O que nós, brasileiros, esperamos? Tal pergunta, em meio à crise generalizada em que vivemos, é da ordem do dia. Será que a figura de um marqueteiro pode nos ajudar a refletir sobre isso?

Marqueteiro João Santana, preso e condenado por crimes envolvendo lavagem de dinheiro


Eu sou eu e minha circunstância, e se não a salvo, não salvo a mim.

— José Ortega y Gasset


Cláudio Ribeiro

Na quinta-feira, 11 de maio, um dia após o interrogatório do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e relator da Operação Lava Jato, Edson Fachin, suspendeu o sigilo sobre as delações do casal de marqueteiros João Santana Filho e Mônica Moura.

Presos em 22 de fevereiro de 2016 e condenados, pelo juiz Sérgio Moro, em 2 de fevereiro deste ano, por envolvimento em crimes de lavagem de dinheiro, Santana e Moura assinaram acordo de delação (ou colaboração) premiada e expuseram os subterrâneos do marketing eleitoral e político que empreendiam. O casal fez o marketing da campanha da reeleição de Lula, em 2006, e das duas campanhas vitoriosas de Dilma Rousseff, em 2010 e 2014; e, também, a campanha de mais quatro presidentes vitoriosos: Mauricio Funes (El Salvador, 2009), Danilo Medina (República Domini­cana, 2012), José Eduardo dos Santos (Angola, 2012) e Hugo Chávez (Venezuela, 2012). O conteúdo das delações de ambos produzirá muitas investigações futuras no âmbito da Operação Lava Jato, pois sua extensão abrange os ex-presidentes Lula e Dilma, senadores, como a petista Gleisi Hoffmann, ex-ministros, como Antonio Palocci, e até o criador da personagem virtual “Dilma Bolada”, Jeferson Monteiro.

Não pretendo, pois, usar este espaço para aventar hipóteses sobre as prováveis consequências políticas das delações do casal. Até porque a elas se somou outra hecatombe: as denúncias dos empresários Joesley e Wesley Batista, donos do grupo J&F, contra o presidente da República Michel Temer e o senador Aécio Neves, vindas à tona na última quarta-feira, 17.

O que pretendo é expor uma breve reflexão, partindo da figura emblemática de João Santana, sobre o que nós, brasileiros, esperamos não apenas de nossas altas castas, política e empresarial, mas também de nós mesmos, cidadãos comuns.

A “cidade”

Responsável por dar nova “vestimenta” a Lula, após o escândalo do “Men­salão” — que inclusive tangenciou o próprio presidente —, João Santana, em entrevista dada ao jornal “Folha de São Paulo”, publicada em 5 de no­vembro de 2006, explicou que a sua estratégia, na ocasião, foi usar as imagens do “fortão” e do “fraquinho”.

Em se tratando de Lula, estes dois predicados jocosos, de acordo com Santana, são “duas características que convivem, paradoxalmente, na mesma personagem.” Por um lado, Lula é o “fraquinho”, a vítima, quando sobre ele incidem suspeitas e investigações de crimes como os que ora lhe imputam a Operação Lava Jato. Diante desse tipo de situação, Lula encarna o lado da personagem que, tendo vindo do povo, da classe operária, “chegou lá” e fez mais pelo Brasil do que qualquer outro político, desde 1500. Por outro lado, Lula é o “fortão” quando, sob a necessidade de se atacar um inimigo político, diz ser o principal defensor dos interesses dos brasileiros — leia-se: programas assistencialistas e empresas estatais —,sem os quais a população ficaria ao “deus-dará”. Foi assim que Lula desvencilhou sua imagem do “Men­salão” e ganhou as eleições de 2006, atacando a suposta ânsia do principal candidato opositor, Geraldo Alckmin, por querer privatizar tudo e deixar o povo brasileiro “órfão” das estatais.

Procedendo com esse tipo de fórmula narrativa estratégica, Santana criou depois a imagem da “Dilma mãe”, retirando a aura de “gerentona” que esta possuía quando ministra. Foi ainda seguindo estes mesmos métodos que o marqueteiro deu forma a uma das campanhas eleitorais mais truculentas dos últimos tempos, a de 2010, e também aos principais programas lançados pelo governo Dilma: o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e o “Minha Casa, Minha Vida”. Não à toa, o professor Paulo Nassar, da Escola de Comunicações e Artes da Univer­sidade de São Paulo (ECA/USP), em artigo publicado no site da Associação Brasileira de Co­municação Empresarial (Aberje), compara Santana à narradora das “Mil e Uma Noites”, Sherazade: “João Santana entende bem que a política é uma indústria de narrativas — e põe a dele na praça, sem ter um protagonismo explícito.”

