As teses do intelectual fluminense sobre nossas liberdades civis e políticas podem nos ensinar a “ler” melhor a situação crítica pela qual passamos, sobretudo porque subsiste em nosso “DNA civilizacional” um abismo entre as elites políticas e os meros cidadãos

Oliveira Vianna (1883-1951), um dos principais intelectuais brasileiros do século XX

O fluminense Francisco José de Oliveira Vian­na (1883-1951) é, ao lado de intelectuais como Gil­berto Freyre, Raymundo Fa­oro, Paulo Mercadante e Sérgio Buarque de Holanda, um dos mais importantes intérpretes do Brasil. Entre­tanto, a percuciência do seu pensamento sociológico quase sempre fica à sombra das posturas ideológicas que adotou, ao longo da primeira metade do século XX. Posturas estas que implicaram o desenvolvimento de teses eugenistas, como a do “branqueamento” da população brasileira, e o apoio ao modelo de regime autoritário, como foi o caso do Estado Novo (1937-1945), sob a batuta de Getúlio Vargas.

A despeito disso, as investigações de Oliveira Vianna, sobretudo aquelas expostas em obras como “Populações Meridio­nais do Brasil”, publicada em 1920, e “Instituições Políticas Brasileiras”, publicada em 1949, se lidas com o devido cuidado, ainda podem nos fornecer indispensáveis elementos para reflexão sobre a nossa situação atual. A fim de tornar isso claro, me concentrarei em alguns aspectos específicos do livro de 1949.

Dividido em dois volumes, “Instituições Políticas Bra­si­leiras” (Coleção Biblioteca Básica Brasileira do Conselho Editorial do Senado Federal, 591 páginas) trata dos “Fun­da­mentos Sociais do Estado: Direito Público e Cultural” (pri­meiro volume) e da “Me­to­dologia do Direito Público: Os Pro­blemas Brasileiros da Ciência Política” (segundo vo­lume). Ao longo das quase seis­centas páginas que os dois volumes comportam, Oliveira Vianna procura analisar a formação social e, por assim dizer, “psicopolítica” do Brasil, levando em conta os variados matizes regionais, históricos e culturais. Entre as características gerais que Vianna percebe na formação do Brasil, está o que ele denomina “complexo de feudo”. Tal complexo derivou-se da primeira forma de organização social do Brasil colonial: os “clãs feudais”, as famílias patriarcais que construíram, em torno do seu próprio universo econômico re­gi­o­nal, o seu sistema sócio-político. Este modelo, que se re­produziu durante séculos, ca­racterizou-se por aquilo que é sabido de todos: regime escravista agrário, patrimonialismo, paternalismo e tantas outras características que até hoje subsistem, sob outras formas.

Pois bem, este mesmo modelo, durante séculos, não permitiu que se desenvolvesse no Brasil algo como uma verdadeira malha de “cidadãos”, ficando o “povo-massa” – expressão cara a Vianna – quase que em completa anomia, ou falta de interesse e vontade política genuína. Em contrapartida, as aristocracias agrárias familísticas tornavam-se “donas do poder”. Com a independência, em 1822, e a construção das instituições imperiais, tal estrutura sofreu um abalo importante por conta da centralização do poder. Desse modo, o “povo-massa” passou a ter um ponto fixo, uma referência su­pra-regional em que pudesse vis­lumbrar alguma legitimidade política e algum lampejo de genuína liberdade civil dentro do regime monárquico. Deste modo, pa­ra Vianna, a centralização política, por retirar o poder das oligarquias regionais, dava à massa constituída pelo homem comum algumas garantias cívicas que jamais teria sob a estrutura política regional.

Quando houve a “guinada liberal”, após a abdicação de Dom Pedro I, e a consequente descentralização do poder em nome de “maior liberdade política”, as incipientes “liberdades civis”, adquiridas com a centralização dos anos 1820, defende Vian­na, ficaram preteridas. Do mesmo modo, quando sobreveio a República, e, sobretudo, a partir do fim dos anos 1890, a “política dos governadores”, ainda que grande parte das “liberdades políticas”, como o direito ao voto, estivessem “garantidas”, estas mesmas liberdades atendiam aos interesses das elites regionais que, com instinto conservacionista que ainda nos é contemporâneo, usavam-nas para sufocar as liberdades civis – pensemos apenas no fenômeno do “voto de cabresto” para ilustrar isso. O “po­vo-massa”, então, apesar de desfrutar da condição de “cidadão”, voltava a ser “vassalo” dos feudos regionais.

