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“Um Bom Homem É Difícil de Encontrar e Outras Histórias”, da escritora norte-americana, reúne estórias que envolvem e impactam o leitor

Mariza Santana

O conto é um gênero literário composto de narrativa curta, que geralmente envolve um conflito, contém poucos personagens, apresenta espaço e cenário limitados, assim como um recorte temporal reduzido. Em termos de comunicação, na comparação com o romance, seria uma espécie de telegrama literário.

Confesso que prefiro narrativas mais longas. Entretanto, diante do desafio colocado a mim pelo editor do Jornal Opção, decidi me enveredar pelas páginas da coletânea de contos da escritora Flannery O’Connor, considerada uma das principais expoentes do gótico sulista da literatura norte-americana.

O livro “Um Bom Homem É Difícil de Encontrar e Outras Histórias” (Nova Fronteira, 217 páginas, tradução de Leonardo Fróes) foi publicado em 1955. Mas o vigor contido nos dez contos que compõem a obra se mantém, a despeito de eles terem sido escritos há tanto tempo. As estórias curtas relatadas por Flannery refletem o ambiente e a cultura do Sul dos Estados Unidos nas primeiras cinco décadas do século 20. Apresenta uma região então ainda fortemente agrária e com forte legado escravagista.

Muitos dos contos são ambientados na zona rural, como “Gente boa da roça”, que relata o encontro de dois personagens díspares: a moça filósofa portadora de uma prótese na perna e o jovem vendedor de bíblias. Um dos destaques é o conto “O negro artificial”, que relata a viagem de trem de avô e neto a Atlanta, em busca da origem do garoto. A aventura de apenas um dia irá marcar para sempre o relacionamento dos dois.

Flannery O’Connor: escritora americana comparada a William Faulkner | Foto: Reprodução

No conto “O círculo de fogo”, a chegada a uma propriedade rural de três adolescentes pobres coloca em risco a tranquilidade dos moradores locais, causando uma tensão crescente, até o desfecho surpreendente. Em “O último encontro com o inimigo”, o personagem principal é um falso general confederado centenário. Ele participa, como convidado especial, da solenidade de formatura de sua neta.

Entretanto, na minha opinião, o conto mais envolvente de todos, e também o mais longo, é o denominado “O refugiado de guerra”. Mais uma vez, o cenário é uma fazenda sulista, de propriedade de uma mulher — Mrs. McIntryre. Atendendo ao pedido de um padre, após o término da Segunda Guerra Mundial, ela contrata uma família de refugiados poloneses para trabalhar em sua propriedade. O choque cultural entre a proprietária rural, os trabalhadores brancos e negros da fazenda, e o novo empregado vindo do Leste Europeu, levará a um final totalmente inesperado.

Além das narrativas envolventes, a literatura de Flannery O’Connor é de extrema qualidade. Isso pode ser observado no uso que faz das palavras e na maneira como descreve os personagens e os cenários, tudo feito de maneira ímpar. A forma como atua no ofício literário é um atrativo a mais para os leitores.

Confira como a escritora apresenta a protagonista Ruby, do conto “Um golpe de sorte”: “Tinha o cabelo cor de amora amontado em rolinhos, que nem salsichas ao redor da cabeça, mas com o calor e a longa caminhada desde a mercearia alguns já estavam desfeitos e apontavam furiosamente nas direções mais diversas”.

A respeito de um personagem citado no conto “Um templo do espírito santo”, a autora o descreve assim: “Era um velho careca, mas com uma franjinha cor de ferrugem, e seu rosto era quase da mesma cor das estradinhas de barro e corroído como elas por buraqueiras e sulcos”.

A escritora Flannery O’Connor nasceu em Savannah, Georgia, nos Estados Unidos, em 1925. Faleceu em 1964, com apenas 39 anos de idade. Foi criada em uma família católica e, desde a adolescência, sofria de lúpus, doença herdada de seu pai e que o vitimou. A convivência com a enfermidade certamente influenciou sua literatura.

O clima sulista está impregnado em seus contos, assim como as dificuldades e o lado grotesco e sórdido dos relacionamentos humanos, mas com generosas pinceladas de sensibilidade. Mesmo com um toque gótico, sua narrativa é realista. E apresenta os diversos aspectos do caleidoscópio que compõe esse grande desafio que é viver. Cada conto da coletânea é um convite à reflexão feito por esta grande escritora.

Mariza Santana é crítica literária do Jornal Opção. E-mail: [email protected]