Tendo em vista essa questão da “política como indústria de narrativas”, destacada por Nassar, é pertinente lembrar outro ponto da entrevista de Santana à “Folha”. Perguntado sobre por que a imagem dos marqueteiros políticos é, em geral, tão negativa, Santana respondeu que o problema está na dificuldade de entender a diferença entre persuasão e manipulação. “Há um limite”, disse o marqueteiro, “entre essas duas ações e muita confusão desde a Grécia antiga.” Afirma então que os marqueteiros político-eleitorais são detratados porque, normalmente, se entende que eles “apenas manipulam e que a massa é imbecil.” Santana menciona os exemplos de Sólon (638-558 a.C.), poeta e legislador grego, Gus­tave Le Bon (1841-1931), psicólogo francês, e Cesare Lom­bro­so (1835-1909), criminólogo e psiquiatra italiano, como sendo o de ho­mens que contribuiriam para criar-se a imagem da massa como algo facilmente manipulável: “Trata-se de um ferramental tão errado quanto antigo. Por isso cito a Grécia. Sólon dizia que o ateniense isolado era uma raposa astuta, e, em massa, um bando de ovelhas. Ou seja, vem de longe essa visão equivocada da relação com as massas.”

Busto de Sólon (638-558 a.C.)

Ao que tudo indica, João Santana gosta muito do assunto Grécia Antiga. Sua empresa chama-se Pólis Propaganda & Marketing. Sabemos que “polis”, em grego, quer dizer “cidade”, o espaço da convivência em comum e o centro das decisões políticas. Aliás, é de “polis” que deriva a palavra “política”. Sabemos ainda que, para os gregos, a retórica, que tem por finalidade a persuasão e o consenso, era fundamental para a política (e também para o direito), desde que não degenerasse em demagogia (sofística). Pois bem, ao completar a sua resposta à pergunta sobre a imagem negativa dos marqueteiros, Santana disse que “hoje não se leva em conta que vivemos numa sociedade ambientada pela mídia, onde as formas políticas se modificaram e o dis­curso é outro. Hoje, o meu cor­po, o meu afeto e minha relação afetiva e sexual passam pelo mundo da mídia. Por que a política não passaria por aí? E o que fazem o marketing e a propaganda política? Um exer­cício de persuasão, usando instrumentos legítimos. E a democracia é isso: o choque de elementos de persuasão.”

Quanto à democracia ser “o choque de elementos de persuasão”, até Aristóteles concordaria se vivo estivesse. Quanto ao marketing e a propaganda política serem instrumentos legítimos, não se discute, mas que os mesmos façam apenas um “exercício de persuasão”, de modo a não atenderem a interesses escusos e à manipulação mais descarada, é um pouco demais. Cer­ta­mente Aristóteles discordaria dos “elementos de persuasão”, gerenciados por Santana, que puseram no poder em 2012, na Venezuela, os “mui democratas” Hugo Chávez e Ni­colás Maduro. Entretanto, a observação de Santana sobre o fato de nossa sociedade “ser ambientada pe­la mídia” é da maior relevância, sobretudo nesses tempos de crise em que nos achamos, no Brasil, em que uma nova delação, um novo do­cumento acusatório ou mesmo uma notícia falsa tem efeitos devastadores.

Sobre isto, o filósofo alemão Peter Sloterdijk escreveu um livro seminal: O Desprezo das Massas: Ensaio Sobre as Lutas Culturais na Sociedade Moderna (Estação Liberdade, 119 páginas, tradução de Claudia Cavalcanti). Sloterdijk, comentando o livro Massa e Poder, de Elias Canetti (1905-1994), e procurando atualizar as intuições deste grande pensador, diz que, atualmente, “as massas pararam essencialmente de ser massa de reuniões e ajuntamentos; elas entraram num regime no qual o caráter de massa não se expressa mais na reunião física, mas na participação em programas de meios de comunicação em massa.” A antiga massa que se formava nas ruas, em grandes comícios de líderes como Mus­solini, Hitler, Stálin ou Getúlio Vargas, agora “tornou-se uma massa relacionada a um programa — e esta se emancipou, de acordo com a definição, da reunião física num local comum a todos. Nela, como indivíduo, se é massa. Agora se é massa sem que se veja os outros.”

