de filhos pré-adolescentes. Só a mulher desceu do carro. O marido era o motorista. A mulher se sensibilizou com a morte dos bichos: “São muitos bichos que morrem nesses incêndios. Coitados”. As árvores, no entanto, não entraram em sua manifestação de tristeza. Certamente ela ainda não possui olhos para enxergar as árvores como seres vivos.
O poder público (leia-se governos) tem travado uma batalha com os incêndios, mas não tem sido um bom combate, haja vista que, em vez de buscar medidas práticas realmente eficientes na contenção dos incêndios, tem-se falado muito no aumento de pena àqueles que incendeiam florestas. O essencial é a contenção rápida do fogo. Nem prisão perpétua resolveria. Campanhas e mais campanhas vêm sendo feitas contra incêndios, mas elas, infelizmente, só têm atingido os convertidos, ou seja, só sensibilizado as pessoas que não são capazes de cometer nenhum tipo de crime ambiental.
A pena da galhofa, altaneiro leitor, me faz ver algo nesse combate que me remete a Dom Quixote de la Mancha, que é o protagonista do livro “Dom Quixote”, o qual é a segunda obra mais vendida do mundo, a primeira é a Bíblia. O poder público, em seu combate a incêndios, de certa forma, me lembra o personagem de Miguel Cervantes (29-9-1547 / 22-4-1616), que, após se embriagar de novelas de cavalaria e ficar deslocado no tempo, vestiu uma armadura antiga de sua família, pôs na cabeça um elmo enferrujado com viseira de papelão, montou num esquálido cavalo (o famoso Rocinante) e saiu numa missão (impossível) de consertar o mundo. E isso acompanhado de seu vizinho Sancho Pança, ao qual foi prometido um salário e uma ilha para que ele a governasse. Não teve final feliz o pobre cavaleiro andante: num duelo, nosso herói perdeu feio. Humilhado, botou a viola no saco, ou melhor, a espada e outros apetrechos afins, e se recolheu. A consciência lhe chegou tarde demais: quando estava no leito de morte.
Não é só a mulher que citei anteriormente que não consegue ver as árvores como seres vivos. Nessa vala de ignorância, há gente demais. Conheço uma renca. Vou aproveitar o assunto para relatar algo que vi bem de perto. Nasceu um pé de maracujá na minha sacada. Improvisei um arame para que ele subisse e se emaranhasse numa romãzeira. O arame ficou à esquerda do maracujazeiro. Ao soltar suas gavinhas (estruturas que servem para agarrar ramos ou objetos para ser servir de crescimento à planta), nenhuma nasceu do lado direito. Isso simplesmente porque o maracujazeiro “percebeu” que não havia nada para se agarrar.
Num bate-papo com o amigo entomólogo, botânico e escritor Nilson Jaime, contei a ele sobre o episódio das gavinhas e até lhe mandei foto. Foi aí que ele então me disse que esse fenômeno se chama tigmotropismo. Enfim, ganhei dele uma aula preciosa de botânica, voltada à resposta das plantas em relação a movimentos e estímulos que recebem no seu processo de desenvolvimento.
Sinésio Dioliveira é jornalista, poeta e fotógrafo da natureza