O que defendia, portanto, Vianna? A centralização política, ou a federalização das esferas de poder. Não à toa, foi defensor entusiasta da Era Vargas. Ainda que tal centralização fosse autoritária, para Vianna, ao “povo-massa” era mais importante a garantia das liberdades civis, que permitissem ao homem comum defender-se contra os abusos dos líderes políticos e oligarcas regionais, do que propriamente as suas liberdades políticas, como o direito de eleger os seus governantes. Nos dois últimos capítulos de da segunda parte de “Ins­ti­tui­ções Políticas Brasileiras” isso fica pa­tente. Para Vianna, o grande problema do Brasil, não era a garantia do sufrágio universal, mas a organização da liberdade civil e individual. Dois pro­blemas impediam esta organização: a justiça estadual e polícia política, que podiam ser resumidas nas ex­pressões corriqueiras das elites regionais: o “nosso juiz” e o “nosso de­le­ga­do”, respectivamente. Para ca­da um desses problemas, Vianna propunha as seguintes soluções: uma “justiça federalizada” e uma “polícia de carreira”.

Capa do livro “Instituições Políticas Brasileiras”, de Oliveira Vianna

Bem, tudo isso foi escrito no fim dos anos 1940. Evidente­mente, muitos avanços nessa direção foram empreendidos. Mas o cerne da questão talvez ainda permaneça em vigor. Basta pensarmos no modo como os políticos e empresários engastados no esquema de corrupção do “Petrolão” tentaram e, por certo, ainda tentam usar “os seus juízes”, “os seus promotores”, e “os seus delegados”, a despeito da independência sensível daqueles que atuam na Operação Lava Jato. E, talvez, por isso mesmo, certos membros do Poder Judiciário, como o juiz federal Sérgio Moro, tenham tanta notoriedade e prestígio entre o “povo-massa”. É ele, para o homem comum brasileiro, um modelo garantidor das liberdades civis, posto que oferece a este mesmo homem comum a possibilidade de fissurar a dura carapaça de autopreservação jurídico-política que nossas elites sempre construíram em torno de si, com vistas a uma sempiterna impunidade.

E falando em Poder Judiciário, o último capítulo do livro de Vianna intitula-se “O Poder Judiciário e o seu papel na organização da democracia no Brasil”. Nele, Vianna sintetiza as suas teses sobre as instituições políticas brasileiras: “O ponto vital da democracia brasileira não está no sufrágio liberalizado a todo o mundo, repito; está na garantia efetiva do homem do povo-massa, campônio ou operário, contra o arbítrio dos que ‘estão de cima’ – os que detêm o poder, dos que ‘são governo’”. “Pouco importa”, diz Vianna, “para a democracia no Brasil, sejam estas autoridades locais eleitas diretamente pelo povo-massa ou nomeadas por investidura carismática: se elas forem efetivamente contidas e impedidas do arbítrio – a democracia estará realizada.”

Para ilustrar sua defesa, Vianna recorre a Nabuco de Araújo, pai de Joaquim Na­bu­co, e à observação que tal político da época imperial proferiu no contexto da Reforma Ju­di­ci­ária de 1843. Diz Vianna, comentando Nabuco pai: “O problema da liberdade individual e civil no Brasil – problema que é preliminar a toda e qualquer liberdade política – é justamente eliminar este ‘longo hábito de impunidade’. Esta certeza da impunidade, que os nossos costumes asseguram ao arbítrio, corrompe tudo; mata no seu berço o cidadão e impede a formação do verdadeiro espírito público. Eli­mi­nado que seja dos costumes es­ta certeza da impunidade, as liberdades civis estarão asseguradas.” O Poder Judiciário te­ria, neste âmbito, papel indispensável.

O problema apontado por Vianna era e ainda é da ordem do dia, no Brasil. Contudo, o que quero destacar é posição de Vianna com relação ao “pouco importa para democracia brasileira” se nossas autoridades políticas locais (ou não), sejam elas eleitas ou investidas por um poder autoritário, conquanto elas estejam reguladas e impedidas de cometer arbítrios. Que o desejo de que todos, efetivamente, sejam iguais perante a lei é algo que anseia o homem comum brasileiro, isto é indubitável. Agora, para nós, que estamos, ano após ano, perdendo nossa fé nos agentes do poder público, nos congressistas que nos representam, nos chefes do Executivo, será que realmente pouco importa as liberdades políticas? Será que, garantidas as liberdades civis e individuais, um poder autoritário pode se instalar no país, que não haveremos de nos importar com ele? São perguntas in­cômodas, que provocam in­qui­etação, mas são importantes.