Para entender bem a colocação de Sloterdijk, basta pensarmos na proliferação de piadas e “memes” que produzimos e reproduzimos constantemente nas redes sociais a partir dos escândalos que se nos apresentam; ou mesmo nas “torcidas”, expressas nas mesmas redes sociais, pela degradação completa do político X ou do político Y — já preso ou em vias de sê-lo —, a depender do gosto ideológico de cada um.

A “selva”

Não se trata, portanto, de discutir se a massa é imbecil e facilmente manipulável ou não. Apenas temos que ter em mente o caráter devastadoramente contagioso do que é “ser massa”, e de como, também, não há meios de não estar enredado por ela. De tal sorte que quanto mais desejarmos a hecatombe geral de toda classe política e empresarial da nação, ou quanto mais nos entregarmos ao prazer do escárnio, explícitos em piadas e “memes”, mais afundados estaremos na crise que nos cerca. E não me refiro apenas a crises política, econômica e de legitimidade, mas à pior de todas: a crise espiritual, aquela que produz o desespero e a “desconfiança sistêmica”.

Sim, há um estado de “corrupção sistêmica” no Brasil grave, e que deve ser combatido a torto e a direito. Mas o que nos deve deixar mais alarmados é o nosso avançado estado de apodrecimento espiritual (ou moral, no sentido mais profundo da palavra). Nesse sentido, uma outra face de João Santana, pouco conhecida, haverá de nos ensinar alguma coisa. Refiro-me ao João Santana criador de outros tipos de personagens, as ficcionais stricto sensu. Não as fictícias, produzidas pela “ma­gia” do marketing. Mas as per­so­nagens de seu romance, publicado em 2002, cujo título é A­quele Sol Negro e Azulado (Versal Editores, 282 páginas). Tal­vez o constructo ficcional de San­tana diga mais sobre ele próprio, sobre o Brasil e sobre nós, bra­sileiros, do que possamos imaginar.

O que narra o romance? Como bem resume o jornalista Luiz Maklouf Carvalho, no perfil biográfico do marqueteiro, intitulado João Santana: Um Marqueteiro no Poder (Record, 257 páginas): “São 282 páginas com a mirabolante história do casal Mila e Carlos. Os cenários são Washington, Brasília e a Floresta Amazônica. Santana o foi escrevendo, desordenadamente, em diversos períodos de sua vida movimentada – parte deles mergulhando na curtição da cachaça, maconha, cogumelos alucinógenos e otras-cositas-más.” O romance escarnece das esferas de poder do Brasil. Como ainda ressalta Maklauf, “o narrador de Santana acertou as contas com o sexo dos anjos e dos demônios, e com a parte podre da política brasileira (que acabara de testemunhar). Entre vaginas e pênis – para todo gosto –, dedicou trechos sulfúrico-escatológicos aos poderes da República.”

Um desses trechos é dirigido ao Poder Judiciário, metonimizado no romance na figura da juíza Gildete, casada com o senador Pinheiro. Continua Maklouf, emendado, depois, a citação do referido trecho: “[Pinheiro] injustiçado e ofendido com uma decisão judicial que proibira um comício de sua campanha, o senador mandou improvisar um palanque, e, ‘íntima ardência, tremendo mau gosto’, abriu o verbo: ‘O Judiciário? Por ele, tenho muito carinho, tenho muito respeito. Enrabo e boto o nobre poder pra chupar todo dia. E se lhe dedico a parte mais sagrada da minha anatomia é porque, como já disse, tenho por ele profundo carinho e imenso respeito.’” O Poder Legislativo também tem a sua cota, junto com o jornalismo. Um personagem, o jornalista gaúcho Otacílio, vulgo “Ota”, aparece no romance de Santana, na página 120, jogando do último andar de um dos prédios do Congresso Nacional, em Brasília, cédulas de dinheiro pela janela: “Da janela, começou a lançar uma chuva de dinheiro. O pouco vento da tarde seca do cerrado fez com que as cédulas descessem suaves, compactas, pingos de dólar, em leve bailado, a excitar funcionários e políticos. Foi um deus nos acuda: burocratas, seguranças, e mesmo alguns deputados e senadores correram em disparada, para aparar nas mãos, nos bolsos, e até em pastas a fortuna que caía dos céus.”

Pergunto: e não é isso o que nós também fazemos? Não nos deleitamos diuturnamente, sobretudo em tempos de crise, com esse tipo de escárnio? Mas aonde esse tipo de atitude leva? Continuemos com Santana…

Maklouf faz muito bem em destacar as epígrafes que antecedem o desenrolar da narrativa, bem como a derradeira, que vai no epílogo. No início de Aquele Sol Negro e Azulado, aparecem os seguintes versos do poeta inglês John Dreyden, do século XVII, no original, cuja tradução reproduzo do livro de Luiz Maklouf, atribuída a Felipe Maklouf de Carvalho: “Tudo, tudo igual em todo lugar:/ vossa caça visava às feras;/ vossas guerras não trouxeram nada;/ vossos amantes foram todos falsos./ ‘É bom que uma antiga era chegue ao fim,/ e é tempo de iniciar uma nova.” A segunda epígrafe é extraída de Charles Dickens, de A Tale Of Two Cities, também posta por Santana no original, e que transcrevo aqui, novamente, com tradução de Felipe Maklouf Carvalho: “Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos, foi a era da sabedoria, foi a era da tolice, foi a época da crença, foi a época da incredulidade, foi a estação da Luz, foi a sensação das Trevas, foi a primavera da esperança, foi o inverno do desespero, tínhamos tudo diante de nós, não tínhamos nada diante de nós, íamos todos para o céu, íamos todos direto na outra direção…”

As citações indicam uma postura indiferente. Uma postura que se assemelha à do desesperado. Não, não me refiro à acepção vulgar da palavra “desesperado”. Mas àquele que não tem esperança. Aquele para quem tanto faz, tudo é o mesmo, o mais ou menos lhe são indiferentes. É o sujeito entregue à erosão moral, espiritual. É aquele para quem sempre se está no pior e no melhor. É o sem esperança, sem virtude. Sintomaticamente, diga-se de passagem, no pronunciamento do dia 18, em que falou a respeito das denúncias dos irmãos Batistas contra a sua pessoa, o presidente Michel Temer disse, em dado momento: “Meu governo, nesta semana, viveu o seu melhor e o seu pior momento (…).” Parece que estamos imersos, todos, num lago de desespero, de torpor.

A citação do epílogo do livro de Santana, porém, é a mais esclarecedora de todas. Trata-se do verso nono do Canto III, do “Inferno”, de Dante Alighieri — primeira parte de “A Divina Comédia”. Eis o verso: “Lasciate ogne speranza, voi ch’ intrate”, “Deixai toda esperança, ó vós que entrais”, em português. “Perfeito”, remata Maklouf, ao comentá-lo, “para o que viria depois”. E Maklauf publicou seu livro cerca de dois anos antes de Santana ser preso.

“Dante e Virgílio no Inferno” (1850). Tela de William-Adolphe Bouguereau

A esperança é uma das três virtudes teologais, segundo o credo católico, é a espera pela felicidade no Reino dos Céus. O verso que Santana usa como epígrafe do epílogo de seu livro, Dante o escreveu como parte daquilo que vai inscrito sobre as portas do Inferno, para ser lido por aqueles que por ela passam. Dante penetra o átrio do inferno, após achar-se numa “selva escura”, que alegoricamente significa a perda do caminho virtuoso, do reto caminho. Mas, como quem leu Dante o sabe, ele lá entra acompanhado de seu mestre, o poeta latino Virgílio, que o guiará para além dessas nefastas profundezas. Em certa altura do canto XI do “Inferno”, Dante apresenta as mais profundas ofensas (chamadas de fraudes) e suas respectivas punições, com os seguintes versos: “o segundo círculo recolhe// hipocrisia, lisonja, em seus useiros,/ falsidade, rapina e simonia:/ ladrões, rufiões e trapaceiros.” (A Divina Comédia – Inferno, Editora 34, tradução Ítalo Eugênio Mauro) Parece que nosso desespero advém de nos deparamos e nos havermos sempre às voltas com tais “fraudes”.

Mas fica a dúvida: poderemos, algum dia, sair desse nosso estado de torpor, dessa selva selvagem de “folha prolixa, folharada,/ onde possa esconder-se a fraude” (como diz João Cabral de Melo Neto, em poema que celebra a prosa lúcida e afiada de Graciliano Ramos)?

Teremos nós o nosso Virgílio?